A noite quente convida-me a procurar algo de fresco. Uma bebida? Não. Janela aberta? Não ajuda grande coisa. Ventoinha? Não gosto de correntes de ar. Então, como fazer? Simples. Viajar no tempo, montado na crista do calor, e ver imagens de um passado que me marcou. Coisas simples. Tão simples que é quase impossível reproduzi-las. Mas vou tentar, nem que seja para acalmar o ardor de uma alma que se sente febril. Não deve ser do calor de uma noite de verão, apenas a antevisão do futuro que me coube em sorte. Não o culpo, não posso e nem me atrevo. Aceito tudo, ou quase tudo, menos o infortúnio dos desgraçados sem sorte. Conheci imensos, tantos e todos desconhecidos. Seres ignorados pelos deuses e desprezados pelos semelhantes. Recordo um caso, talvez por envolver cães. O meu é um sortudo do caraças e desconhece o significado de "vida de cão!". Ainda bem. Já disse em tom de brincadeira, mesmo que considerem ser uma blasfémia ou parvoíce, que se tivesse de voltar a este mundo gostaria de ser como o meu cão. Julgo não ser único e muito menos original. Li ou ouvi, também não interessa, que o nosso nobel da literatura teria dito algo semelhante.
Voltando à viagem no tempo, e à necessidade de me refrescar das queimaduras da vida, recordo uma velha pedinte. Magra, alta, encurvada, vestida de trapos, com um lenço na cabeça, que teria sido branco à nascença, cambaleante, com dificuldades em exprimir-se, babando-se profusamente, deixando ver a saliva espessa e branca a cair pelos cantos da boca. Batia inexoravelmente à porta da minha casa, pela hora do almoço, todas as quartas-feiras. Coincidia com o intervalo que tinha para almoçar quando andava na primária. Batia com os nós dos dedos. O som era diferente, pausado e doloroso. Digo doloroso, porque um corpo esfomeado e repleto de ossos a quererem furar a pele deveria provocar dores. Parava de comer e esperava pelo segundo toque. Levantava-me em seguida, sem pedir autorização, o que era uma falta de educação, e abria a porta. Nunca entendi o que dizia, mas ficava impressionado com o aspeto andrajoso, a magreza e a baba. Corria logo para a cozinha avisando a minha mãe que a "pobre das quartas" já estava à porta. Sem dizer nada levava-lhe a sopa bem avantajada, numa espécie de caçoila, e um bom naco de pão devidamente recheado. Comia no pequeno pátio coberto que havia à entrada. Vi-a a comer a sopa com enorme satisfação. Eu, que na altura não apreciava sopa, ficava admirado. Nunca fiz perguntas, mas estava repleto delas. Agradecia sempre sem perceber o que dizia. Os olhos brilhavam imenso, tanto que até hoje não consegui ver algo semelhante. Mas não era só a baba, a magreza ou os olhos que me marcaram, eram sobretudo os cães. Havia imensos na rua e nas redondezas. Muitos, para não dizer quase todos, andavam esfomeados, ladravam e até chegavam a ser ameaçadores. Tinha muito medo deles. Às quartas-feiras ocorria um dos mais estranhos fenómenos que presenciei até hoje. À passagem da mendiga da baba, os cães metiam o rabo entre as pernas, baixavam os focinhos e deixavam de ladrar. Parecia que a respeitavam. A pedinte passava entre eles sem qualquer receio. Àquela hora, os miseráveis e tinhosos cães deixavam de ladrar perante a miséria humana.
Todas as quartas-feiras a cena repetia-se. Depois desapareceu. Esperei muito tempo desejoso de ouvir aquele toque estranho de ossos na porta da minha casa sem ter de ouvir os latidos dos cães.
Recordo este episódio ao saborear a sopa.
Gosto de sopa.