Através da janela que dá para a
varanda, à minha frente, reparo que aparecem pássaros, pardais e melros, com
uma frequência pouco comum. Veem-me e eu vejo-os. Levanto-me, espreito, e eles
não se assustam. Saltam em direção ao beiral, novo em folha, e, num exercício
de ginasta de circo, mantêm-se a bater as asas sem sair do sítio até que se
enfiam debaixo das telhas. Hum! Fizeram casa. Mas não é só um casal. O
apartamento ao lado também foi tomado. E no beiral de cima nem se fala. Parecem
mesmo uns "okupas". Antes de entrarem nas suas
"residências" poisam, durante um bom bocado de tempo, na grade da
varanda em frente da janela e espreitam com um olhar de admiração para mim,
talvez pensando o mesmo que eu, quem é aquele indivíduo, atrevido, a querer importunar-nos
na nossa casinha. A "pardalita", é capaz de ser mesmo
"uma", junta-se ao pardal, gordo, robusto, a querer demonstrar que
está bem na vida. Pelo aspeto deve ter mesmo uma vida flauteada e de bom
sustento, só pode. A pardal, mais miudinha, também espreita e não se assusta.
Já devem saber que o vidro que nos separa é suficiente para os proteger. Que
olhos. Pequenos, vivos e irrequietos a questionarem o porquê da minha
intromissão. Aproximo-me novamente da janela e o macho levanta o peito, mostrando
penas despenteadas por um respirar profundo, inchado. Não sei o que é que ele
quis dizer-me. Às tantas, nada, ou, então, deu-lhe para fazer-me frente,
enchendo o peito. A pardoca nervosa, volteou-se e começou a pipilar, como que a
dizer-lhe para se deixar de parvoíces e ir para a casa. Ele não via que o tempo
estava chuvoso, triste e que hoje, domingo de Páscoa, tinha ainda muito para
fazer no seu novo e muito confortável apartamento? Olhou novamente para mim e
subiu, sempre a piar, para a sua casa. Entrou. Em seguida, a pardoca fez o
mesmo, mas teve que esperar para entrar batendo as asas freneticamente e
pipilando muito alto como que a gritar-lhe para desentupir a entrada. Ao fim de
alguns segundos entrou. Calaram-se os dois.
Agora começo a entender, de madrugada,
ainda o sol não sabe que vai levantar-se, já ouço uma chilreada dos diabos.
Sempre ouvi, mas agora a música é outra, mais intensa, mais próxima, mais
populosa e agradavelmente mais desafinada. Sinal de vida, sinal de um novo dia,
numa zona que já teve mais vida e outros “chilreares”. No dia de hoje, os
falares dos residentes e passantes afogavam quaisquer outros sons. Uma
musicalidade humana difícil de reencontrar. Hoje, ao toque da campainha do
compasso, descaracterizado, a querer relembrar um passado perdido, não ouvi
vozes humanas, nem de adultos, ansiosos por se afogarem em carnes deliciosas
e em vinhos generosos, nem de crianças
deslumbradas pela festa e pelas doçarias. Não ouvi vozes de alegria da alma e
do corpo. Não ouvi vozes de confraternização. Não ouvi vozes de esperança. Não,
não ouvi. Ouvi apenas a chuva a cair e o chilrear da pardalada numa alegria e
irreverência sem par.