Número total de visualizações de páginas

sexta-feira, 29 de junho de 2018

"Aqui ao lado"...

Roubar bebés às mães, num conluio ideológico, e até com interesses financeiros, informando as mães de que os filhos morreram à nascença, constitui um crime de lesa-majestade. Iniciado no período pós-guerra civil espanholacontinuou durante o franquismo e até depois, em plena democracia. Calcula-se que foram mais de 300.000 as crianças roubadas às mães com a ajuda de médicos, de enfermeiras e de muitas pessoas ligadas a ordens religiosas. Uma aliança contranatura, que não só ofende os princípios sagrados das profissões da saúde, mas chega a humilhar de forma obscena os "princípios" divinos por parte de quem fez votos de consagração a Deus. 
Nunca consegui entender as razões deste tipo de comportamento. Entender, talvez consiga, mas não consigo aceitá-las. Roubar um filho é matar a alma de qualquer mãe.  
Neste momento, um médico espanhol, de oitenta e cinco anos, Eduardo Vela, está a ser julgado por um caso ocorrido há cinquenta anos em que foi protagonista de um roubo de uma menina. Arrisca onze anos de prisão, segundo li. Que seja condenado, Não merece perdão ou compaixão. Nem ele nem ninguém, os que foram capazes de violar as almas de tantas e tantas mães.  
Mataram o Filho a Maria, mas a estas mães roubaram os seus bebés, sem nunca terem sentido o cheiro, choro, o calor e o amor de um filho. 
Melhor sorte teve a mãe de Cristo... 

"São João"...

Consigo recordar com facilidade algumas histórias e historietas da noite de São João. Não sei qual a que devo escolher, se a do meu tio Manel, a quem ajudei a construir um balão durante a tarde em casa da minha avó, e que à noite, na ponte da praça, ardeu a pouco mais de três metros do solo – chorei ranho e baba -, se os saltos que um dia dei sobre uma fogueira em que tropecei e me chamusquei. Nada de especial. 
A noite para as minhas bandas esteve “solenemente” silenciosa. Consegui ouvir ao longe um latido ou outro, talvez algum cão saudoso do São João.
Fui a uma vitrina e tirei o único São João que anda por aqui. Gosto deste São João. Tosco, foi feito por um pintor de construção civil que conheci e cheguei a tratar há muitos anos. Gostava de fazer santos. Este foi-me oferecido pelos familiares. Tenho muito apreço e admiração pelos santeiros. Este São João tem algo de especial. Deve ter sido feito com muito amor e devoção. Foi o “Borrabotas” que o executou. Os apodos na minha terra não são considerados como um insulto e nem sinónimo de humilhação, talvez alguma forma de “consagração”.
Conta-se a história de que um dia, no decurso de uma procissão, em que todos se ajoelhavam à passagem dos santos, o “Borrabotas” não se ajoelhou perante um. Foi o único. Ficaram a olhar surpreendidos para a situação. Depois da passagem perguntaram-lhe por que razão não se ajoelhou à passagem daquele santo. – Era o que mais faltava! Fui eu que o fiz. Ajoelhar-me ao gajo? Era o que mais me faltava. Claro que não foi este. De qualquer modo coloco aqui a sua imagem, significado, beleza e o sentimento de um criador apreciador do São João.
Este é o meu São João que me faz recordar o passado com alguma emoção.

“A sopa”...

A noite quente convida-me a procurar algo de fresco. Uma bebida? Não. Janela aberta? Não ajuda grande coisa. Ventoinha? Não gosto de correntes de ar. Então, como fazer? Simples. Viajar no tempo, montado na crista do calor, e ver imagens de um passado que me marcou. Coisas simples. Tão simples que é quase impossível reproduzi-las. Mas vou tentar, nem que seja para acalmar o ardor de uma alma que se sente febril. Não deve ser do calor de uma noite de verão, apenas a antevisão do futuro que me coube em sorte. Não o culpo, não posso e nem me atrevo. Aceito tudo, ou quase tudo, menos o infortúnio dos desgraçados sem sorte. Conheci imensos, tantos e todos desconhecidos. Seres ignorados pelos deuses e desprezados pelos semelhantes. Recordo um caso, talvez por envolver cães. O meu é um sortudo do caraças e desconhece o significado de "vida de cão!". Ainda bem. Já disse em tom de brincadeira, mesmo que considerem ser uma blasfémia ou parvoíce, que se tivesse de voltar a este mundo gostaria de ser como o meu cão. Julgo não ser único e muito menos original. Li ou ouvi, também não interessa, que o nosso nobel da literatura teria dito algo semelhante.
Voltando à viagem no tempo, e à necessidade de me refrescar das queimaduras da vida, recordo uma velha pedinte. Magra, alta, encurvada, vestida de trapos, com um lenço na cabeça, que teria sido branco à nascença, cambaleante, com dificuldades em exprimir-se, babando-se profusamente, deixando ver a saliva espessa e branca a cair pelos cantos da boca. Batia inexoravelmente à porta da minha casa, pela hora do almoço, todas as quartas-feiras. Coincidia com o intervalo que tinha para almoçar quando andava na primária. Batia com os nós dos dedos. O som era diferente, pausado e doloroso. Digo doloroso, porque um corpo esfomeado e repleto de ossos a quererem furar a pele deveria provocar dores. Parava de comer e esperava pelo segundo toque. Levantava-me em seguida, sem pedir autorização, o que era uma falta de educação, e abria a porta. Nunca entendi o que dizia, mas ficava impressionado com o aspeto andrajoso, a magreza e a baba. Corria logo para a cozinha avisando a minha mãe que a "pobre das quartas" já estava à porta. Sem dizer nada levava-lhe a sopa bem avantajada, numa espécie de caçoila, e um bom naco de pão devidamente recheado. Comia no pequeno pátio coberto que havia à entrada. Vi-a a comer a sopa com enorme satisfação. Eu, que na altura não apreciava sopa, ficava admirado. Nunca fiz perguntas, mas estava repleto delas. Agradecia sempre sem perceber o que dizia. Os olhos brilhavam imenso, tanto que até hoje não consegui ver algo semelhante. Mas não era só a baba, a magreza ou os olhos que me marcaram, eram sobretudo os cães. Havia imensos na rua e nas redondezas. Muitos, para não dizer quase todos, andavam esfomeados, ladravam e até chegavam a ser ameaçadores. Tinha muito medo deles. Às quartas-feiras ocorria um dos mais estranhos fenómenos que presenciei até hoje. À passagem da mendiga da baba, os cães metiam o rabo entre as pernas, baixavam os focinhos e deixavam de ladrar. Parecia que a respeitavam. A pedinte passava entre eles sem qualquer receio. Àquela hora, os miseráveis e tinhosos cães deixavam de ladrar perante a miséria humana.
Todas as quartas-feiras a cena repetia-se. Depois desapareceu. Esperei muito tempo desejoso de ouvir aquele toque estranho de ossos na porta da minha casa sem ter de ouvir os latidos dos cães.
Recordo este episódio ao saborear a sopa.
Gosto de sopa.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Buscas e mais buscas...

Buscas e mais buscas, todos os dias e a toda a hora. Houvesse acusações e justiça rápida e desnecessário se tornaria perder tempo em tanto buscar. Até para demonstrar que o objectivo da justiça não se fica pelo buscar. 
Assim, todos os buscados vão prosseguindo o seu caminho, sempre, sempre, colaborando com a justiça.  Como naturalmente  lhes convém.

terça-feira, 26 de junho de 2018

"Humilhação"...

Posso suportar imensas coisas, mas não consigo ficar indiferente à humilhação da condição humana. Acredito na justiça porque fui educado nesse sentido desde menino. Não consigo compreender a justiça quando se torna no braço armado da antítese do que deveria ser, arma de arremesso, de ofensa, de morte e de humilhação do meu semelhante. Escorrem lágrimas no meu rosto quando vejo o que a "justiça" pode fazer a um vulgar ser humano, tão vulgar e banal como eu. Sinto emergir uma revolta envolta num uivar capaz de assustar a mais perfeita e temerosa alcateia. Não aceito, não compreendo, e ofende-me quando a "justiça" se torna no símbolo de um cruel crime. 
Passei o dia a ruminar com dor uma notícia a somar a muitas semelhantes que venho "colecionando" ao longo da vida. Em El Salvador "libertaram uma mulher condenada a 25 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, depois de sofrer um aborto espontâneo em 2000". Sei que há países que se pautam por condutas horríveis, mais do que anti-humanas, mesmo antidivinas para quem acredita nesses seres invisíveis que deveriam ser fonte de amor e de caridade. Mas não, "transformam" os homens em seres cruéis e indignos da verdadeira condição humana. Tantos exemplos, tantas tragédias, tanta humilhação a ofender o que de mais nobre possa existir em qualquer um de nós. Sinto dores nas minhas entranhas e revolta no meu coração. Apetece-me uivar, não à lua, mas aos criminosos que se escondem atrás de uma falsa justiça para perpetuar a sua forma de ver, que não é nem divina e nem humana, apenas a face mais desprezível de que se reveste grande parte da humanidade. 
Malditos sejam, porque são mesmo seres desprezíveis. Nunca hão de conquistar o mundo, apenas ajudam a destruí-lo. 
Não os esqueço. Não consigo. Não consigo. 

"Pouco tempo"...


Tão pouco tempo para descansar das tempestades da vida e logo receber mensagens das finanças para pagar IMI e IUC. Até o próprio café não se safou. Soube mal, miseravelmente, mas o preço não, paguei com um falso ar aristocrático. Bebi metade. Restou-me olhar para as pessoas, seguir os seus pensamentos e sentir o cheiro das ervas acabadas de despertar.
Não há nada como desfrutar da brisa suave a querer imitar a liberdade.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Uff!

Já devia ter juízo. Este jogo ia dando cabo de mim. Mas quem me manda ver os jogos? Ninguém. Pronto. Já posso ir descansar. Mas as minhas coronárias ficaram abaladas, ai isso ficaram.

domingo, 24 de junho de 2018

"Cascata"...

Era muito pequeno quando vi as primeiras cascatas. Não percebia bem o que se passava, só sei que os rapazes mais velhos andavam numa correria a fazer uma espécie de presépio. Amontoavam pedras e cobriam-nas de musgo. No topo colocavam um santo de barro. Já sabia os nomes dos santos populares. 
Na minha rua havia muitas cascatas. Depois, quando as pessoas passavam, apregoavam, “Um tostãozinho para o São João. Um tostãozinho para o São João”. Algumas pessoas punham na cascata uma moedinha. Achei piada àquilo, sobretudo às moedas. Lembrei-me também de fazer uma. Pedras e pedrinhas não faltavam e musgo também não. Fiz uma cascata tosca com três andares. Arranjei uma lata velha de engraxar os sapatos, que estava praticamente vazia, como quem diz, retirei a pasta castanha com um pau, o que não foi nada fácil, colocando a parte de baixo da lata no segundo andar com água e na parte térrea a tampa devidamente tapada com musgo para porem as moedas. Faltava-me um santo. Não tinha santos. Sabia que no missal da minha mãe havia santinhos. Escolhi um, o que achei mais interessante e coloquei-o no altar, mas não era com toda a certeza nenhum dos “três rapazes”. Os mais velhos fartaram-se de gozar comigo. Aquilo não era cascata nenhuma. Tinha de ter um santo e outras figuras de barro, como cordeirinhos. Naquela manhã cheia de sol, muito transparente, em que o azul e o amarelo pareciam cantar, “um tostãozinho para o São João”, via as moedas a cair nas cascatas dos outros, e não eram só tostões ou dois tostões, também havia cinco e dez tostões. Na minha tosca e improvisada cascata, nada. À hora do almoço perguntaram-me o que tinha. Disse que tinha feito uma cascata mas não tinha um santo de barro. - Nem uma moeda me deram. Mandaram-me a casa da minha avó porque ela deveria ter um. Assim que acabei de comer corri para ver se arranjava um São João. Mas a minha avó não tinha nenhum, havia Nossas Senhoras, o Padre Cruz, alguns crucifixos e um Santo António. - Leva o Santo António. - Também serve? - Serve pois. Vais ver que ainda és capaz de ter sorte. Agarrei no santo e coloquei-o no topo da minha cascata. - Um Santo António? Perguntaram os outros. Tem que ser um São João. Isso não é nenhuma cascata. O que é certo é que era o único da rua que não tinha um único tostão na lata. Os outros tinham, e andavam a ver quem é conseguia mais tostões. Larguei a cascata, fui à minha vida, triste, por não ter conseguido imitar os mais velhos. Quando cheguei a casa, vindo do quintal da minha avó, fui buscar o Santo António. Olhei para a lata e fiquei de boca aberta, havia moedas de cinco e de dez tostões e duas de prata de vinte e cinco tostões. Lindas, novinhas em folha, brilhavam sob o sol. Corri em direção ao grupo das cascatas, que deviam estar a fazer a contabilidade do dia, e mostrei-lhe as moedas. - Estão a ver? Estão a ver? A minha avó tinha razão quando me deu o Santo António. Ninguém disse nada. E mesmo se dissessem também não os ouvia, já tinha subido as escadas para contar o sucedido à minha mãe.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

"Vontade de escolher o destino"...


Confesso que não me faltam histórias. São tantas que era capaz de passar o que me resta de vida a contá-las. Todas diferentes, e cada uma com o seu encanto. Encanto que tanto pode transformar-se num amplexo de alegria, num momento de tristeza, numa admiração do eterno, ou provocar um breve momento de reflexão.
Quando o vi pela primeira vez senti que era diferente. Educado, culto e aristocrata no mais amplo sentido da palavra. A conversa desviou-se da rotina da consulta. Rapidamente senti que era um ser diferente. Só. Quem vive na solidão da vida é sempre diferente. Nunca o questionei a esse propósito. Não tinha esse direito. Há coisas que devem ser respeitadas. Eu respeito-as como se entrasse num templo dedicado a qualquer deus, não por acreditar neles, mas porque acredito na dor e no amor de qualquer ser humano. O ritual da consulta tinha de ser respeitado. Fiquei preocupado. A situação era muito preocupante. Falo daquilo a que se convencionou chamar fatores de risco cardiovascular. Olhei-o. Questionei se sabia o risco que estava a correr. Não disse nada, apenas sorriu. Expliquei-lhe, “catedraticamente”, a situação e a urgência em ser tratado. Quando dei por mim, já tinha escrito uma carta ao colega de serviço nas urgências para “aliviar” de imediato a situação. Algo muito preocupante. Dissertei como mandam as regras sobre o assunto e expliquei-lhe a minha angústia. Sorriu. Sorria sempre com o máximo de delicadeza. – Vai agora às urgências. O senhor corre risco muito elevado de sofrer um acidente cardiovascular.  Falei sempre num tom baixo, profissional, acrescido da minha posição, que não era estranha ao senhor. Reforcei as minhas opiniões. Fiquei na dúvida se iria acatar ou não as minhas orientações. Quis acreditar que sim, mas, mesmo assim, agendei nova consulta ao fim de alguns meses, mais para saber se as “coisas” estavam ou não a ser controladas. Sorria agradavelmente e comportava-se com a mestria inerente a um verdadeiro aristocrata. Passado o tempo previsto apareceu. Fiz o interrogatório que deveria fazer e fiquei surpreendido com o facto da situação estar praticamente na mesma. – O senhor não está a ser tratado? – Não, senhor doutor. – Não me diga. Estou preocupado. O senhor tem que se tratar imediatamente. Olhei-o e pensei: - O melhor é medicá-lo e pedir ao médico de família para o acompanhar. Nova carta, nova orientação e nova explicação aliada à “velha” preocupação. Sempre delicado, deu-me a sensação de que iria cumprir com as determinações. Gostei daquele sorriso e a forma de estar.
No momento do exame de rotina fiquei convencido de que estava tudo controlado. Conversa de nível superior acompanhada de um sorriso que catalogo de encantador. Abri a boca de surpresa. Estava tudo na mesma. Perguntei-lhe se estava a ser tratado. – Não, senhor doutor. – Não?! Ó meu Deus. Mas porquê? Perguntei. Ofereceu-me o seu belo sorriso embrulhado numa encantadora conversa. Comecei a tremer e, até, a gaguejar, o que não é meu hábito. – Mas tem que se tratar. Tem que se tratar. Se fizer o que eu lhe estou a dizer poderá viver sem problemas e durante muito tempo. Olhei-o cheio de angústia e tive como resposta um belo sorriso. – Senhor doutor, não vale a pena incomodar-se comigo. – Como? Interpelei-o. – Senhor doutor, eu não quero ser tratado. – Como? A minha angústia ia subindo de intensidade acompanhada de uma estranha e profunda dor. O trabalhador, culto, educado e aristocrata, apercebeu-se da minha perturbação. – Senhor doutor, eu sei o risco que corro e agradeço-lhe do fundo do meu coração a sua preocupação, mas não quero ser tratado. Não fique triste e nem aborrecido. Deixe-me viver a vida como eu quero. O raio daquele sorriso, meigo, delicado, simples e muito vivo, perturbou-me. Pela primeira vez na minha vida, tinha à minha frente alguém a consolar-me. Quando saiu fui até à porta. Vi-o a atravessar o longo pátio. Pensei: - Não sei porquê, mas julgo ser a última vez que o vejo.
Hoje, comunicaram-me que teve morte súbita. O Senhor da Boa Morte premiou-o, e roubou-me um dos mais belos e aristocráticos sorrisos que vi até hoje.
Sinto que sei quais foram razões, mas não as quero partilhar...

quarta-feira, 20 de junho de 2018

A esquerda lava sempre mais branco...

Hoje perguntei a vários amigos se sabiam o nome do actual Ministro das Finanças alemão. Só dois responderam que sabiam e sabiam mesmo.
Interessante, mesmo interessante. Por cá, o anterior Ministro das Finanças  de Merkel, o democrata-cristão da CDU, Wolfgang Schauble, todos os dias aparecia nos jornais e nas televisões, normalmente alvo de críticas severas por tudo e mais alguma coisa, pouco ou nada se lhe reconhecendo de bom. 
Nada tendo mudado na política do Ministério das Finanças alemão com este governo de Merkel, natural seria que as críticas continuassem, já que a política é a mesma. 
Mas não. O Ministro é agora do SPD, social-democrata, e há que preservar o pessoal da esquerda, por mais direitista que seja!...   

"Novelo de vida”...



Esta história tem quatro anos. Foi em 2 de maio, véspera de “Santa Cruz”. Encontrei-a num jardim. Depois, curiosamente, ainda a vi por mais dois anos, por mera causalidade sob o sol da tarde da velha judiaria. No ano passado não a vi, mas nem sempre o destino se lembra de me cruzar com seres que me marcaram. Este ano já passei por lá umas três vezes, e também não a vi. Eu sei que o frio não é convidativo a encontros fortuitos. O pior são as contas, em 13 de junho faz 98 anos. O meu problema é se já não faz...
Sou dado a memórias. Lembro-me sempre dela quando leio “Muito me tarda o meu amigo na Guarda!” Espero encontrá-la numa esquina. Certos lugares obrigam-me a pensar nas pessoas, simples, humildes e esquecidas.
Que hei de fazer? Nada.


“Após o almoço calcorreamos velhas ruelas sob um suave e doce calor, a fazer horas para ver o que não vimos de manhã. O almoço decorreu sob a égide dos produtos da serra, enchidos, carne e vinho. O cansaço, despertado pelo tempo de espera, levou-nos à procura de um banco. Sabia que nas redondezas havia um pequeno jardim. Abalei convicto de encontrar um assento que propiciasse brincar com o relógio e falar sem tempo. Debaixo da árvore estava um pequeno banco. Olhei e vi um novelo cinzento e negro a querer rebolar-se e saltar para o chão. Pequeno, muito pequeno e negro, o novelo humano começou a descer, andando à pato, cabeça pendida e bossa dorida. A minha mulher aproximou-se atraída por tão inusitada figura, e baixou-se. Começaram a falar. Ouvi: - Sim, ando a passear um pouco, mas moro ali em baixo no início da rua. Vou para casa. A fala era excelente e as ideias fluíam-lhe na razão inversa do seu corpo meio mirrado e que deverá ter perdido muitos centímetros à sua estatura inicial. Simpática, e desejosa de dois dedos de conversa, parou e começou a contar muitas coisas. Tinha que ser, pensei. Interrompia-a e perguntei-lhe qual era a sua graça. - Maria dos Anjos. - Posso saber a sua idade? - Sim. Tenho 94 anos. Nasci a 13 de junho, no dia de Santo António. A felicidade de ter nascido num dia tão importante levou-a a uma tentativa de levantar a cabeça, e sorriu, mostrando dois velhinhos caninos a ornamentar um enorme diastema avermelhado. Entretanto, algumas repas de cabelo branco e fino teimavam em mostrar-se fora do velho lenço negro. - O cabelo está a incomodá-la? - Não. Eu tive sempre um cabelo muito comprido, quase que me chegava aos pés. Mas sabe, naquela altura os pais não deixavam cortar os cabelos às filhas. Ainda tenho o cabelo comprido, mas tive que fazer tranças, porque não consigo levantar os braços para trás. Enquanto dizia isto, para provar, tirou o lenço negro para que pudéssemos ver duas tranças entrelaçadas numa espécie de rodilha. - Afinal, a senhora vive com quem? - Com o meu irmão e a minha cunhada. - Que idade tem o seu irmão? - Oitenta e seis anos. Olhe, meu senhor, eu já não consigo fazer o comer. Disse com muita pena. - Mas sempre tem quem o faça para a senhora. - Pois. Sabe uma coisa? Vou-lhe confessar. Não sei o que ando a fazer. Já estou cansada de viver. São muitos anos. - Não diga isso. - Digo, digo. Já tenho muita idade. - Mas ainda se mexe bem e fala com tanta desenvoltura. Tem uma cabeça a trabalhar como deve ser. - Pois! Como quem diz, tens razão, mas por isso mesmo é que ando cansada de viver. Mais uns momentos de conversa, assuntos de outros tempos, uma quinta onde cresceu, viveu e trabalhou e despediu-se. A casa não ficava muito longe, segundo disse. Espero que o seu fim esteja, apesar de tudo, muito mais longe.
No dia de Santo António vou lembrar-me da Maria dos Anjos, um delicado novelo de vida”.

Lembrei-me.


terça-feira, 19 de junho de 2018

"A mão"...

Nas minhas deambulações sem destino deu-me para ir por uma velha estrada atraído pelas cores de um outono a morrer, mas mesmo assim a querer mitigar o negro de uma paisagem indefinida. Ao sair de uma curva vi um carro adornado ao longe numa pequena ravina. Pensei que seria mais uma vítima do maldito incêndio de outubro. Quando me aproximei vi que o carro não estava queimado. Um pisca estava ligado. Achei estranho e pensei que algo teria acontecido. Apesar do local não ser adequado a estacionar, saí do carro e escorreguei pela ravina com alguma dificuldade. Pressenti que teria havido um acidente. Não conseguia ver nada no interior, o para-brisas estava partido e os airbags tinham disparado . De repente vi uma mão. Não se mexia. Toquei-lhe. Estava quente. Perguntei se estava bem. Uma voz determinada disse que sim. Estava bem. Era voz de mulher que correspondia perfeitamente com a pequenina mão sapuda. Senti angústia. Disse-lhe que era médico, como se isso fosse a solução para o problema. O que é certo é que ficou tranquila. Claro que naquelas circunstâncias não podia fazer nada. Estava encarcerada. Comecei a fazer algumas perguntas para saber o seu estado. – Acho que tenho um lenho na testa. Fiquei com a sensação de que o quadro não seria grave. Tomei as providências necessárias, pedindo socorro. O problema é que nestes casos o tempo quase que para de uma forma assustadora. Mantive uma conversa o mais interessante possível. Soube quem era, o que fazia, onde morava, a idade, quem eram os pais, tudo o que se possa imaginar. Em matéria de conversação nunca me faltaram temas! Explicou-me como o acidente tinha ocorrido. Foi uma aranha que andava no carro há algum tempo e que quis afugentar. Distraiu-se e foi pela ravina. Também lhe contei algumas histórias sobre aranhas. Que conversa mais parva, falar de aranhas naquela posição, de joelhos e de mãos dadas. Mãos dadas. Durante algum tempo tive de fazer telefonemas e atender o telefone da jovem. Era a mãe. Expliquei-lhe o que é que se tinha passado, mas acalmei-a com autoridade. Ficou mesmo calma. Subitamente  a jovem sinistrada pediu-me: - Senhor doutor?- Sim, diga. - Dê-me a sua mão se faz favor. Estou nervosa. Dei-lha durante todo o tempo até chegar o socorro. Aguardei que a desencarcerassem. Quando ia a ser transportada para a ambulância aproximei-me e fiz-lhe uma festa na cara. Sorriu em forma de agradecimento e piscou-me o olho. A mãe, que entretanto tinha chegado, e com a qual falei duas vezes, indicando onde estávamos, aproximou-se, deu-me um beijo e agradeceu. 

sábado, 16 de junho de 2018

"A imagem"...

Andar pelo interior de Portugal é muito parecido como me ver ao espelho. Envelhecido, fechado, olhar sem esperança, sentimentos perdidos, desejos escondidos no outro lado do espelho, vida sem sentido e dores desconhecidas. O sorriso tipo “selfie” não existe, embora o mirar do meu olhar se possa considerar como essa forma moderna de registar os acontecimentos da vida.
Andei e  vi tudo o que começo a ver no espelho. O que me incomoda é o respirar, o sonhar, o aromatizar e o chagar de almas desejosas de serem esquecidas por quem nunca as conheceu.
Deitado no banco, dormia. Não sei se sonhava, e caso andasse pelo mundo dos sonhos, gostava de conhecer o filme do seu sono. Deveriam ser imagens simples, pálidas, quentes e um ou outro anjo meio embriagado a prometer-lhe as honras do divino.
Ei-lo. A imagem é uma espécie de porta a convidar a entrar para o outro lado...

sexta-feira, 15 de junho de 2018

"Justiça"...


Em pequeno ensinaram-me a respeitar os outros em todos os sentidos. Fui educado a respeitar a lei, a justiça e o senhor doutor juiz. Um homem de bem nunca deve ter medo da justiça, porque esta é o nosso garante e defesa, dizia o meu avô. É aqui que devemos procurar a justiça, dizia apontando o dedo para o tribunal velho. 
Ao longo da vida tive de ir algumas vezes ao tribunal, não como arguido, felizmente, mas como testemunha. Uma das vezes fui despronunciado por um hipotético crime que afinal não existia e uma outra como queixoso, mas da qual não obtive o reconhecimento devido. Fui atropelado por uma bicicleta, mas os ciclistas, donos das estradas, não são obrigados a terem seguro! 
Participar como testemunha é um dever cívico. Não me importuna, o que me incomoda é aquele conteúdo cheio de ameaças. É a chapa “cinco”. O pior é quando adiam os julgamentos. No último, que acabou por ser repetido, e depois de já ter sido ouvido por duas vezes, fui notificado quatro vezes, o que me obrigou a alterar a minha vida com prejuízos, e incómodos, indiretamente, a muitas dezenas de pessoas. Esperei mais de duas horas até ser, conjuntamente com outras testemunhas, convidado a entrar na sala de audiências. O juiz explicou que a nossa dispensa foi da responsabilidade dos advogados de defesa. Fê-lo formalmente, explicando que a “Justiça” não tinha qualquer culpa. – Está bem. Pensei. O juiz defendeu a sua “Justiça”, mas não explicou o facto de ter adiado por quatro vezes os nossos “silenciosos” depoimentos. 
Será que ele pensa que a "Justiça" está acima de todos? Julgo que sim, e não deve ser o único. Mas não, a Justiça está "abaixo" de todos. É o pilar, é o baluarte, é a terra-mãe em que a sociedade assenta de forma a garantir a nobreza e a honra de quem quer viver em paz e em liberdade. Os cidadãos merecem ser respeitados.