Saltar no tempo é muito fácil para quem já viveu alguns anos, tão fácil como acender um bico de gás com um simples fósforo, e estes encontram-se à mão de semear em qualquer sítio, basta estar atento.
Um telefonema, uma voz cristalina, timbre ainda impregnado de mimo da infância e adolescência felizes, um remedeio nervoso na forma do tratamento, por tu, por você, que rapidamente desfiz, embora tenha ficado na dúvida se, em tempos, a forma de nos tratarmos era por tu ou por você, dada a sua agradável couquetice, mas não interessa, optei pela primeira. Queria falar comigo, precisava da minha ajuda, quando é que podia vê-la. Disse-lhe o dia e a hora. Durante a pergunta apercebi-me de um ligeiro tremor na sua voz, indicativo de que algo não iria muito bem em termos de saúde. Não lhe fiz qualquer reparo. Fiz as contas, tem a minha idade, convivemos durante algum tempo na universidade, há mais de trinta e cinco anos, e, depois, ainda a vi, na sua terra, umas três ou quatro vezes. À distância fui sabendo de alguns pormenores, tristes e, até, dramáticos, da sua vida. Só espero que não esteja com alguma doença ruim, pensei, porque a partir de certa idade, a probabilidade de ocorrência aumenta de forma exponencial. No dia e hora aprazados apareceu acompanhada do seu companheiro, que não quis entrar. Ao subir as escadas verifiquei que estava mais roliça, mas, de resto, tudo igual, olhos, risos e a forma teatral de falar a lembrar a minha última refeição de solteiro, que, gentilmente, me preparou em sua casa. Parece-me, segundo dizem, que daquela vez teria bebido um pouco a mais, e eu sempre pensei que a fonte de alegria seria o evento do dia seguinte. A par desta lembrança, outras subiram-me ao córtex, a de grávida, na altura do primeiro filho, ao envergar um biquíni com uma cortina a cair discretamente sobre o proeminente e orgulhoso abdómen, ou, ainda, o piquenique efetuado na serra da Boa Viagem, num belo dia de verão, em que um fotógrafo à la minute nos tirou uma fotografia. Algo de inesquecível. No final do ritual, paguei-lhe, e vi pela primeira vez alguém a beijar uma nota. Surpreso, ainda pensei que o surdo-mudo tivesse como santo padroeiro o Santo António, mas não, na sua linguagem gestual explicou-me que era o primeiro dinheiro que fazia naquele dia, e a tarde já ia um pouco avançada. Não sei onde para o raio da foto que o surdo-mudo nos tirou, mas a fotografia desse momento está bem arrumada na minha memória. Saltei para três momentos do passado enquanto a minha velha amiga subia o curto lance de degraus emitindo os cumprimentos de que não se vê há tantos anos.
O seu problema é dos mais comuns na geração ao redor dos sessenta anos, ansiedade e medo do que possa vir a acontecer aos familiares. Pilar de sustentação de filhos, netos e da mãe, tem grande dificuldade em lidar com as pressões sociais e económicas atuais, além de sentir que algumas capacidades se vão esmorecendo com a idade. Deixei-a falar, a melhor terapêutica. Devido à sua profissão, fácil acesso a fármacos, começou há muito tempo a tomar coisas para a mente e alma, e tinha a consciência da dependência em que estava a cair. Ficou surpreendida perante as causas do seu mal e a impotência em ultrapassá-las, “como vou fazer”, “calma, em primeiro lugar, o melhor é compreender a situação, depois não esconder aos nossos o que se passa, devemos deixar cair a máscara da teatralidade e assumirmos a da vida real, para que possam partilhar um pouco das nossas angústias e preocupações”. Continuei na minha abordagem terapêutica, “A vida é ingrata, muito ingrata, e quando pensamos que estamos a entrar na idade do descanso é precisamente o contrário, é quando o mundo se lembra de cair em cima. Talvez os sessenta anos de idade fossem sinal de alguma tranquilidade há algumas décadas, ou possam voltar a ser daqui a outro tanto, mas, agora, não há nada a fazer. As transições sociais rápidas são assim”. Via-se a sua inquietude a crescer, e perguntou-me se não poderia tomar nada diferente e que a pudesse ajudar. “Claro que sim, em primeiro lugar vamos reduzir, até suspender, todos esses produtos, que provocam muito cansaço e embrutecimento, entretanto, vais fazer uma terapêutica muito suave, discreta, quase como navegar à vista”. Fiz grandes encómios aos dois produtos e expliquei-lhe as suas ações, criando uma expectativa de sucesso tão grande, que, apesar dos verdadeiros efeitos terapêuticos serem muito inferiores aos fármacos que andava a tomar, passei a utilizá-los, antecipadamente, como placebos. Apercebi-me do encanto e da satisfação à medida que, farmacologicamente, ia lidando com o caso, ponto crucial para um bom resultado, não podia esquecer-me da sua formação académica. Aliei a estas formas de abordagem, social e química, o facto de me ter procurado ao fim de tantos e tantos anos de separação. Queria que eu a ajudasse e estou convicto de que sim, pelo menos fiz os possíveis, agora espero por um telefonema um dia destes. Talvez consiga colocar mais uma fotografia no meu álbum de memórias para que no futuro, se lá chegar, dar um saltito ao passado, nem que seja mais modesto, em termos temporais, claro está. Mas se não viver de saltos no tempo, vou viver de quê?
Um telefonema, uma voz cristalina, timbre ainda impregnado de mimo da infância e adolescência felizes, um remedeio nervoso na forma do tratamento, por tu, por você, que rapidamente desfiz, embora tenha ficado na dúvida se, em tempos, a forma de nos tratarmos era por tu ou por você, dada a sua agradável couquetice, mas não interessa, optei pela primeira. Queria falar comigo, precisava da minha ajuda, quando é que podia vê-la. Disse-lhe o dia e a hora. Durante a pergunta apercebi-me de um ligeiro tremor na sua voz, indicativo de que algo não iria muito bem em termos de saúde. Não lhe fiz qualquer reparo. Fiz as contas, tem a minha idade, convivemos durante algum tempo na universidade, há mais de trinta e cinco anos, e, depois, ainda a vi, na sua terra, umas três ou quatro vezes. À distância fui sabendo de alguns pormenores, tristes e, até, dramáticos, da sua vida. Só espero que não esteja com alguma doença ruim, pensei, porque a partir de certa idade, a probabilidade de ocorrência aumenta de forma exponencial. No dia e hora aprazados apareceu acompanhada do seu companheiro, que não quis entrar. Ao subir as escadas verifiquei que estava mais roliça, mas, de resto, tudo igual, olhos, risos e a forma teatral de falar a lembrar a minha última refeição de solteiro, que, gentilmente, me preparou em sua casa. Parece-me, segundo dizem, que daquela vez teria bebido um pouco a mais, e eu sempre pensei que a fonte de alegria seria o evento do dia seguinte. A par desta lembrança, outras subiram-me ao córtex, a de grávida, na altura do primeiro filho, ao envergar um biquíni com uma cortina a cair discretamente sobre o proeminente e orgulhoso abdómen, ou, ainda, o piquenique efetuado na serra da Boa Viagem, num belo dia de verão, em que um fotógrafo à la minute nos tirou uma fotografia. Algo de inesquecível. No final do ritual, paguei-lhe, e vi pela primeira vez alguém a beijar uma nota. Surpreso, ainda pensei que o surdo-mudo tivesse como santo padroeiro o Santo António, mas não, na sua linguagem gestual explicou-me que era o primeiro dinheiro que fazia naquele dia, e a tarde já ia um pouco avançada. Não sei onde para o raio da foto que o surdo-mudo nos tirou, mas a fotografia desse momento está bem arrumada na minha memória. Saltei para três momentos do passado enquanto a minha velha amiga subia o curto lance de degraus emitindo os cumprimentos de que não se vê há tantos anos.
O seu problema é dos mais comuns na geração ao redor dos sessenta anos, ansiedade e medo do que possa vir a acontecer aos familiares. Pilar de sustentação de filhos, netos e da mãe, tem grande dificuldade em lidar com as pressões sociais e económicas atuais, além de sentir que algumas capacidades se vão esmorecendo com a idade. Deixei-a falar, a melhor terapêutica. Devido à sua profissão, fácil acesso a fármacos, começou há muito tempo a tomar coisas para a mente e alma, e tinha a consciência da dependência em que estava a cair. Ficou surpreendida perante as causas do seu mal e a impotência em ultrapassá-las, “como vou fazer”, “calma, em primeiro lugar, o melhor é compreender a situação, depois não esconder aos nossos o que se passa, devemos deixar cair a máscara da teatralidade e assumirmos a da vida real, para que possam partilhar um pouco das nossas angústias e preocupações”. Continuei na minha abordagem terapêutica, “A vida é ingrata, muito ingrata, e quando pensamos que estamos a entrar na idade do descanso é precisamente o contrário, é quando o mundo se lembra de cair em cima. Talvez os sessenta anos de idade fossem sinal de alguma tranquilidade há algumas décadas, ou possam voltar a ser daqui a outro tanto, mas, agora, não há nada a fazer. As transições sociais rápidas são assim”. Via-se a sua inquietude a crescer, e perguntou-me se não poderia tomar nada diferente e que a pudesse ajudar. “Claro que sim, em primeiro lugar vamos reduzir, até suspender, todos esses produtos, que provocam muito cansaço e embrutecimento, entretanto, vais fazer uma terapêutica muito suave, discreta, quase como navegar à vista”. Fiz grandes encómios aos dois produtos e expliquei-lhe as suas ações, criando uma expectativa de sucesso tão grande, que, apesar dos verdadeiros efeitos terapêuticos serem muito inferiores aos fármacos que andava a tomar, passei a utilizá-los, antecipadamente, como placebos. Apercebi-me do encanto e da satisfação à medida que, farmacologicamente, ia lidando com o caso, ponto crucial para um bom resultado, não podia esquecer-me da sua formação académica. Aliei a estas formas de abordagem, social e química, o facto de me ter procurado ao fim de tantos e tantos anos de separação. Queria que eu a ajudasse e estou convicto de que sim, pelo menos fiz os possíveis, agora espero por um telefonema um dia destes. Talvez consiga colocar mais uma fotografia no meu álbum de memórias para que no futuro, se lá chegar, dar um saltito ao passado, nem que seja mais modesto, em termos temporais, claro está. Mas se não viver de saltos no tempo, vou viver de quê?