Uma auditoria do Tribunal de Contas arrasou o negócio do terminal de contentores em Alcântara.
Ao longo destes últimos tempos o mesmo tribunal, em sucessivas auditorias, tem-se pronunciado sobre outros negócios do Estado, designadamente as PPP dos hospitais, grandes empreitadas ou concessões rodoviárias. A crítica é sempre a mesma: do ponto de vista do risco, os contratos celebrados não acautelam na devida medida a sua alocação nos adjudicatários.
Não discuto casos concretos. Nem tão pouco o rigor ou o alcance destas avaliações do tribunal. Mas a minha experiência profissional (de um lado e do outro da trincheira nas negociações) autoriza-me a dizer que é muito diferente a noção do equilíbrio contratual no momento das negociações ou quando se analisa o contrato já fechado e assinado, desenquadrado da ambiência e dos condicionalismos, quase sempre muito complexos, das fases pré-contratuais.
Nas negociações, o Estado é confrontado com esses condicionalismos. E de como eles afectam as propostas. São-lhe apresentadas provas - auditáveis, de resto - do limite do risco que pode e deve ser assumido pelo privado. E sabe, ou pode saber, que para além desse limite o negócio é inviável e nenhuma das partes - proponente ou Estado - retira vantagem, pela simples e elementar razão de que uma parceira ruinosa a prazo não aproveita a ninguém. Muito menos ao contribuinte, essa entidade absolutamente indefesa e por isso naturalmente propensa a considerar ruinoso qualquer contrato por mais justificado, legal e regular que seja.
Afinal, acontece nas PPP ou nas grandes concessões o que se passa em qualquer negócio entre privados em que as partes se esforçam por equilibrar o sinalagma de acordo com os seus interesses, mas também as suas possibilidades.
Vigora, porém, entre nós, o princípio da desconfiança na contratação pública. E se é este o princípio que leva a opinião publica(da) a pensar que em cada concurso germina a desonestidade, a falta de transparência, a incompetência, a deficiente defesa do interesse público, tanto mais intolerável quanto é certo que estão em causa dinheiros públicos, então não faz sentido manter o modelo de controlo sucessivo (da legalidade e do mérito) pelo Tribunal de Contas. Não faz sentido porque é inconsequente, ou, para utilizar locução cara aos auditores, ineficaz.
E também já se viu que a fiscalização preventiva, através do processo administrativo do visto prévio aos contratos, como condição de eficácia financeira dos mesmos, é incompatível com o estatuto de algumas das entidades públicas ou parapúblicas contratantes.
É tempo, pois, de fazer com que as actuações do Tribunal de Contas sejam algo mais do que afirmações pedagógicas de princípios, servindo, isso sim, de pasto às mais gritantes especulações, quase sempre fruto da ignorância que só não é chocante porque se tornou banal. Impõe-se um modelo de controlo concomitante dos grandes negócios do Estado pelo Tribunal de Contas, fazendo com que este órgão se envolva na fase pré-contratual, designadamente nas fases de escoha dos co-contratantes e, sendo caso disso, nas negociações.
Modelo inédito? Não. Em tempos que já lá vão, alguns institutos públicos responsáveis por adjudicação de contratos vultosos acolhiam na sua orgânica, a par do órgão executivo de gestão, um conselho administrativo onde tinha assento o delegado do Tribunal de Contas. A análise da legalidade dos contratos era assegurada por essa presença. Nada desaconselha agora que se vá mais longe, e que nas fases pré-contratuais esteja presente e participe técnico qualificado nomeado pelo tribunal, sob supervisão de juiz ou de secção criada para o efeito, com a missão de avaliar da legalidade ou do mérito fnanceiro dos contratos em gestação, à luz dos regimes jurídicos em vigor, designadamente do regime geral das parcerias público-privadas.
Para além da eficiência no controlo, algo de fundamental seria assim adquirido: a percepção por quem fiscaliza do caminho estreito que quem se senta à mesa das negociações por vezes é obrigado a percorrer para que os interesses das partes - de ambas as partes e não só do Estado - se equilibrem.
Só esse factor pode fazer toda a diferença não só no plano da utilidade e eficácia do controlo, mas também e sobretudo no acréscimo de confiança que deve merecer o instituto do contrato, como forma privilegiada de actuação convencional do Estado na satisfação de necessidades públicas.