Nos meios políticos é relativamente comum o ressentimento e até uma certa raiva a raiar o rancor. Algumas personalidades, provavelmente por uma questão estrutural, aproveitam as arenas políticas para destilar as suas frustrações e mijar preconceitos. Incapazes de compreenderem o significado e a importância das correntes filosóficas e ideológicas, olham para os adversários como se fossem inimigos a abater. Presumo que, dentro de todos os primatas, só o homem é que consegue atingir este grau de maldade, fazer sentir ao outro que não presta, que é um ser inferior por não partilhar da sua cor. Meu Deus! Tenho dificuldade em compreender e em aceitar este tipo de comportamentos, mas que eles existem, existem, e é imperioso estar atento a todas as movimentações para não ser, artificialmente, metido em alhadas previamente delineadas com o intuito semelhante à punhalada mortífera das escuras noites medievais, ou à ingestão de poderosos venenos sob o encanto suave das luzes dos salões.
Acontece que, por vezes, dou conta de que estou a ser vítima dessa hostilidade, e, por mais que a queira prevenir, o estupor de uma ingenuidade congénita atraiçoa-me. Que fazer? Engolir? Vomitar? Ignorar? Ensinar? Ou esperar? Esperar para quê? Esperar na expectativa de que mudem e reconheçam a injustiça. Às tantas, com esta mania, ainda vou ter de esperar até aos fins dos tempos e nem sei se, ao ressuscitarem, mostrarão algum arrependimento. Que se lixe! Como não vamos ressuscitar, confio, sobretudo, nas pazadas de um qualquer coveiro para por fim à maldade e à ingenuidade. Entretanto, vou ruminando, sem conseguir adaptar-me. Mas estes comportamentos não se cingem apenas à política. A par do episódio que despertou este introito, um outro acaba de surgir. Incrível, a denotar a falta de caráter, o fascínio patológico dos preconceitos e a raiva contra quem quer o seu bem.
Um doente foi consultar um médico que lhe diagnosticou um tumor maligno. Ficou triste, choroso, revelando uma compreensível ansiedade. O colega, face à situação, começou de imediato a tratá-lo, ao mesmo tempo que delineava a estratégia mais adequada para a resolução do problema. Optou por uma terapêutica radioativa local. Para o efeito, tratando-se de um subsistema de saúde, o doente teria que adquirir o produto e, posteriormente, seria re-embolsado. Talvez por não querer aceitar esta situação, talvez por desconfiança quanto à decisão clínica, o doente, apesar do drama em que se viu envolvido, tomou uma atitude de desconfiança que merece reparo. Enquanto não fosse sujeito à terapêutica radioativa, deveria iniciar, e não interromper, a terapêutica medicamentosa de base para evitar a propagação do tumor. No dia aprazado para nova consulta, não apareceu. O médico, preocupado com a ausência e a situação clínica, tratou, de imediato, passar uma nova receita do medicamento e enviou-a por correio para a morada do doente, que é, curiosamente, carteiro. Em vez de a entregar a si próprio, devolveu-a à procedência com os seguintes dizeres no envelope: “O destinatário recusou-se a receber a carta”! E foi assim que a dita missiva acabou por chegar às minhas mãos, o que me levou a inteirar sobre o sucedido. Entretanto, fiquei a saber que o senhor já tinha dado a conhecer à funcionária que iria proceder desta forma quando foi contactado, devido a não ter estado presente na consulta programada, e que processaria o médico caso este tivesse dado o visto e, consequentemente, ter de vir a pagar a taxa moderadora. Não admitia que lhe passassem a receita sem estar presente ou a ter pedido. O médico em questão não deu o visto à consulta, continuando o doente a ser catalogado como ausente, mas, ciente da gravidade do caso, optou, e bem, por enviar a receita a fim de não ser interrompida a terapêutica.
O que é que revela este episódio? Que há pessoas preconceituosas, com falta de caráter, arrogantes e desconfiadas quanto às atitudes dos outros. Estamos perante uma personalidade triste, sofredora, mas, simultaneamente animada por uma hostilidade que, numa situação tão grave como a que está a viver, deveria desaparecer, tornando-se mais humilde e agradecendo o bem que outros lhe querem prestar. Quando em situações graves como esta consegue mostrar tamanho dislate, e falta de humildade, pergunto: como se comportaria antes?
O meu colega quis que alguém levasse a carta a Garcia, mas o mensageiro, afinal, não tem o mínimo perfil para tal, e nem se lembrou que ele é o Garcia! Um ingrato, que, infelizmente, acabará por alimentar a malignidade entretanto despertada nas suas entranhas.
Senti-me mal. Mas quem é que não se sentirá perante casos semelhantes?