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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Los Días de Gloria IV - Soares versus Cavaco


Depois da entrevista com Cavaco sobre o domínio do Banesto no Banco Totta & Açores, da qual saiu completamente desiludido, diz Mario Conde:
"...Algo nervoso com o assunto, e sem vontade de dar o braço a torcer, desenhei uma estratégia de afrontamento entre Cavaco e e Mário Soares, o veterano político socialista...Vamos ver se forçando um pouco conseguimos que Cavaco mude de opinião... Duvidava, mas…
Como Soares mantinha, segundo me diziam, uma boa relação com o Rei, decidi que o Monarca podia canalizar este desejo de uma instituição financeira hispano-lusa…
No fundo, procurava que a inimizade de Soares com Cavaco pudesse a ajudar a implantar a racionalidade (isto é, o Banesto ter a maioria no Banco Totta & Açores). Em muitas ocasiões os sentimentos menores constituem o melhor aliado para construir coisas que valem a pena. Assim é a natureza humana.
Não tenho detalhes do que fez Soares com a informação que lhe foi dada pelo Rei.
Mas o certo é que Cavaco reagiu de modo violento: publicou um Decreto-Lei que punha as coisas ainda mais difíceis. A guerra continuava…”

Pirolitos II

Cheguei a casa, mostrei as garrafas e mandaram-me despachar a quinquilharia para Santa Comba. O habitual, onde meter tanta coisa? Em Santa Comba. Um dia terei de ter um espaço próprio para “expor” os meus cacos, velharias e quejandos que vou adquirindo sem sentido, a não ser o despertar de alguma emoção estética de momento ou do passado. Tinha-as ainda comigo, no consultório, a aguardar um espaço qualquer numa arrecadação, quando acabaram de ser alvo de atenção, por parte de um doente e que originou uma conversa interessante.
Gosto de conversar com os doentes, não todos, mas alguns, confesso, são fonte de inspiração e, habitualmente, acabamos por contar histórias e historietas de encantar.
O casal de idade entrou e o homem oferece-me um saco de plástico. – Aqui está como lhe prometi. Era uma garrafa, mas cheia, claro. - E eu julgava que os médicos não bebiam! – Qual quê! Se for bom, por que não? Rimo-nos ao redor deste cumprimento, meio malicioso e coloquei o saco junto do outro. – Ah, mas o senhor doutor já recebeu outra? - Eu?! Não! Tirei uma das garrafas e mostrei-lhe: - Sabe o que é isto? – Uma garrafa de pirolito! Onde é que arranjou uma coisa dessas que já não via há tanto tempo? Expliquei-lhe a minha ida a Miranda. Mas nem me deu tempo para acabar e interrompeu-me dizendo: - Por causa dessas garrafas levei umas boas tareias do meu pai. Quando era miúdo, o senhor doutor ainda não era nascido, enchia-as com carbureto, juntava-lhe água e atirava para o rio. Uma granada. Aquilo arrebentava e o pessoal apanhava o peixe. O senhor doutor sabe o que era o carbureto? – Não sei eu outra coisa, oh A.! Entretanto, já tinha observado a mulher, cuja tensão arterial estava normalizada, e que, à disputa com o marido, disse-me: - Fizemos uma aposta, os dois, para ver quem é que tem a mais baixa. – Não me diga! Disse-lhe. Quando comecei a examiná-lo, o A., empolado pelas “granadas de pirolito”, começou a contar que uma vez, em Angola, no decurso da guerra, era tropa especial, lançou uma granada ofensiva enquanto estava no meio do rio. – Senti um choque elétrico no corpo, senhor doutor, que nem lhe digo. Eu não sei porquê, porque nunca estudei para isso, mas o pior foi um peixe, era tão grande que eu ao aproximar-me acabei por levar com a cauda. Olhe, talvez não acredite, mas a porrada foi tal que tiveram de me tirar do rio. Nesse momento, tinha acabado de lhe medir a tensão arterial e estava alta, mais alta do que a da mulher. – Perdeu a aposta! Ficou com ar muito admirado, porque é um bom doente. Foi então que lhe disse: - Vamos repetir, para ver se está ou não verdadeiramente elevada. A segunda, a terceira e a quarta vez revelaram valores normais e inferiores à da mulher. Ficou todo satisfeito, o valor elevado da primeira vez coincidiu com a lembrança da pancada do peixe grande no rio. Deve ter sido verdade, pensei eu, só assim se explica a variação acentuada. A partir daqui passámos a falar sobre formas pouco habituais de pescar. Como tinha andado no mesmo quartel que ele, eu como oficial miliciano médico e ele como sargento de carreira, mas quinze anos mais velho, perguntei-lhe se recordava do capelão P. – Claro que me recordo. Então, expliquei-lhe que, num sábado de tarde, estava eu de serviço num maldito fim-de-semana, vejo-o a entrar na base com o seu carro amarelo. – Oh doutor venha cá. Quer ver a pescaria da tarde? Eu aproximei-me e, nesse momento, levanta a porta da bagageira. Fiquei com os olhos arregalados. Estava cheia de peixes. – Como conseguiu esta proeza? – Simples, muito simples! Uma granadazita e já está. – Olhei para ele estupefacto, até porque era quem era, mas antecipou-se a qualquer crítica, dizendo: - Tenho de alimentar esta tarde o pessoal amigo. Uma forma moderna de multiplicação dos peixes. Dito isto, afastou-se em toda a sua glória. O A. ria-se, porque sabia que era prática comum. Subitamente, começou a tocar o sino a finados. Desconhecíamos ambos o eleito, mas mesmo assim fui obrigado a dizer: - Não aprecio muitos os velórios, mas têm uma vantagem. – Qual, senhor doutor? – Ouvir boas histórias. Está a ver, as pessoas vão até lá, falam um pouco, depois de dizerem que o defunto era uma excelente pessoa e que deixa muita saudades – aliás nunca ouvi nada em sentido contrário -, e como não se veem há muito, aproveitam o tempo para recordações. Num desses velórios, e por causa da pesca, cá fora, no adro da igreja, sob um sol sem calor, falava-se de pescarias e pescadores. Era cada um que só visto. O melhor, para mim, foi a história de C., um primo do meu pai, pedreiro de profissão, que, ao fim da tarde, quando regressava a casa, e passava o rio a vau, apanhava os peixes debaixo das pedras à mão. Um especialista na arte. Mas o melhor é que o pedreiro dava, previamente, uma valente marretada na pedra com o seu instrumento de trabalho, atordoando-os. Dizem que sim, que era verdade. – Essa é boa! Nunca tinha ouvido. Disse o A. – Pois olhe que eu ouvi, mas se foi ou não verdade, não sei dizer. – A rapaziada daquele tempo era endiabrada. O meu pai contou-me que uma tia, em nova, no princípio do século passado, ia lavar a roupa ao rio, e, ao fim da tarde, antes de regressar, misturava pão com cocaína, que se comprava nas farmácias daquele tempo para tratar as dores. Parece que os peixes ficavam tolinhos de todo e ela apanhava-os à mão e metia-os no alguidar, debaixo da roupa. Naquele tempo era proibido apanhar peixes, mas não era proibido comprar cocaína! E assim se passou um bom pedaço da consulta, ficando a promessa de que um dia destes iria até à sua aldeia, para ouvir e contar algumas histórias. - Mas não se esqueça de que temos de alimentar e dar de beber ao corpo. Dizia-me o A. – Está bem, assim que os dias ficarem mais compridos e mais quentinhos lá irei.
O que é certo é que ambos andam muito controladinhos das suas maleitas. Quase que me atreveria a dizer que os melhores doentes, os que aderem bem às terapêuticas são excelentes comunicadores e gostam de histórias e, também, de participarem nas mesmas. Uma boa terapia para os doentes e para mim, naturalmente.

Pirolitos I


Aos domingos esforço-me por levantar um pouco mais tarde, sabe-me bem e fico com a sensação de ter descansado, como se uma hora ou uma hora e meia a mais servisse para alguma coisa, às tantas não é mais do que o desejo de gozar o prazer do dolce far niente, a expectativa de não ter compromissos. Cumpri o ritual de domingo de manhã, com a ida ao café e a leitura do jornal. Sentei-me na esplanada, sob um sol de inverno a querer agredir as meninges, porque o espaço interior já estava todo repleto por funcionários do estudo.
Lembrei-me, após o almoço, de ter lido que havia uma feira de velharias em Miranda do Corvo, primeiro domingo de cada mês. Um bom pretexto para ir a tão encantadora localidade, e o tempo empurrava para a passeata. Sol, muito sol, que faz bem ao espírito e ao corpo. Cheguei e não vi nada, andei às voltas até que estacionei. Meti-me por umas ruelas e desfrutei da paisagem urbana mesclada de ruralidade encantadora. Voltei ao parque principal e decidi interpelar um sujeito de meia-idade: - Boa tarde! Diga-me uma coisa, esta praça não é a praça José Falcão? – É sim, senhor professor. Fiquei admirado com o tratamento, mas antes de lhe perguntar o porquê do tratamento, adiantou: - Não foi o senhor que ficou a substituir o professor Goulão? – Fui. – Ele foi meu professor. Após esta troca de palavras, perguntei-lhe, meio atabalhoado, pela feira das velharias anunciada, hoje, no jornal. – Pois é! Já não a vejo há algum tempo. É aqui que a fazem, de facto, no primeiro domingo de cada mês. Coçando o queixo disse-me: - Vamos perguntar àquele pessoal. Oh Zé, não há feira de velharias? – Há! – Onde? – No mercado, por causa do tempo, do mau tempo do inverno. Olhei para o céu e nem uma nuvem. Indicaram-me onde ficava o mercado, que eu conheci em tempos, durante uma campanha eleitoral. Fui a pé. Fez-me bem e recordei alguns episódios passados naquela localidade. Quando cheguei ao mercado, já os feirantes tinham começado a arrumar as suas coisas, mas, mesmo assim, tive tempo de sobra para espiolhar com algum pormenor o material exposto. Ainda estive tentado a adquirir dois santos, uma Santa Luzia e um São Judas Tadeu, ambos de terracota, com expressão estética interessante e pouco vulgar, mas hesitei. Hesitação de que às vezes me arrependo. Não consigo controlar nem explicar porquê. Andei, dei voltas e mais voltas, e estava a ver que me ia embora sem adquirir nada, quando, ao sair pela porta, olhei para a última banca e vi duas interessantes garrafas. Garrafas de pirolitos? Há mais de meio século que não via nenhuma. Ao mesmo tempo que sopesava uma delas, emergiram no meu pensamento inúmeras recordações, umas atrás de outras. – Quanto quer pela garrafa? – Cinco euros. Peguei numa nota de dez euros e fiquei com as duas.
Quando as comprava, em miúdo, pagava quatro tostões por uma, e cheia, agora tive de pagar dois contos de réis. Mas valeu a pena, porque onde iria encontrar numa tarde de domingo motivo para despertar tão belas recordações por dez euros? Em lado nenhum. Sentei-me na esplanada do parque, durante algum tempo, a beber uma bebida fresca, um “pirolito” moderno sem açúcar, a observar os fregueses, a idealizar o que poderia escrever sobre tão interessante bebida e a gozar a beleza da tarde e do ambiente corvino.
Meti-me a caminho, mas em vez de ir por uma das duas estradas habituais, guinei o volante, no último instante, em direção a Condeixa, e fui pela serra a desfrutar uma paisagem desconhecida, mas que me encheu de prazer até esbarrar na velha estrada, conhecida desde há muitas décadas, quando ia para a tropa, em Tancos, e que me estimula os sentidos através da misteriosa paisagem dominada pela serra de Sicó. Não consigo compreender a atração daquele espaço como se tivesse sempre vivido ali. Então, agora, que vou com alguma frequência a Ansião, passando pelo Rabaçal, sinto um encanto e um prazer insaciáveis face à beleza, tranquilidade, jogos de luz e silêncios daqueles campos e montes, como se os conhecesse há milénios.
Enquanto conduzia ouvia o chocalhar das garrafas de pirolito dentro do saco de plástico do qual sobressaía o som das esferas, ressoando dentro delas como se estivessem a partir. Qual quê, partir uma garrafa de pirolito não é fácil, o vidro é grosso e eu que o diga, porque em pequeno tinha dificuldade em as quebrar mesmo atirando-as contra a parede de granito para poder retirar as esferas e jogar ao berlinde com elas.
Em casa do meu avô, na adega pequena, havia algumas grades de pirolitos, provenientes de um café que tivera em tempos. Estavam perdidas naquela escuridão. Avisaram-me de que não deveria beber o seu conteúdo, eram velhas. Por vezes, agarrava numa, espetava a esfera de vidro para dentro com o polegar, tinha de fazer alguma força e botava fora o conteúdo que, não raras vezes, espirrava para a cara, quando as agitava em demasia. O que eu queria era a esfera. Consegui obter algumas na esperança de competir ao jogo do berlinde com os meus amigos, mas não prestavam, eram leves de mais e escancelavam-se quando levavam nas trombas com um berlinde duro, dos bonitos, pesados e cheios de cor. E, também, não conseguia fazer mover os outros. Foi então que pedi que me arranjassem umas esferas de aço, havias as muito pequeninas, que não davam para jogar, mas havia outras, do tamanho dos berlindes que eram verdadeiras armas. Consegui algumas na fábrica da serração, mas não era fácil obtê-las. – O que é que tu queres? Perguntava com alguma brutalidade o homem das máquinas. – Umas esferas para jogar. – Não tenho nenhuma. Vai-te embora. Aborrecido ia ter com o encarregado, que tinha sido padrinho do casamento do meu pai, a quem eu também chamava padrinho, e pedia-lhe que me arranjasse uma ou duas esferas. Sempre reinadio, metia-se comigo à maneira, e dizia: - Logo à tarde quando a fábrica apitar, esperas à saída que eu te vou arranjar algumas. Piscava-me o olho e à hora aprazada, lá estava à sua espera. Passava por mim e sem dar nas vistas, abria a mão e despejava nas minhas algumas esferas. Com aquelas eu queria ver quem é que me batia, pesadas, atirava para cabos de rolha os berlindes dos outros. Um sucesso. Mas mesmo assim, gostava das esferas dos pirolitos que me ajudavam a passar o tempo. Quanto ao conteúdo, eu obedecia, não bebia as que estavam na adega, mas comprava pirolitos na estação, na taberna do Rogério. Não apreciava muito o conteúdo, ficava com a sensação de que fazia mais sede do que a matava. Tinha uma carga de açúcar elevada. Usava os pirolitos mais como arma de brincadeira, agitando vigorosamente e, depois, ao carregar na esfera, molhava os meus amigos com um violento jacto.

Estilhaços

Continua o tsunami das revoluções nos países árabes. Hoje foi Omã a juntar-se à turbulência, enquanto milhares de egípcios que não foram resgatados da Líbia se amontoam na fronteira com a Tunísia. No Líbano manifestantes clamam contra o confessionalismo e a partilha de poder entre cristãos e muçulmanos, cruzam-se as notícias sobre o Irão, o Iémen, o Conselho de Segurança da ONU condenou por unanimidade o ex-regenerado Kadafi, por todo o lado chovem opiniões, leituras e previsões, enquanto os países ocidentais procuram reajustar as suas políticas à defesa dos seus interesses futuros em zonas de tão súbita fragilidade política. A dura realidade do pragmatismo político levou já à demissão da Ministra dos Negócios Estrangeiros francesa, Michèle Alliot-Marie, no cargo há poucos meses, mas na vida política há quase dez anos, que foi forçada a demitir-se perante o coro de críticas à sua actuação quando, numa precoce avaliação da situação, propôs a ajuda francesa para a manutenção da ordem na Tunísia, depois de regressar de férias naquele País na altuira em que" começou a revolta. Acusada de ter viajado no avião de um grande empresário tunisino amigo do presidente deposto, resistiu até que a pressão passou a envolver a sua família e os negócios que tinham com a Tunísia, numa “devassa da sua vida pessoal com o objectivo de me fragilizarem”, escreveu na sua carta de demissão, publicada na íntegra no "Le Monde". Explica ainda que “apesar do sentimento de não ter cometido qualquer falha” e de sempre ter agido de acordo não só “com a legalidade mas também com as exigências da moral, da dignidade e da lealdade”, tem em demasiada conta a política ao serviço de França para "aceitar ser utilizada como um pretexto para fazer crer que há um enfraquecimento da política externa francesa". A demissão foi aceite, os estilhaços da situação no mundo árabe começam a fazer rolar as cabeças, na urgência de se tecerem agora novas teias que sustentem a frágil comunicação com um novo mundo que emerge e que não se sabe o que será.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Dignidade

Domingo de manhã. Levantei-me com duas horas de atraso face ao habitual. Um pequeno prazer que tem o condão de me convencer que consigo descansar. E eu acredito! Tudo feito de forma lenta. Um ritual de conveniência que ajuda imenso a dar sentido aos domingos. Fui até à livraria-café convicto de que só conseguiria comprar o jornal e, depois, lê-lo em qualquer outro sítio, mas não, havia lugares, e eu aproveitei.
Enquanto lia as notícias, passavam por mim muitas pessoas que eu não pude deixar analisar. Uma senhora, elegante, caminhava como se fosse uma pluma, de telemóvel ao ouvido, até que terminou a conversa com beijinhos, uma forma muito portuguesa. Tirou o casaco com alguma teatralidade, olhou para a banca dos livros e, em seguida, retirou um do escaparate. Nunca tinha visto um andar como aquele, sedutor, parecia um manequim em plena livraria. Cabelo dourado escuro a esconder ligeira perda da frescura da juventude, mas mesmo assim muito atraente. Mergulhei os olhos nas entrevistas e na miséria nacional, mas tive de interromper a leitura para me recordar de uma rapariga, a Rosarinho, que, em jovem, na minha terra, era uma criança de calções, treinava o andar, carregando listas telefónicas à cabeça, percorrendo um fio imaginário, a lembrar os artistas de circo, para obter aquele jeito de andar com o qual pretendia catrapiscar algum africanista. Mas esta não, nunca deverá ter necessitado de usar tal expediente. Sorri desta velha lembrança de mais de meio século. Entretanto, uma outra senhora com uma cara pouco simpática, demasiado magra, cheia de arestas e ângulos - parecia mais uma representação viva da arte cubista -, cabelo curto, negro de azeviche e empastado de brilhantina, de escuro e saia curta a mostrar o que não devia, e a nadar dentro de botas negras, pavoneava-se indiferente aos olhares. Outra, uma senhora, na casa dos trinta anos, vestida de vários tons de castanho e com cabelo castanho-escuro ondulante emanava simpatia a rodos. A sua mímica facial conseguia neutralizar o provérbio de que quem vê caras não vê corações. Era impossível que não tivesse um bom coração. Outras, mais vulgares e menos discretas, não conseguiram desviar-me a atenção, exceto uma senhora com quarenta e muitos ou cinquenta e poucos anos. Entrou direita e um pouco acelerada. Vestido simples, cheio de flores, chapéu à Zé do Boné, óculos de lentes castanhas e uma pequena bolsinha na mão esquerda. Olhei de relance para a sua face e chamou-me a atenção o bronze, sugestivo dos sem-abrigo, dos que sofrem, com as maçãs do rosto salientes e precedidas por escavações típicas de carência nutricional, doença crónica ou infecciosa prolongada. Os lábios mergulhavam no interior da boca, revelando falta dos incisivos. Comecei a conjeturar sobre o seu passado e o seu sofrimento, porque era uma amostra viva de dor e tormentos. Não quis continuar a pensar no caso e preferi ler mais umas notícias. Como se aproximava a hora de almoço, levantei-me e fiz o meu percurso rotineiro pelas salas, um hábito que me leva a ver se há novos livros. E havia, os funcionários mudam constantemente. Desta feira vi vários livros de Boris Vian, onde havia apenas um. Ri-me de alguns que li em tempos. O tipo era mesmo louco a escrever. Já tinha dado as costas a Vian, quando ouvi uma voz timbrada de tabaco e de sofrimento: - Desculpe. Pode ajudar-me? Antes de olhar pressenti que deveria ser a mulher bronze. Voltei-me e a senhora continuou: - Estou muito doente, muito doente. E mostra-me o braço direito como se fosse possível ver o que quer que fosse. Vi apenas uma fita de Nosso Senhor de Bonfim, azul. Olhei-a e as minhas primeiras impressões confirmaram-se. Calado, esperei que dissesse mais alguma coisa. – Podia ajudar-me a encontrar um livro policial? Eu vejo mal e estou muito doente. Fui às urgências na quarta-feira e meteram-me uma coisa no braço. E voltou a mostrá-lo, com algum cuidado, talvez querendo proteger-se. – Um livro policial? Bom, vamos ver. – Mas quero de um escritor norte-americano. – Aqui não há muitos livros policiais, mas ali, no canto, pode ser que se encontre algum. Desloquei-me e disse-lhe que havia alguns de Agatha Christie. – O senhor podia ver quanto é que custam? – Este custa 10,90 euros, este 12,60. – Mas eu não quero a Agata Christie. Quero um escritor norte-americano. – Olhe, está aqui um que parece ser interessante, “As Cinco Aventuras de Sherlock Holmes” e custa sete euros. Deve ter feito as contas e concluído que seria um preço razoável. – Está bem. Vou levá-lo. Também não adiantei que o autor não era norte-americano. Agradeceu com aquela voz metálica, profunda e gasta pelo sofrimento da existência e desejou-me boa-tarde. – Sabe, estou muito doente, e vou ler esta tarde o livro.
- Uma boa-tarde para si também!
Uma pequena história que não aprofundei, nem tinha que aprofundar, mas estou convicto do meu juízo, alguém a quem a vida foi madrasta, mas que consegue reunir algumas forças para manter a dignidade, dignidade reforçada esta tarde pela leitura de um livro policial, não de um autor norte-americano, também não importa, mas de um escritor médico que, à sua maneira irá aliviar o seu sofrimento, da alma e do corpo.
Uma lição de dignidade sabe sempre bem, venha de onde vier...

Los Días de Gloria III- A visita de Mario Conde a Cavaco


Como referido no post anterior, em Julho de 1993, Mario Conde deslocou-se a Lisboa, para dar conta ao 1º Ministro, Cavaco Silva, de que o Banesto possuía, directa ou indirectamente, 50% do Banco Totta & Açores, à revelia do limite estabelecido pela lei da privatização lhe permitiria ter apenas 10%.
"Terça-feira, 20 de Julho, reuni-me com o 1º Ministro português. Recebeu-me frio…altivo orgulhoso distante, soberbo".
-Veja, disse Cavaco, o Banco Totta & Açores é uma jóia de Portugal, uma peça-chave do sistema financeiro português. Não vamos deixar que se vá. Não o privatizamos para que acabe em mãos espanholas.
"Mau começo, pensei. Este homem não fica pela rama. Quando inicias uma conversa com semelhante intróito, as possibilidades de sair ileso, financeiramente falando, são absolutamente nulas. Não obstante, disse:
- Entendo-o. Mas para nós também é uma jóia e por isso o comprámos. Sabemos que é português, mas estamos no Mercado Único…"
Cortou-me logo a exposição, com um tom de agressividade pelo menos igual à anterior.
-Veja, uma coisa é falar de Mercado Único, outra é viver a política cada dia. A mim, são os portugueses que me pagam e eu vou fazer o que é bom para Portugal.
-Mas os políticos falam de eliminar fronteiras, de mercados únicos…
-Insisto: as palavras são uma coisa, os actos, outra.
Aguentei o temporal como pude, expondo com voz suave e terminologia de compromisso umas ideias força: não os entendo, já que por um lado enchem a boca com o mercado único e por outro aparecem os vestígios históricos de um nacionalismo sem sentido…
Mas para Cavaco isso tanto lhe dava como se lhe deu. Despediu-me com a mesma frieza com que me havia recebido… "
Continua. Mario Conde recorre ao Presidente da República Mario Soares

O outro lado da Filosofia...

A filosofia é uma daquelas disciplinas que muita gente pensa que não serve para nada, que era entretimento dos filósofos da antiguidade que não tendo mais nada que fazer dedicavam o seu tempo a pensar. A pensar, isso mesmo, o que hoje tanta falta faz.
Há, aliás, muito boa gente que tem o entendimento que a vida não está para filosofias porque hoje os tempos são difíceis e é preciso ter os pés bem assentes na terra, remetendo a filosofia para algo transcendental. Estou convencida que a maior parte das pessoas não tem se quer a consciência de que a filosofia existe ou que sirva para alguma coisa.
Sou suspeita de valorizar a filosofia, pelo simples facto de nos últimos anos do liceu ter optado pela disciplina de filosofia, não porque fosse uma área nuclear para a formação superior que iria mais tarde seguir – curiosamente a disciplina nuclear era matemática - mas porque já naquela época encontrava na filosofia uma ajuda para melhor compreender a Humanidade.
Reconheço que não é fácil definir o que é a filosofia e dar exemplos pragmáticos da sua aplicação, do auxílio que nos pode fornecer na leitura da realidade, na importância dos valores, no entendimento sobre a verdade ou do significado do raciocínio.
Na filosofia quase que não há conclusões, ao contrário do que se passa com as ciências exactas, como a física ou a matemática. Mas é esta característica distintiva que incentiva ao pensamento, a colocar dúvidas, a discutir a verdade e a rever os nossos argumentos e convicções e a fugir à tentação, tão em voga nos tempos que correm, de tudo considerar como um valor absoluto à luz de uma única verdade ou do nosso egoísmo que esquece os outros lados.
Reconhecer a fiabilidade humana obriga-nos a aceitar que podemos estar errados e, portanto, estamos disponíveis e interessados em rever continuamente os nossos argumentos, colocando-os em confronto com os dos outros ou com os nossos anteriores argumentos, em vez de recorrermos a uma retórica sedutora que procura impedir os outros de avaliar cuidadosamente as nossas ideias.
Deixo aqui esta passagem de um livro de leitura fácil e fascinante – “Filosofia em Directo” de Desidério Murcho – que nos ensina a importância da filosofia e nos mostra, para quem quiser ver, a falta que ela faz:

Ter uma formação elementar em matemática, economia, física e história, assim como nas artes e história das religiões, é importante para o ser humano informado e autónomo. Mas uma formação em filosofia não o é menos. Não porque sem filosofia seria as trevas e o caos, o que é historicamente falso, nem porque em filosofia se cultive uma apreciação dos pensadores do passado, porque isso é crer que fazer filosofia é o mesmo que apreciar filosofia já feita. Ter uma formação elementar em filosofia é importante porque nos ensina a pensar melhor sobre problemas de tal modo complexos que a tentação é desistir de tentar resolvê-los. Quem tiver não apenas plena consciência de que muitos seres humanos não desistem de pensar quando os problemas são muito complexos, mas tiver também uma ideia precisa, ainda que elementar, de como se pensa sobre esses problemas, terá ganho, se não autonomia intelectual, pelo menos a possibilidade de a obter.
Assim, a importância pública da uma formação, ainda que elementar, em filosofia é a possibilidade de ganhar autonomia para pensar por si, com rigor, em problemas difíceis. Queremos melhores decisões empresariais, políticas, sociais, económicas.- mas quando essas decisões não vêm nos livros estrangeiros, ficamos sem saber como proceder, envolvendo-nos em pseudodiscussões de lugares-comuns, com muita retórica e pouca substancia. Para resolver problemas difíceis, que não se resolvem com a aplicação mágica de receitas importadas, temos de aprender a pensar de forma criativa e rigorosa. Talvez não seja verdadeiro que quem é capaz de pensar com clareza e rigor nos problemas da filosofia fique automaticamente habilitado a pensar melhor em qualquer outro problema; mas é razoável esperar que a probabilidade seja mais elevada.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Os especuladores internacionais têm nome: chamam-se Sócrates e Teixeira dos Santos

Só agora pude ver o Boletim da Execução Orçamental de Janeiro. Verifiquei que o Governo mais uma vez nos quis enganar. De forma primária e grosseira. Em conluio com muita da comunicação social, que transcreve as notas governamentais.
E vi que, onde Sócrates e Teixeira dos Santos mandam e mexem, a Despesa aumenta sem controlo. Até, pasme-se, a Despesa com Pessoal, apesar dos cortes havidos!...
Aqui está o que li e vi (os aumentos referem-se ao período homólogo, Janeiro de 2010).
Despesas do Subsector Estado
Despesa corrente: aumentou 0,7% (aumento nominal e real); Despesa total efectiva: aumentou 0,9% (aumento nominal e real).
Despesas do Subsector Serviços e Fundos Autónomos
Despesa corrente: aumentou 5,1% (aumento nominal e real); Despesa total efectiva: aumentou 6,4% (aumento nominal e real); Despesa com Pessoal, pasme-se: aumentou 7,4% (aumento nominal e real)
Despesas do Subsector da Segurança Social
Despesa corrente: aumentou 4,9% (aumento nominal e real); Despesa total efectiva: aumentou 4,8% (aumento nominal e real).
Despesas da Administração Local
Despesa primária: diminuiu 5,6% (diminuição nominal e real); Despesa total efectiva: diminuiu 4,9% (diminuição nominal e real).
Execução Orçamental do Estado
Despesa corrente: aumentou 0,7% (aumento nominal e real); Despesa total efectiva: aumentou 0,9% (aumento nominal e real); Despesa com Pessoal, pasme-se: aumentou 4,9% (aumento nominal e real).
A Despesa só diminuiu na Administração Local. Onde Sócrates e Teixeira dos Santos comandam, é só a subir.
E se o défice melhorou, foi devido ao confisco feito aos contribuintes, através dos impostos. Situação não sustentável. Porque aumentos de receita de 15%, como em Janeiro, é confisco.
Por isso, as taxas da dívida sobem. Os especuladores internacionais têm um nome e morada: chamam-se Sócrates e Teixeira dos Santos e moram em Lisboa. E Ângela Merkel sabe a morada.

Los Días de Gloria II-O Totta e a preparação da visita a Cavaco


Num post de 18 de Fevereiro, referi a recente publicação do livro Los Días de Gloria, de Mario Conde, ex-Presidente do Banco espanhol Banesto, um enorme êxito editorial em Espanha.
Por alturas de Junho de 1993, Mario Conde confrontava-se com o aumento de capital do Banesto e não podia mais ocultar “um activo de semelhante envergadura" como a participação de 50% no Banco Totta & Açores.
Recorda-se que a lei portuguesa limitava, naquele caso, a participação de capitais estrangeiros a 10%. No entanto, através de diversos veículos jurídico-financeiros, o Banesto terá conseguido o controle de 50% do Banco. Como contributo para a memória de um assunto que tanta polémica suscitou, deixa-se um link para um artigo de 2009 do jornal i, que repesca essa matéria.
Mario Conde viu-se assim obrigado a dar conhecimento público e, oficialmente, ao Governo português dessa posição relevante do Banesto no Totta.
Para isso, e como forma de atenuar danos, pediu a intervenção de Gonzalez, ao tempo 1º Ministro, no sentido de preparar a sua visita a Portugal. Diz Mario Conde: “ao lado de Gonzalez, no mundo da política e das finanças, existiam personagens obedientes, disciplinadas, que viviam no projecto de Gonzalez, o que lhe permitia triunfar sem que eles participassem da sua glória. Mas comparticipar em projectos com alguém com presença sólida na sociedade espanhola era outra coisa. Apesar disso, decidiu ajudar-me…e comprometeu-se a discutir o assunto com Cavaco Silva, o 1º Ministro português"...
Todavia, com o anúncio de tal participação qualificada no Totta, armou-se tempestade, refere M. Conde. Aljubarrota de novo na primeira linha de fogo. Roquette, assustado, o Governador do Banco de Portugal, aterrorizado, Cavaco “cabreado como una mona”. Cenário de guerra.
Tinha que enfrentar-me com os acontecimentos, pegar o touro pelos cornos, e com muito susto no corpo, fui a Lisboa. Terça-feira, 20 de Julho, reuni-me com o 1º Ministro português...
A continuar…

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Silêncio

Nunca dei conta de que a porta fizesse barulho. Entrou a ondular os lábios, um sorriso silencioso que me fez sentir estranho, uma sensação de frescura num ambiente aquecido. Sentou-se lentamente, como que a pedir desculpa, mas sempre a sorrir. Olhei-a atentamente, e reparei que tinha olhos de águia, atentos a todos os pormenores. Moviam-se nervosamente em perfeito contraste com a lentidão estudada dos seus movimentos corporais. Esperou, sempre a sorrir, que lhe dissesse algo.
Diz o povo que “muito riso, pouco siso”, mas neste caso não tinha qualquer aplicação, porque o sorriso convidava à reflexão, emanava ternura e estava impregnado de um silêncio que queria falar. Os olhos, brilhantes, pareciam faróis a emitir sinais de ajuda e de receio. Não me foi difícil concluir que estava perante uma surda-muda. Sorri-lhe, e o seu sorriso alargou-se um pouco mais, enquanto os olhos se acalmaram, dando a perceber que eu já tinha compreendido o seu problema, sem palavras, apenas com um olhar e um sorriso.
Olhei para o seu abdómen, onde se elevava um balão de felicidade. Acompanhou o meu olhar e, com a mão, em concha, contornou-o, a confirmar, orgulhosamente, o seu estado. Tudo em silêncio. Quando comecei a ver as análises, com um olhar silencioso, mas expectante, perguntou-me se estava tudo bem. Disse-lhe com a cabeça que não. Levantei o dedo indicador da mão direita dizendo que havia um parâmetro que estava elevado. Curiosa, levantou os ombros, projetou a cabeça na minha direção, perguntando qual. Mostrei-lhe a folha e apontei para o colesterol. Foi então que ouvi uma espécie de vento gutural a sair das profundezas. Estremeci, porque não estava à espera daquele som. Entretanto, os lábios, transformados num círculo, foram projetados para a frente como que a afunilar a surpresa expressa pelo som cavo. Acompanhou este trejeito com a mão em concha sobre o seu ventre, querendo expressar que não podia fazer dieta ou terapêutica porque a filha estava em primeiro lugar. Depois, mais tarde resolveria o problema. Coloquei a minha mão sobre o abdómen. Acalmou-se, e voltou a sorrir. Olhei-a diretamente nos olhos, e esta combinação, mão e olhos, tinha por missão saber o tempo de gravidez. Ergueu as duas mãos e indicou seis. E a conversa silenciosa continuou. Ao sair, desejei-lhe felicidades para a filha, apontando para a barriga toda empinada. - Menina? Mas não me disse que era uma rapariga, pensei! Não consigo explicar esta certeza.
Enquanto a observava, fui inundado de sons e ruídos: águas do rio a correr nervosa e atabalhoadamente sobre os calhaus rolados do leito, vento a desassossegar as ramagens, sons humanos impercetíveis, ruídos mecânicos sobre a ponte, e muitos outros, alguns dos quais, normalmente, não me apercebo, o ranger da cadeira, o barulho do computador, o estalar do aquecedor a óleo, o bater da porta de outro gabinete, a água a correr nos canos, um canto de pássaro triste, o grito de uma criança na rua... Tantos sons e a senhora sem ouvir nenhum. Passar pela vida sem ouvir. Mas mais estranho é aquela criança que não ouve nem nunca ouvirá os sons ternos da mãe. Em contrapartida, saberá ler tudo o que vier à superfície da pele e o que os olhos deixarem escapar, e interpretará, como ninguém, gestos e movimentos, mesmo os mais fugazes e discretos. E a mãe? A mãe ouvirá os seus choros e pedidos de auxílio, tocando-lhe a pele, vigiando-a, dia e noite, com olhos de águia, sempre confiante numa “intuição” que nos escapa e que só o silêncio sabe produzir. Quantas conversas não irão ter, em silêncio, sem serem silenciosas?
A menina está bem entregue!

Para cá e para lá dos números...

O que nos deve preocupar, também, nos resultados da execução orçamental é a sua tradução na degradação do bem-estar de muitos portugueses, naquilo que é o acesso a bens e serviços essenciais que o Estado não cuida de garantir. Para cá e para lá dos números e do sobe e desce das contas estão pessoas e as pessoas.
A vida política ganhou, não por acaso, um tal grau de mecanização numérica que a avaliação dos resultados esquece e menoriza a sua tradução concreta na vida de pessoas. Por uns minutos lembremos o significado dos números:
- São os doentes que não têm dinheiro para adquirir os medicamentos prescritos ou recorrem ao crédito para puderem tratar os seus problemas de saúde;
- São os doentes que não têm dinheiro para se deslocarem aos hospitais ou centros de saúde para fazerem tratamentos médicos necessários porque lhes é incomportável o custo do transporte em ambulância ou outro alternativo;
- São os estudantes universitários que não têm dinheiro para continuarem a estudar porque perderam ou viram reduzidas as bolsas da acção social escolar;
- São os desempregados que procuram emprego e querem trabalhar que perderam o direito ao subsídio de desemprego ou a ele nunca tiveram direito.
E a lista não fica por aqui, mas é suficiente para nos envergonharmos com um Estado Social que de social já pouco tem, quando não é capaz de apoiar condignamente as pessoas pobres e com rendimentos baixos, com vulnerabilidades várias. Para que nos serve um Estado Social assim?

Uma quadra à solta

Não sei porquê, mas hoje não me sai da cabeça esta quadra

(Ó i ó ai) Nós queremos é justiça
(Ó i ó ai) E dinheiro para o bife
(Ó i ó ai) E não esta cóboiada
Em que tudo é tudo do xerife

(até ver...)

Nostalgia das cantigas de intervenção?

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Teimosia ideológica

Como noticiado na edição de hoje do Público (p.10) o PS lançou ríspidas críticas ao projecto de lei do PSD que visa introduzir algumas medidas de flexibilização no mercado de trabalho. Segundo o PS, tais medidas, ao invés de promover o emprego, só trariam maior precariedade aos trabalhadores, sobretudo os jovens. Esta posição do partido do governo constitui uma teimosia ideológica sobre um tema sensível: no caso vertente, o elevadíssimo nível de desemprego dos jovens. Isto porque:

1. Variadíssimos estudos teóricos e empíricos mostram que as barreiras ao desemprego são deletérias da criação de emprego e, logo, do nível agregado do emprego de um país. A intuição destes resultados é simples: quanto mais difícil for reverter uma contratação, menor será a inclinação dos empresários em contratar. É este efeito que o projecto de lei do PSD visa remediar.
2. O nexo referido no ponto anterior explica porque razão o desemprego entre os jovens é tão elevado em países onde a lei laboral é mais rígida, como Portugal e Espanha: a sua menor experiência profissional (menos provas dadas) torna cada jovem – individualmente considerado – um risco maior para a entidade recrutadora.
3. Conforme notou (e bem) Miguel Macedo do PSD, o status quo em matéria laboral – de autoria do actual governo – produziu uma discrepância inaceitável entre a taxa de desemprego do jovens e a dos restantes grupos etários.
4. A gravidade da situação que a iniciativa legislativa do PSD pretende pôr cobro é tal que a OCDE – instituição que o primeiro-ministro não se cansa de invocar; quando lhe dá jeito, claro – a elege como principal constrangimento ao crescimento da produtividade da economia portuguesa.

O dito projecto de lei do PSD não só é acertado pelos seus méritos ‘técnicos’, como também é extremamente oportuno, num contexto em que urge dinamizar o mercado de trabalho, tendo em vista o aumento da competitividade da nossa economias, mas, acima de tudo, a promoção do emprego dos jovens – cujas dificuldades de inserção mercado de trabalho, o PS tão despudoradamente está a explorar.

A liderança do PSD faz bem em manter-se firme em torno deste projecto. Se algum reparo merece o projecto de lei é o carácter transitório das medidas nele consagradas. Em jeito de recomendação, penso crucial ser feito um esforço de esclarecimento dos seus méritos perante o público.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A raiz macroeconómica das revoltas árabes

Não é preciso ser um especialista para saber que os países muçulmanos a braços com revoltas das populações eram dominados por regimes cleptocráticos e brutalmente repressivos; daí que, surpreendente seja a durabilidade destes regime, não a sua deposição. Mas, porquê, precisamente agora?

A resposta reside, em grande parte, no consenso monetarista que prevalece nas cúpulas dos bancos centrais e que ditou o pendor ultra-expansionista assumido pela política monetária global, com particular incidência nos EUA. Acontece, que em virtude da ligação dos regimes cambiais da generalidade das economias emergentes ao dólar americano, a liquidez injectada em doses massivas pela Reserva Federal (Fed) norte-americana se transmitiu automaticamente a economias como a China, a Índia ou o Brasil, tornando o famigerado quantitative easing da Fed a política monetária de quase todo o mundo. E, então?

A liquidez criada a rodos pelos bancos centrais ‘a partir do ar’ tem como consequência inescapável a depreciação da moeda: ou seja, a perda de valor do ‘dinheiro’. Para quem não se apercebe deste fenómeno – sofre de ilusão monetária -, a maior quantidade de moeda gera a sensação de aumento de riqueza, que tem como efeito estimular a actividade e, logo, promover o crescimento económico; mas só enquanto a ‘ilusão’ durar. Quem, pelo contrário, se apercebe deste fenómeno imediatamente, investe a liquidez excedentária injectada pelos bancos centrais em activos reais – aqueles que não perdem valor com a depreciação do ‘dinheiro’, como as commodities. Ora, a aparente retoma da economia global e a maior preferência por activos reais determinaram a explosão da procura por commodities, o que justifica a acentuada valorização do ouro e das restantes matérias-primas, incluindo as alimentares. E a relação disso com os árabes?

O alcance global da explosão da liquidez exacerbou a subida dos preços da alimentação, pondo em causa a sobrevivência de centenas de milhões de pessoas que viviam no limiar da pobreza - circunstância particularmente aviltante em países que, por via das seus vastos recursos primários, muito beneficiam do ‘ciclo altista’ das commodities, mas onde a fome se tornou endémica pela natureza usurpadora do regime político. É neste sentido que o encarecimento dos bens alimentares inerente à valorização das commodities em resultado da política monetária da Fed constitui o principal determinante no timing das revoltas árabes.

Até ao momento, existe um claro padrão de afinidade étnica, cultural e religiosa no processo de contágio da chama revolucionária. Mas existe o risco que as tensões sociais proliferem para além da orla meridional da bacia mediterrânica. Os focos de vulnerabilidade ocorrerão onde coexistirem fome e governos usurpadores. A continuar assim, cada vez haverá menos países onde assim não seja - os governantes (e respectivas cliques) que se cuidem!

Défice de credibilidade ou excesso de loquacidade?

1.O ex-Ministro das Finanças Campos e Cunha, em entrevista a um jornal on-line, lança hoje um duro ataque ao PM, acusando-o de não ter credibilidade, de os mercados não atribuírem qualquer relevância às “boas” notícias que com tanto empenho (e reduzido proveito para os cidadãos, há que reconhecer...) vem proclamando.
2.A questão suscitada por C. e Cunha tem especial oportunidade com o episódio da divulgação das notícias sobre a execução orçamental de Janeiro último, que, apesar de o PM ter transformado num assinalável sucesso e aproveitado para lançar (mais uma) grande operação mediática, parece não terem produzido qualquer impacto nos mercados...ou produzido mesmo um impacto negativo...
3.Esta observação de C. e Cunha vem de encontro a algumas reflexões que tenho feito sobre este tema e que, conduzindo porventura à mesma conclusão, partem de elementos de análise distintos.
4.Com efeito, tenho a percepção de que a alegada “falta de credibilidade” de que fala C. e Cunha não é uma criatura órfã...ela resultará, “prima facie” e na minha perspectiva, de um anormal excesso de loquacidade, uma espécie de “loucura mediática”...
5.Esta “loucura mediática” é uma doença típica dos nossos dias, caracterizada por uma obsessão incontrolável na divulgação de notícias a propósito de tudo e de nada – e de que a maioria dos dirigentes políticos (os governamentais em nível máximo) apresentam sintomas muito avançados...
6.Este anormal excesso de loquacidade – ou esta “loucura mediática” – tem como resultado, entre outros, o inevitável desgaste do valor da mensagem que se pretende passar, cujo impacto junto dos destinatários vai declinando com o tempo até à completa ineficácia...ou pior ainda, a uma rejeição liminar.
7.E o declínio do impacto é mais célere junto de públicos mais esclarecidos, como é o caso dos mercados, que se habituaram a ver neste tipo de mensagens meros propósitos propagandísticos muito frequentemente desmentidos pela realidade superveniente...
8.Tenho pois a percepção de que o excesso de loquacidade ou a tal “loucura mediática”, no caso do PM em particular atingiram um nível tão elevado que não surpreenderá que as suas mensagens tenham um resultado oposto ao pretendido...
9.E é daí que deriva o défice de credibilidade – já quase ninguém (talvez só mesmo os apaniguados mais solidamente instalados...) dará crédito a esta mensagem da “excelente execução orçamental” de Janeiro, pois tem-se a noção de que ou se trata de números pré-fabricados ou de que, mais à frente, outros números virão alterar o “cenário-rosa” que com estes se pretendeu exibir...
10.Estranho muito que não haja ninguém nos meios do poder a aconselhar os responsáveis governamentais, “maxime” o PM, a serem mais prudentes e comedidos na divulgação destas mensagens...só teriam a ganhar com isso...ou será que entendem já não valer a pena, que a “doença” é mesmo incurável?

As revoltas indecifráveis


Khadaffi fugiu, Khadaffi fugiu, Alá é grande!, gritava um homem por cima de uma multidão em fúria que hasteava a bandeira monárquica na Líbia. Não se sabe se fugiu ou não para junto de Hugo Chávez, porque logo se seguem imagens do Bahrein, onde as multidões em fúria clama contra o rei, do Egipto já não se fala tanto, os militares aguentam enquanto podem, mas da Tunísia chegam barcos carregados que despejam milhares de pessoas na minúscula ilha italiana de Lampedusa. A Itália grita por ajuda, a Europa de colarinhos brancos diz que esperem um bocadinho que vão pensar o que fazer. Os jovens tunisinos são entrevistados no cais, gritam ao microfone “a revolução foi há um mês, já passou um mês e ainda não aconteceu nada, continuamos sem emprego, queremos trabalho na Europa”. Obama faz uns discursos estranhos, apela à coragem da revolta e apoia a luta pela liberdade mas o medo de não ter a certeza do que vai desencadear é bastante nítido. Yemen, Argélia, Jordânia, Irão, as imagens são sempre as mesmas e é preciso procurar os letreiros para saber o que é que aconteceu hoje, e onde.
O nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros falou de um movimento islâmico, muito agressivo, que virá por em causa o nosso modo de vida e os nossos valores ocidentais. Pareceu-me sinceramente preocupado. Outros dizem que não, leia-se Olivier Roy no Le Monde "Revolutions post-islamistes2 ou Eduardo Lourenço no Público de hoje ( "À Margem das revoluções islamistas..." p. 29) isso da Democracia como valor universal é a arrogância do Ocidente ou a “eterna vocação de converter” e que o “nosso” universalismo ficou à porta dos países árabes, vivemos de costas voltadas, fomos incrivelmente apanhados de surpresa e descobrimos que sabemos muito pouco deles, desses países que agora vimos a revoltar-se como um rastilho imparável e que só sabemos interpretar de acordo com a nossa experiência ou a nossa cultura ou religião. E com os nossos medos, que julgávamos bem defendidos pelas barreiras nos aeroportos, pelas leis da imigração, pelas ajudas ao desenvolvimento, sem reparar no fermento que fazia crescer a massa da revolta de milhões de pessoas, sobretudo jovens, que têm pressa de viver melhor. O tempo da política é lento, muito mais lento do que a net, os face book e as televisões, eles empurraram o tempo e a política ficou paralisada, não contava com isso e não encontra nos seus dicionários correspondência ao que ouve gritar no “mundo árabe”. E ao ver as imagens desfilar em catadupa nas televisões perguntamo-nos se a Europa não está há demasiado tempo sentada à secretária, a ler papéis e a fazer relatórios, a discutir pactos de competitividade e a medir orçamentos, enquanto o mundo se transforma radicalmente os preços do trigo, do algodão, do milho, do petróleo, do açúcar, do café, sobem em flecha, cavando ainda mais das ondas alterosas das revoltas indecifráveis.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

D. João III

As novas tecnologias são um encanto. Aderi ao Kindle, aos livros eletrónicos, comprei alguns de forma ultrarrápida e adquiri muitos de forma gratuita. Destes últimos destaco “Noites de Insomnia offerecidas a quem não póde dormir” de Camilo Castello Branco, autor que já não lia há muito tempo. O livro, de 1874, tem a ortografia própria da época, facto que só por si me fez recordar a sua substituição por formas mais modernas. Será que na altura houve quem se insurgisse contra o novo acordo?
Li as curtas crónicas, mas houve uma, D. João III, a quem Camilo apoda, erradamente, de “O Príncipe Perfeito”, em que é feita a descrição dos últimos dias de vida, da morte e do funeral do rei com base na transcrição de “Trabalhos de Jesus” de frei Tomé de Jesus, que andou em Alcácer-Quibir com o D. Sebastião, tendo sido ferido, feito prisioneiro e recusado o resgate. Numa das passagens, tirando as três longas horas em que esteve a confessar-se, antes de morrer, sinal de que deveria ter muitos pecados, frei Tomé de Jesus, ao amortalhá-lo, confessa que “quando o descobrimos estava mais feio, e mais preto do rosto, e mãos, o mais sujo, e o mais nojento, e em fim o mais mortal e terreno, que eu vi outro, e eu tive aquelle pelo mór espectaculo...”. Camilo, na parte final escreve: “Está visto que o principe perfeito (novamente o erro do cognome), flagello dos israelitas, morreu bastante fedorento, revessando postema esverdinhada e envolto em uma camisa chagada e esqualida, que fez engulhos ao bom do frade”. Não poupa críticas quanto à raiva que D. João III tinha contra os judeus, “diabetes que se dessedentava em sangue”. Não sei se queimou trinta mil inocentes, como ele afirma, mas seja como for foi um perseguidor implacável de judeus.
Ao ler este texto, lembrei-me de imediato da estátua do rei, que está no pátio dos Gerais, como testemunho da instalação definitiva da Universidade em Coimbra. Mas há mais. Há alguns anos, recebi um telefonema de Jerusalém, de um colega israelita que queria vir a Portugal com a nora e o neto, e que apreciaria muito visitar a Universidade. Coloquei-me de imediato à sua disposição, e, no dia aprazado, levei-o a ver a cidade. Fiz, como é natural, o percurso turístico, tendo ficado satisfeitos, exceto quando lhes mostrei o museu dedicado à arte sacra. Aqui, a senhora manifestou um profundo incómodo e pediu-me se poderíamos abandonar o local, porque não conseguia compreender como era possível adorar alguém pregado na cruz. Fiquei surpreso e perguntei-lhe: - Compreendo, mas não consegue visualizar ao menos algum sentido estético? Olhou-me com olhos expressivos e tristes, dizendo que não conseguia ver beleza na dor, na tortura. Saímos de imediato, cogitando com os meus botões que já tinha metido a pata na poça. Eram judeus! Tinha-os convidado para almoçar, e fomos até ao Buçaco, pensando como iria responder às perguntas sobre a gastronomia da região. Omiti, deliberadamente, o leitão da Bairrada, e disse umas tretas quaisquer focando mais a doçaria portuguesa.
Enquanto estávamos no pátio, que acharam formidável, olharam para o D. João III e perguntaram-me quem era e o que tinha feito. Expliquei-lhes algumas coisas, mas omiti o seu “frenesim que rebentava em raivas contra os judeus”. Encantados, tirámos várias fotos sempre com o “feio” por detrás. Só espero que não se tenham lembrado de saber quem foi o tal D. João III, porque, quanto à obra de Camilo, que poderia denunciar a situação, não terão, com toda a certeza, tido acesso. Espero eu, porque se souberem, decerto, já terão feito em mil bocados as fotografias do rei “piedoso”, que de piedoso não tinha nada e de “perfeito” muito menos.

Definitivamente, assim não!



Não ouvi na íntegra a entrevista do senhor PGR ao programa "Gente que Conta" do Diário de Notícias/TSF. Ouvi somente trechos dessa entrevista em que o mais alto responsável pelo Ministério Público  uma vez mais afirmou que tem os poderes da rainha de Inglaterra, que existem escutas ilegais, que o segredo de justiça é uma fraude, que a instituição que dirige não pode fazer nada para fazer cumprir a lei que o impõe, e que os partidos querem resolver "questões políticas através de processos judiciais", acrescentando que "é a pior prática que pode haver para a justiça em Portugal".
Estou de acordo com muito do que, desta forma abstracta, disse o senhor Juiz Conselheiro Pinto Monteiro. Mas também por isso não entendo que quem tem o dever constitucional de defender as leis que existem e que visam proteger o cidadão contra a devassa da sua vida privada, elegem o segredo de justiça como valor e proíbem a interferência da política na justiça (e vice-versa, já agora), se mantenha no cargo depois desta brutal confissão pública de impotência.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Solidão tecnológica...

Depois dos vários casos que vieram a público de pessoas idosas que morreram nas suas casas em solidão e aí permaneceram anos, meses ou semanas, sem que fossem assistidas ou visitadas, logo apareceram várias entidades a anunciar que estão a estudar, ou já implementaram, um sistema de “acompanhamento à distância de idosos ”, utilizando para o efeito "pulseiras tecnológicas". Que estranha forma de olhar a solidão, que visão desumana é esta de tratar as pessoas como se fossem máquinas.
Claro que ouvir uma voz algures num call center, sabe-se lá a quantos quilómetros de distância, é melhor do que nada. Claro que ter à mão um botão vermelho para carregar em caso de emergência ajuda a ultrapassar o sentimento de insegurança que o isolamento provoca e pode permitir uma resposta mais rápida dos serviços de saúde em caso de doença súbita.
Mas nenhum destes processos, possíveis graças aos avanços tecnológicos, substitui o calor humano de uma família e das redes de vizinhança ou resolve coisas tão fundamentais como a alimentação ou a higiene diárias.
Os afectos, um olhar, um olá que seja, um apertar de mão, um beijo ou um abraço não têm substitutos tecnológicos. Mal vai a nossa sociedade quando pensa que a integração social das pessoas idosas e o respeito pela dignidade humana se resolvem com call- centers...

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Magia

“Hoje deu-me para escrever... Há já alguns dias que o tenho feito! Vê se gostas...”
Abri o anexo e deparo-me com um poema. Tinha encanto, magia, e conseguiu sugar-me para um mundo diferente, desconhecido, esquecendo dores e tormentos. Voltei a ler as palavras, os versos, e vi que tinham algo de diferente. Lembrei-me de ter lido que a poesia é filha da magia e foi com o objetivo de mudar o mundo, e alcançar o inatingível, que o homem começou a praticá-la. Sem palavras não é possível realizar práticas mágicas. Talvez seja por isso que certos rituais usam expressões e frases estranhas, repetitivas, no eterno esforço de procurar as palavras sagradas que permitam abrir novos mundos, que permitam compreender o que nos escapa, quer à razão quer à fé. Não há sociedade que não as procure, não há língua que as não deseje e não há poeta que não as sinta. Mas onde param essas palavras misteriosas? Que pergunta! É fácil, basta compreender a língua dos pássaros, linguagem mística e divina, perseguida em todos os cantos do mundo e em todos os tempos.
Não importa como, nem quando, o homem começou a falar, mas estou convencido de que foram os pássaros os iniciadores da mais importante característica humana, o uso da palavra. Os poetas sabem que existem palavras mágicas e fazem tudo para as encontrar, até afogarem-se nelas, despertando noutra dimensão. Procuram o poema perfeito, que, penso que foi Borges quem o afirmou, mas se não foi, decerto, não se incomodará com a paternidade, deverá caber numa palavra.
Li o poema e, de madrugada, ouvi, surpreendido, o canto de um pássaro. Quando os dias começam a espraiar-se, costumo ouvir cantos de aves na madrugada. Curioso, pensei, este ano o pássaro veio mais cedo, mas o seu canto é diferente, mais lindo e mais suave. Não pode ser o mesmo.
Estou habituado ao canto de um pássaro que, todos os anos, me avisa de um novo ano, não cronológico, porque o seu calendário é diferente. Começa aos soluços. Aparece um dia, depois não aparece e em seguida volta a aparecer com regularidade crescente, até substituir o relógio. Inicialmente canta um bocado, calando-se em seguida. Volta a cantar, prolongando a sua oração durante mais tempo e diminuindo as pausas. Ao fim de algum tempo, canta ininterruptamente, não me deixando dormir, ou melhor, eu é que não quero dormir para o ouvir. Há qualquer coisa de mágico no seu canto que me encanta. E quando se cala, vejo, pelo canto do olho, que o dia já despontou. São horas de levantar, mas adormeço, e em quinze minutos durmo como se tivesse dormido muitas horas.
Já ouvi um pássaro a cantar este ano, mas o seu canto é diferente do habitual. Às tantas, pensei, o outro deverá ter morrido, mas antes de morrer deverá ter pedido ao seu irmão para continuar com as suas lições misteriosas de ensino da língua de pássaros, a língua mágica, cujas palavras sagradas permitirão solucionar todas as aspirações humanas. Eu ouço-as, sinto que são belas, mas não consigo aprendê-las. Tenho que me agarrar às palavras dos poetas, porque são os únicos que as conseguem reproduzir, mesmo que por escassos segundos.
Veio então à memória os últimos versos da poetisa.

Como queria ser diferente,
Como queria ser melhor
Como queria ser eloquente,
Como queria não ter dor…

Sou o que sou
Sou o que me ensinaram
Alguém me abençoou…
A alma e a vida assim cantaram!

Temos que nos "resgatar"...

Durão Barroso afirmou ontem numa entrevista ao canal “BBC 2” que a União Europeia está pronta para resgatar financeiramente Portugal. Uma afirmação que não passou despercebida entre nós e que já está a ser alvo de especulações. Mantêm-se as opiniões divergentes a este respeito. Mas não faltará muito tempo para sabermos. Uma coisa é certa. Precisamos de reinventar a nossa economia e rever o papel do Estado. Fazê-lo implica uma mobilização ampla da sociedade, uma base alargada de seguidores.
O clima de instabilidade política em que vivemos, a crise económica e os problemas sociais que se estão a avolumar, com uma parte significativa da população a passar grandes dificuldades e sem esperança, não ajudam a essa mobilização.
Com ou sem resgate financeiro, precisávamos de acreditar que desta vez vamos conseguir, por estarmos convencidos, o País, do que temos para fazer, como o vamos fazer, quanto tempo vamos precisar e como serão distribuídos os custos e os benefícios entre os vários sectores da sociedade.
Reside aqui um dos nossos grandes problemas. É que há muito que não sabemos para onde vamos. Não há estratégia, há uma grande volatilidade das políticas, há falta de consistência intertemporal nas opções políticas, prevalece o horizonte conjuntural sobre o estrutural, actua-se reactivamente sem tratar de actuar em antecipação, há, em suma, falta de rumo e de liderança. Uma empresa com estas fragilidades não consegue sobreviver, vai à falência. O Estado é como uma grande "empresa".
Entre nós sempre existiu a ideia de que o Estado nunca vai à falência e por isso há sempre uma solução de último recurso, estamos sempre salvos. Nem o Estado nos pode mais salvar, nem podemos continuar a pensar que o Estado é a solução. As nossas crises mostram-nos de forma cristalina que temos que mudar a forma de pensar o País. Temos que nos "resgatar"...

A nova moral de Sócrates

Até aqui, criticar o Governo era acto anti-patriótico, ao jeito de tempos que já vão.
A partir de ontem, dizer a verdade sobre as mentiras do Governo é também acto de má educação.
Uma nova moral política, a moral de Sócrates. E a frase que a estabeleceu é modelo perfeito do novo paradigma.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

"A nossa plataforma está a arder"

Chamaram-me a atenção para este memorando dirigido pelo CEO da Nokia aos trabalhadores quando se percebeu que a empresa começou a perder a competição. Vale a pena lê-lo e perceber que a primeira condição para dar a volta por cima é assumir a verdade e enfrentar os problemas com intenção de os resolver e não com a ideia de os esconder à espera que desapareçam por si.
Haverá por aí alguma alminha caridosa que faça chegar o texto ao PM?

Los Días de Gloria-poderosa descrição da sociedade espanhola


No fim do ano passado estava em Espanha no momento em que era lançada a 3ª edição do livro de Mario Conde, Los Días de Glória, que, numa semana, vendeu 100.000 exemplares. Como é sabido, Mário Conde, originalmente abogado del Estado, teve uma carreira profissional vertiginosa, tendo chegado a Presidente do Banesto antes dos 40 anos, no princípio da década de noventa do século passado. Por razões que se prendem com a sua actuação no Banesto, mas que ele nega, esteve vários anos preso. Publicou vários livros, sendo este, Los Días de Gloria, o último.
É um livro enorme, 860 páginas, mas é sobretudo um livro onde perpassa toda a grande sociedade espanhola dos anos oitenta e noventa, das grandes famílias da banca e da indústria aos líderes políticos do governo e dos partidos, descrição poderosa do processo de decisão empresarial que não dispensava a anuência prévia do Ministro da Economia ou de outros institutos públicos, numa teia de compromissos onde o financiamento partidário era conteúdo obrigatório. As figuras que intermediavam este tráfico de influências, que previamente estudavam profundamente os dossiers e apresentavam propostas concretas de actuação sobre os decisores políticos ou do Banco de Espanha, utilizando personalidades do governo ou da oposição conforme o conhecimento ou grau de influência necessário. A influência da imprensa, e a figura de Jesús Polanco e da Prisa, de que recentemente tanto se falou em Portugal, como braço armado do governo socialista na comunicação social.
Na altura, porque trabalhava num Banco em Portugal participado por um dos maiores bancos espanhóis e ia várias vezes a reuniões à sede deste Banco a Madrid, acompanhei a saga de Mario Conde, assunto obrigatório de conversa nos faustosos almoços oferecidos pelos colegas espanhóis, em honra da sua tradicional hospitalidade.
Mas creio que até para eles, apesar do alto estatuto e dos elevados cargos que detinham num concorrente do Banesto, muita da matéria relatada constituirá enorme surpresa.
Relatarei, num próximo post, a descrição de uma reunião entre Mario Conde e Cavaco Silva, em 1993, sobre o aumento da participação do Banesto no Totta, em que Mario Conde descreve um Cavaco “altivo, orgulhoso, distante, soberbo” e como foi despachado em poucos minutos, ficando de mãos a abanar.
Los Días de Gloria, um livro necessário para conhecer a sociedade, o regime, a política e a economia de Espanha. Onde Mario Conde não poupa nas palavras e nos nomes.
Los Días de Gloria, Ediciones Martínez Roca, Paseo de Los Recoletos, ,4- 28001 Madrid.
www.mrediciones.com

Retórica da Desculpabilização entra em fase "patética"...

1.“Portugal está a fazer o seu trabalho, a Europa tem ficado aquém”...Esta frase consta de uma declaração pública, feita esta emana por um membro do Governo...lê-se mas já não se acredita, é caso para dizer.
2.E já não se acredita porque esta frase, na sua simplicidade e no seu imenso simbolismo, traduz ou ilustra um estado de espírito que tem animado os nossos governantes desde há uns anos a esta parte e que, em resumo, se pode caracterizar nos seguintes pontos:
(i)fuga sistemática às responsabilidades;
(ii)horror à verdade;
(iii)criação sucessiva de falsas expectativas e uso e abuso de explicações “esfarrapadas” quando, a jusante, essas expectativas acabam goradas;
(iv)procura incessante de culpados externos (mercados, agências de rating, especuladores, americanos que conjuram contra o Euro e, por fim, a Europa...) para aquilo que é obviamente nossa responsabilidade em primeiro lugar;
(v)não assumir nunca a humildade de reconhecer os erros cometidos como se fosse razoável esperar que os cidadãos devam acreditar na infalibilidade dos governantes...
(vi)procurar dissimular os factos comprovativos dos insucessos das políticas...
(vii) etc,etc,etc...
3.O que é que a Europa deveria fazer, para “não ficar aquém”? Pagar as nossas dívidas, agora que estamos afogados em dívidas? Agora é que nos lembramos de pedir “socorro” à Europa?
4.Mas será que, quando contraímos essas dívidas pensamos bem no que estávamos a fazer? Porque não pedimos o "aval" dos nossos parceiros europeus na altura em que tratamos de contrair essas dívidas - estávamos distraídos?
5.E quando ratificamos e assinamos o Tratado da União Europeia não nos apercebemos que havia lá uma disposição proibindo o “bail-out” dos países que fossem membros do Euro?
6.Ou assinamos e ratificamos esse Tratado, nomeadamente com as alterações aprovadas em 2004, pensando que seria um documento sem qualquer valor vinculativo, apenas para ter mais uns motivos de festejo e para podermos dizer garbosamente, como tantas vezes ouvi, que pertencíamos ao pelotão da frente do Euro?
7.Também esta semana, outro membro do Governo (feminino,aqui há pelo menos pluralismo), afirmou que “o desemprego é consequência da crise económica e não do insucesso das políticas”...
8.Como instrumento de “decoupling” completo e total entre as políticas e os seus resultados, esta frase merece ser emoldurada e colocada em todas as repartições públicas...
9.Por tudo isto, o título deste Post: a Retórica da Desculpabilização entrou, decididamente, numa fase "patética"...que mais nos restará ouvir?

Uma questão de quantidade?

Está realmente instalada a ideia de que o acto de governar se mede pela produção legislativa. Fazer decretos-leis e publicar portarias é sinónimo de governar. É o primado da quantidade sobre a qualidade. Muito à portuguesa. Gostamos de números e estatísticas e descoramos a qualidade. Faz parte da nossa cultura. A qualidade é mais difícil de obter e medir. Não impressiona os cidadãos. Nada como os números e as estatísticas e a manipulação das décimas e centésimas, ora para cima, ora para baixo, para explicar o inexplicável, quando convém.
Um dos nossos problemas é justamente legislarmos demais. Por aqui também se avalia a costela intervencionista do Estado e se percepciona uma cultura desresponsabilizante. É um sinal de falta de maturidade.
Tal é a diarreia legislativa, que de vez em quando, para dar uma de eficiência executiva, nada como varrer o lixo de legislação que se vai acumulando pelos cantos da governação. Tudo a bem da quantidade legislativa...

Os sonhos desfeitos


Ouvimos falar da “bolha imobiliária” mas ela quase desapareceu no rol daqueles factores abstractos associados a engenharias financeiras que conduziram o mundo ocidental à grave situação de que ninguém sabe ao certo como sair. Mas o artigo publicado esta semana no “El País semanal”, intitulado “Aquí vivo solo” leva-nos a conhecer a incrível realidade dos factos. Milhares de casa vazias em bairros semi construídos, destinados a outros tantos milhares de pessoas que só existiam nos planos dos construtores e de quem autorizou as urbanizações. Os números da loucura interrompida são impressionantes: 565.000 casas prontas à venda, 290.000 em construção, 360.000 com as obras paradas, em projecto 1.073.670 e terreno urbanizado preparado para 1.342.435. Os nossos vizinhos espanhóis teriam casas novas para mais de 3,5 milhões de compradores.
O pior é que não foi só um problema de paisagem lunar, uma espécie de filme do impossível, o que é impressionante é vermos a vida a que ficaram condenadas muitas famílias, sobretudo casais jovens, que empataram as suas vidas com créditos para se verem agora no meio do nada e sem solução possível a não ser abandonar tudo e começar de novo, mais pobres. Urbanizações projectadas para 30.000 pessoas ocupadas por pouco mais de mil. Um prédio semi habitado entre dezenas e dezenas por acabar ou impossível de vender, toda a organização que suportaria a vida normal de uma enorme concentração de gente ficou suspensa, transportes, o resto das infraestruturas, escolas, tv cabo, recolha do lixo, tudo o que damos como garantido quando compramos uma casa novinha em folha num bairro anunciado como um oásis perto do centro. Um deles até tem campo de golfe, as vivendas por acabar parecem esventradas e no meio delas a única que tem sinal de vida, habitada por um casal que teve o azar de decidir pouco antes do desabar de tanto delírio. Em breve aquelas cidades fantasma deixarão de ser uma prova fresca do sonho que se vivia para passarem a memória de um pesadelo, a prova provada da loucura colectiva que, em poucos anos, arruinou países e vidas sem precisarem de outra catástrofe que não a das ilusões de uns e a ganância de outros.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Sacudir a água do capote

O PIB contraiu-se 0,3%, o desemprego ascendeu ao nível mais elevado desde, pelo menos, o início da década de 90, há greves e manifestações nas ruas, mas, de acordo com o ministro da presidência, a culpa da escalada das taxas de juro da dívida pública portuguesa é da “Europa”: dos seus atrasos e hesitações na rápida criação de um mecanismo de resgate para os países da área do euro em dificuldades financeiras. Pouco importa que tenha sido o governo português a endividar-se para lá do razoável; pouco importa que o BCE tenha já ajudado – e muito – a controlar os custos de financiamento da nossa dívida soberana; o que importa é que a solução saia depressa. Porquê? Porque, caso contrário, o risco de necessidade de recurso imediato ao auxílio externo aumenta exponencialmente, o que, podendo ser financeiramente benéfico para o país, provocaria a capitulação do actual executivo.

Mesmo depois destes anos todos, não deixa de me surpreender a mentalidade dos governantes socialistas, a qual se pode resumir no mote: “gasta-se o que for preciso, alguém há-de pagar” – normalmente são os contribuintes lusos, mas na impossibilidade destes, há sempre os alemães, os finlandeses, etc.

Mas o que me causou maior perplexidade foi a forma olímpica como o governo “sacudiu a água do capote”, atribuindo a responsabilidade das dificuldades financeiras do país a uma suposta falta da “Europa” – é preciso lata!

A evidência

"O destino dos governos minoritários é, normalmente, acabarem por ser derrubados por uma moção de censura, votada por sectores diversos da oposição". Esta frase dita pelo Professor Freitas do Amaral teve grande repercursão nos media. O distinto professor limitou-se, porém, a verbalizar uma evidência, que aliás a história recente do Portugal democrático confirma.
Porque esta instabilidade essencial aos governos minoritários é uma evidência, torna-se muito inquietante que continuemos a gerir o futuro do País como se a realidade política fosse radicalmente diferente da que é. Nada pode explicar que um governo fraco, cujos membros vão deixando cair, aqui e ali, confissões de impotência perante as dificuldades, considere que mantém condições para continuar a conduzir os destinos do País. Como se percebe mal que alguns dirigentes da oposição esperem pelo apodrecimento total da situação, para colherem os frutos. Quem, em boa consciência ou no seu perfeito juízo, prefere colher frutos assim? Só quem se deixou cegar pelo poder a tal ponto que não vislumbra que é verdadeiro suícidio aceitar exercê-lo quando o caos se instalou.
Entendo bem que a perspectiva de novas eleições não contribua para melhorar a situação económica e social. Mas já não percebo como é que lideranças partidárias não colocam em nome do interesse nacional aquela alternativa a eleições que é tão óbvia como evidente é a fragilidade deste governo: um acordo alargado entre os partidos gerador do apoio maioritário a um Executivo plural na sua composição,constituído numa base programática consensual sobre medidas essenciais para superar a crise.
Difícil de obter esse acordo no actual quadro parlamentar? Não, se os dirigentes partidários pensarem mais no País e menos em si próprios ou nos grupos que chefiam.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A manipulação dos tempos


Da manipulação de factos, já estávamos habituados à prática. Mera rotina.
Começou uma nova era: a da manipulação dos tempos.
Curioso, muito curioso, informativo e muito esclarecedor, o post de Francisco José Viegas no A Origem das Espécies.
Face ao que se passa nos jornais, como era aprendiz o Ministro da Propaganda de Sadam Hussein!...

Esquecimento

Conheço muitas pessoas que carregam a dor da tragédia, a perda de um amado ou a falta de um amigo embrulhados em papel de esquecimento, duro, rugoso, o suficiente para esconder o conteúdo durante o tempo que lhes resta na incessante procura de futuras, mas fugidias, belas memórias. Uma forma de “esquecer”, que a mente humana sabe utilizar, relegando as más memórias para lugares onde não possam causar muitos danos, uma bênção. Abençoado esquecimento, fingido, mas, mesmo assim, duplamente abençoado. Que seria de nós se não fossemos capazes de esconder o sofrimento fechando-o a sete-chaves nas gavetas da memória? Enlouquecíamos!
É pena que esta capacidade em não recordar se estenda a outras situações. Nos últimos tempos têm sido relatados casos de pessoas idosas que morreram esquecidas, que não é mais do que a expressão de uma faceta cruel da forma de ser e de estar de muitos humanos. Muitos esquecem-se dos mais idosos, outros esquecem-se, rapidamente, de quem lhes deu a mão em momentos cruciais, há quem se esqueça do seu passado, substituindo-o por algo grandiloquente e falsamente aristocrático, há os que nunca se lembram dos feitos dos seus, há também os que se entretêm a apagar o passado dos outros, recriando-o a seu belo e despudorado prazer e há os que gozam em apagar a memória do futuro, roubando-a ou afogando-a, por antecipação, no esquecimento. São muitos os ladrões e os tipos de roubos da memória. E há os que, infelizmente, se esquecem de si próprios, porque a natureza assim o determinou ou a sua dedicação a outrem o exigiu.
Não vejo razão para tanta admiração com os “mortos do esquecimento”. A construção da sociedade é feita nessa base, no esquecimento. Esquecer sempre. Se olharmos em redor, vemos preocupantes sinais de esquecimento, caso de muitas pessoas, entre os quais jovens, esquecidos e humilhados por uma sociedade sem memória. Estão à espera de que um dia cultivarão a memória? Para quê?
Prezo muito a memória, apesar de começar a detetar alguns buracos por onde tendem a escapar belas recordações. Tento retê-las, vivê-las, reformulá-las e até inventá-las. Há memórias que inventamos, porque é a única forma de viver certos momentos dos quais não temos outra forma de os recordar. Vivemos muitos acontecimentos ao longo da vida, mas muitos só adquirem significado no presente, e outros ainda têm de esperar pelo futuro, para que consigamos vê-los com olhos de ver. As memórias não são estáticas, vivem e modificam-se com o tempo. Quando abordo algumas das minhas memórias, confesso que não são descrições rigorosas dos factos que vivi na altura com os sentidos do corpo ou a paixão da alma, nem podiam ser, são descritos com a nostalgia e a saudade do presente, uma forma meio impressionista de pintar os quadros da memória e de memória. O que eu pretendo é despertar sentimentos e transmitir alguma beleza, aproveitando o esquecimento ao substituir o que falta e a transformar o que ainda resta numa criação da alma.
Até os meus mortos, que não esqueço, se apresentam hoje com aspetos diferentes, moldados pelo tempo, pelas vivências e por um belo esquecimento, esquecimento que alivia a dor armazenada na memória, mas que ajuda a saborear o prazer de um momento, momento esse que espera transformar-se um dia em memória e em esquecimento...

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A verdade é como o azeite!...














Europe's clubs ranking of the first decade ("Top 643"): 2001 a 2010
1. FC Barcelona 2.550 pontos
2. Manchester United 2.523 pontos
5. Inter Milão 2.358 pontos
8. Real Madrid 2.257 pontos
14. F.C.Porto 1.873 pontos
26. Sporting 1.509 pontos
43. CSKA Moscovo 1.376 pontos
44. Benfica 1.357 pontos
45. Auxerroise 1.338 pontos

Obviamente, desmontem-se!

Já o havíamos prenunciado aqui. O Ministro da Presidência só veio hoje confirmar o que já se sabia. Não há responsabilidades políticas a extrair do facto grave de milhares de cidadãos terem sido demovidos de cumprir o seu dever de votar para a escolha do PR. Segundo Silva Pereira declarou hoje no Parlamento  “o que aconteceu foi que o sistema informático do MAI - que estaria até reforçado -, não foi capaz de responder a uma concentração de procura, o que acabou por degradar toda a capacidade de resposta de todos os outros serviços que dependiam dele”. Reforçado, mesmo assim o sistem não se aguentou nas canetas. Coisas que acontecem, imprevistas e imprevisíveis. Prevísivel somente a atitude dos governantes solidamente agarrados aos lugares, inabaláveis na sua irresponsabilidade. Aconteça o que acontecer. 
Nesta estória, uma coisa é certa: não são fiáveis os sistemas em que o governo confia para nos determinar o futuro desde pequeninos; mas sustentam-se os ministros para quem esses mesmos sistemas informáticos constituem verdadeiras apólices de seguro contra todos os riscos. 
A solução requerida?  Desmontem-se!

Pombas “intestinalmente modificadas”!

Assim que cheguei à Provedoria do Ambiente e da Qualidade de Vida Urbana de Coimbra, em 2006, fui confrontado com vários casos, alguns muito curiosos, como, por exemplo, a queixa de um cidadão a exigir que a Câmara Municipal de Coimbra pagasse as despesas que tinha com a lavagem da sua viatura. A história é muito simples, o senhor colocava o carro num parque de estacionamento pago, que tinha várias árvores, só que estas eram condomínios de bandos de pássaros que, naturalmente, não saíam do seu poiso para fazerem as suas necessidades. Como eram muitos, o resultado era mais do que visível, as viaturas, que ficavam sob as copas, mudavam de cor, para um branco acinzentado. Como o senhor pagava o seu lugar, achava-se no direito de alguém se responsabilizar com as despesas da lavagem. Perante esta situação, as soluções propostas foram: não colocar o carro no parque ou, então, cortar as árvores, o que seria criminoso e iria interferir com os direitos da passarada. Mesmo assim, poderia contra-argumentar com a falta de aviso da situação, facto que teria de aceitar, por isso, sugeri que deveria ser sinalizado o problema com a criação de um novo sinal de trânsito - sinal de perigo -, uma árvore cheia de pássaros a lançarem guano sobre um carro.
Tive, em tempos, a oportunidade de ler um artigo sobre novos sinais de trânsito. Alguns eram originais e muito divertidos, mas não me recordo nada semelhante ao que propus. Como os sinais de trânsito são uma forma de linguagem, e há quem se entretenha a estudar neologismos, um “ofício de caçar, colecionar e classificar palavras novas, como um entomologista caça, coleciona e classifica coleópteros”, de acordo com Agualusa, em “Milagrário Pessoal”, não me parece nada despiciendo a criação deste tipo de neologismo simbólico.
Agora ando a pensar noutro tipo de sinal de trânsito, um sinal de informação, retângulo azul vertical com pombas a defecarem sobre objetos, monumentos, viaturas, chão, e o aparecimento de espuma pela ação de água, dando a ideia de limpeza graças aos dejetos desta aves, chamadas, nalguns sítios, de “ratos voadores”.
É do conhecimento geral que a explosão de pombas, nalgumas cidades, constituem um problema para a conservação de monumentos, os quais sofrem graves consequências. Têm sido utilizadas várias estratégias para evitar a deterioração, desde dispositivos que provocam choques elétricos, redes de proteção, espículas, contraceptivos misturados com a comida, venenos, enfim, muita coisa sem grandes resultados, porque estas aves alimentam-se urbanamente com a ajuda da população. É o que faz a falta de predadores.
Fala-se hoje de “desígnio biológico”, um conceito decorrente das novas biotecnologias. O seguinte exemplo ilustra bem a ideia. A adição de uma bactéria especial às pombas, que “lhes faz tanto mal como os iogurtes aos seres humanos”, ou seja, nada de especial, provoca, a nível intestinal, a formação de um produto detergente, rico em lípases, com baixo pH, capaz de atacar a gordura e a sujidade. Sendo assim, ao lançarem guano sobre os monumentos, bastará uma chuvada ou usar mangueiras com água para limpar a sujidade. Há quem idealize a construção de pombais junto de habitações e quem sabe se um dia destes não aparecem, nos semáforos, romenos, ou outros, com gaiolas cheias de pombas, “intestinalmente modificadas”, a defecarem sobre as viaturas ou os para-brisas, aproveitando a sua ação detergente para os lavar. Já estou a imaginar o tal parque de estacionamento, o dos pássaros que falei no início deste texto, com um dispositivo electrónico a lançar água à saída, lavando as viaturas. Um parque de estacionamento com lavagem biológica! Presumo que o cidadão em questão não iria alanzoar mais e até ficaria feliz por ver o seu carro sujo de fezes de aves. Pois não! Teria uma lavagem à borla.
As “pombas de ouro” - designação interessante -, levantam alguns problemas não totalmente resolvidos, que extravasam o objetivo desta crónica. Espero que esta forma de modificar o fruto dos intestinos das pombas não seja considerado uma manifestação diabólica, porque, fazendo fé num ditado chileno, deverão ser os únicos animais resistentes à possessão pelo demónio. Será devido ao facto do Espírito Santo ser representado sob a forma de uma pomba?

PIB em 2010: 0,7% que vamos "pagar com língua de palmo"...

1.Assistimos ontem a mais uma manifestação de auto-elogio dos nossos estimados dirigentes governativos, com destaque para o PM – como não podia deixar de ser – neste caso motivada pela divulgação da mais recente estimativa da variação do PIB em 2010, um crescimento homólogo de 1,4%.
2.O dobro do “estimado” (não seria “estimado” mas sim previsto, mas isso até se desculpa...) pelo Governo - proclamou orgulhosamente S. Exa., lembrando que a “estimativa” do Governo apontava para 0,7% e o resultado final acabou por ser bem mais gordo!...
3.O mais elementar bom senso teria recomendado que sobre o comportamento do PIB em 2010 o Governo tivesse adoptado uma posição muito cautelosa, não embandeirando em arco como fez, pois a interpretação deste comportamento do PIB tem muito – mas mesmo muito – que se lhe diga, justificando tudo menos conclusões ROSA...
4.Com efeito, a variação de 1,4% do PIB em 2010 ficou a dever-se a um contributo praticamente igual das despesas de consumo público e privado e das exportações (líquidas), sendo de registar a persistência de um contributo negativo do investimento...vide o recente “Boletim Económico de Inverno” do BdeP.
5.Se o contributo das exportações é de saudar (e saudações não têm faltado, como sabemos), já o mesmo não se pode dizer (i) dos consumos público (sobretudo) e privado, dada a sua insustentabilidade e o agravamento do insuportável endividamento do País que arrastam, e (ii) da quebra do investimento que se reflecte numa contínua degradação do crescimento potencial da economia...
6.Teria sido bem melhor, muitíssimo melhor, um crescimento de apenas 0,7%, com o contributo positivo das exportações e sem a expansão das despesas de consumo, uma vez que estas originaram mais um JUMBO défice com o exterior, da ordem de 10% do PIB, a avaliar pelas estatísticas preliminares do comércio externo divulgadas na semana passada pelo INE.
7.Assim sendo, os 0,7% “a mais” de PIB em 2010 terão que ser pagos, em 2011 e seguintes com sangue suor e lágrimas, como se está verificando e continuaremos a verificar pelos meses adiante...
8.Neste cenário, o PM vangloriar-se do número “mágico” de 1,4% da variação do PIB em 2010 só pode ser tomado à conta de mais uma manifestação da doentia obsessão pelo marketing político e nada tem a ver, como parece óbvio, com os interesses do País...
9.Para ser mais exacto, até terá a ver com os interesses do País, mas infelizmente pela negativa...