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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

As palavras que contam

As poucas palavras

Foi um dia, e outro dia, e outro ainda.
Só isso: o céu azul, a sombra lisa,
O livro aberto.
E algumas palavras. Poucas,
Ditas como por acaso.
Eram contudo palavras de amor.
Não propriamente ditas,
Antes adivinhadas. Ou só pressentidas.
Como folhas verdes de passagem.
Um verde, digamos, brilhante,
De laranjeiras.
Foi como se de repente chovesse:
As folhas, quero dizer, as palavras
Brilharam. Não que fossem ditas,
Mas eram de amor, embora só adivinhadas.por isso brilhavam. Como folhas
Molhadas.


Eugénio de Andrade

Não quero que as palavras más invadam a minha vida. Não quero habituar-me a elas, não quero assistir indiferente, ou apenas incomodada, à violência dos que agridem com a dureza do que não deve ser dito, do que não há o direito de dizer, ou dos que simplesmente deixam de proferir a palavra certa, quando ela tem ali o seu lugar à espera, e esse lugar fica irremediavelmente vazio.
Pensei, em jeito de balanço deste ano que finda, nas inúmeras ocasiões em que tive a boa sorte de ouvir palavras amáveis, das vezes que atendi uma voz amiga, das outras tantas em que pude encontrar um lugar de amizade ou das mil uma formas por que se apresentam os laços de amor. Difícil eleger uma ocasião que simbolize todas elas, sou tão afortunada como isso, tenho por onde escolher. E quando revejo cada um desses momentos, por breve que fosse, faço deles um antídoto para as palavras más e os rancores que também todos encontramos no nosso caminho.
Mas vou escolher, apesar de tudo, um desses momentos. Um dia deste ano que agora acaba recebi um telefonema de uma pessoa que conheci há muitos anos e de cuja família fui muito próxima, mas que nunca mais encontrei pessoalmente depois das voltas imprevistas que a vida tantas vezes dá. Ao passar dos anos resistiram, porém, os cartões de boas festas, ou dos parabéns quando era um aniversário, ou a propósito dos momentos importantes, bons e maus, que marcam o nosso percurso e que só as amizades atentas e profundas sabem assinalar. Fiquei surpreendida quando me disse que me queria ver, pedia-me que lhe desse esse gosto, já tem idade avançada e queria encontrar-me ainda uma vez, antes da vida se acabar. Esperou-me com um ramo de flores e um pequeno presente e escondeu envergonhado a bengala que lhe permite ainda deslocar-se sem apoio, sabe, a velhice não perdoa, disse emocionado enquanto os seus olhos, já apertados entre um mar de rugas, procuravam ver em mim os traços da jovem que se tinha habituado a tratar como uma filha. Conversámos longamente, naquele desenrolar caótico de pequenos nadas porque não se sabe por onde começar, de repente como dizer o que foi importante, como contar as alegrias e tristezas, como preencher o tempo do tempo que voou? Por fim, sorriu largamente quando tirou na carteira uma fotografia amachucada onde estávamos todos na varanda da casa de família, a mulher, os filhos e eu, lembra-se?, filha, nesta altura ainda acreditávamos que viesse a entrar para a família, eu e a minha mulher falámos nisso até ela morrer, nunca nos esquecemos de si. E queria agora fazer-lhe uma pergunta, não me leve a mal, mas eu e ela pensámos nisso tantas vezes, não queria morrer sem lhe perguntar, a vida deu-lhe a felicidade que merece?
Espero e desejo que todos possam encontrar no balanço do ano que passa a marca de palavras amigas, de provas de afecto, de sinais de amor e ternura. E que elas se multipliquem sem cessar no ano que agora chega, afastando as palavras más e dando lugar às que, mesmo sendo poucas, valem por todas.
Um abraço amigo e um Ano Novo muito Feliz, como merecem.

Dez grandes interrogações económicas para 2011

1.No declinar do ano 2010 estamos defrontados com um grau de incerteza pouco usual quanto ao cenário económico e financeiro para 2011, em especial no que diz respeito ao País em que residimos.
2.Por isso ocorreu-me deixar aqui 10 grandes interrogações sobre pontos importantes desse cenário, a saber:
1ª) Em que mês – se é que em algum -irá Portugal apresentar formalmente o pedido de assistência financeira ao Fundo Europeu de Estabilização e ao FMI?
2ª) Como irão comportar-se as exportações, nas quais estão depositadas todas as esperanças, em termos líquidos?
3ª) Será o crescimento das exportações, em termos líquidos, suficiente para contrabalançar a esperada contracção da despesa interna e manter o PIB a flutuar marginalmente acima de zero ou pelo contrário iremos ter um cenário de contracção acentuada da actividade económica?
4ª) Será que as receitas fiscais, em especial as dos Impostos Directos e do IVA, vão aguentar-se apesar da esperada quebra do rendimento das famílias e do consumo privado?
5ª) Até quando poderá o Estado português financiar-se nos mercados de dívida? Será que vai ser capaz de cumprir o programa de emissão de dívida (parcialmente) anunciado há dois dias ou vai esse programa ser interrompido pelo facto mencionado na 1ª interrogação?
6ª) Conseguirá o Governo cumprir o objectivo de redução da despesa corrente primária? E como irão comportar-se os encargos com juros da dívida pública (...)?
7ª) Irá o BCE manter os generosos apoios de liquidez que tem concedido aos bancos da zona Euro e às dívidas dos países em dificuldades, mesmo depois da saída de Trichet?
8ª) Como irá evoluir a opinião pública alemã em relação à questão da manutenção do Euro como moeda comum europeia? Irá continuar a deslizar no sentido negativo, como foi revelado por uma sondagem divulgada no início desta semana?
9ª) Qual será a evolução do preço do petróleo e das matérias-primas minerais e alimentares? Iremos continuar a assistir a uma escalada das cotações, pressionadas pela procura dos países emergentes, em especial da China e da Índia?
10ª) Será que a inflação vai finalmente obrigar os Bancos Centrais dos principais blocos económicos a subir as taxas de juro ou iremos assistir a mais um ano de política monetário do tipo “laissez faire, laissez passer”?
3.Muitas outras questões se poderiam colocar, porventura mais controversas do que estas – por exemplo será que o BPN, agora tanto no centro das atenções, vai finalmente ser "privatizado" em 2011 ou vamos continuar a assistir ao arrastamento indefinido do cenário actual?... – mas parece-me que, no que toca à evolução da política económica e financeira, tudo se vai decidir em função das respostas que a realidade dos acontecimentos vier a dar àquelas 10 questões...
4.Os nossos habituais e amigos Comentadores são livres, como é evidente, de acrescentar outras questões que entenderem pertinentes...
5.Para os ilustres Bloguistas do 4R e para os nossos Comentadores, os meus mais sinceros votos de um Ano Novo que mantenha pelo menos viva a nossa esperança num futuro melhor...e muita saúde para todos!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Contradições

Ficámos esclarecidos que é “uma questão de justiça social”. Pensionistas e desempregados que aufiram rendimentos acima do rendimento mínimo passam a pagar taxas moderadoras. Ficámos a saber que o rendimento mínimo é a fasquia no SNS para se alcançar a justiça social, ou seja, que acima desta fasquia – 485 euros – as pessoas e as famílias não precisam de apoio social.
Aos poucos e poucos o Estado Social vai ficando cada vez mais pequeno, sem que se discutam e esclareçam quais são as regras e os critérios que definem o que queremos e podemos ter. Quando o bolo para distribuir é pequeno, mais necessário se torna estabelecer como deve ser repartido e quem o pode comer. É por isso fundamental que seja feita uma discussão esclarecedora sobre qual é a definição de Estado Social defendida pelas diversas forças políticas, designadamente o PS e o PSD, e como é que é assegurada a sua sustentabilidade, em termos de direitos e do seu financiamento.
O PSD fez bem em lançar o tema para a discussão pública. A reflexão é incontornável. Estamos a ver que assim é. É preciso fazê-la mas de forma transparente e responsável para que não fiquem dúvidas sobre o que uns e outros querem e o que têm realmente para oferecer aos portugueses, sem ziguezagues, com verdade e sem disfarce. Igualmente importante é sabermos que modelo preconizam para concretizar o Estado Social, ou seja, qual o papel que o Estado deve ter na garantia da sua realização.

Sacos de plástico

Os italianos não estão com meias medidas, vão proibir os sacos de plástico. Sim senhor!

Até sempre, Jorge

O Jorge partiu. Estava à espera da notícia depois de há umas semanas, com chocante á-vontade, me ter comunicado o paradoxo de ter resistido anos e anos à condenação de um cancro no pulmão e agora sucumbir a uma outra doença que a medicina conhece bem, mas para a qual não encontrou ainda remédio. Foi num almoço onde apareceu, tranquilo, bem disposto e entusiasmado com o trabalho que tinha em mãos. Compreendo hoje que aquele encontro - que tantas vezes adiámos e que sempre renovávamos através dos recados mútuos comunicados pelo barbeiro comum transformado em mensageiro - foi, afinal, uma despedida. A partir de certa idade vamo-nos acomodando à ideia da partida e conformando com a erosão que a morte provoca na vida dos que permanecem. Não nos tornamos indiferentes, porém, a estes estes gestos de imensa coragem de quem não quer omitir o último tributo à amizade. Obrigado, Jorge. E até sempre.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Avisos (VII)

A Propósito da Situação de Portugal
in XXXIII Congresso Nacional do PSD, Abril 10, 2010

Vamos ser claros: quer o Orçamento, quer o PEC, não são bons para o País. E por isso causou estranheza na sociedade, e admito que ainda mais no nosso Partido, por que razão permitiu o PSD a viabilização de ambos pela via da abstenção.

(…) Todos temos que estar conscientes do enquadramento internacional que enfrentamos desde o final do ano passado, quando estalou a crise orçamental e financeira na Grécia, que conduziu a uma generalizada desconfiança quanto ao facto de Portugal poder ser o próximo país a aproximar-se de uma crise de rotura de pagamentos.

Perante quaisquer sinais de que os objectivos de redução do défice público e da dívida poderão ser mais difíceis de cumprir ou perante uma situação de instabilidade política, o rating do País ficará novamente sob ameaça e as condições de financiamento externo serão muito penalizadas.

Ora, na prática, isso significa uma forte pressão vendedora dos activos nacionais (com a sua consequente desvalorização), taxas de juro mais elevadas – quer as que são exigidas ao Estado, quer ao sector financeiro – e, portanto, repercussões muito negativas para toda a sociedade, nomeadamente uma (muito) maior dificuldade no acesso ao crédito, uma diminuição da riqueza pela desvalorização dos preços dos activos, um menor dinamismo, um muito maior desemprego.
(…) Nesta conjuntura, (…) o nosso País estava obrigado a escolher entre soluções que não eram boas (o Orçamento e o PEC) e… o caminho para o desastre absoluto, o que teria consequências económicas catastróficas, que fariam com que as propostas do Orçamento e do PEC parecessem… menos más. Ora, perante a decisão das restantes forças políticas da oposição de reprovarem o Projecto de Resolução do PS sobre o PEC, e dispondo o Governo do apoio de uma maioria relativa no Parlamento, só o PSD poderia evitar o desastre total!

É, assim, minha convicção que, dadas as circunstâncias que vivemos, o PSD actuou como todos os Portugueses esperariam que actuasse, e de acordo com o lema de Francisco Sá Carneiro, lema que nunca devemos abandonar: primeiro, sempre o País; só depois o Partido.

Mas, caros companheiros, isso não significa que, colocando sempre o interesse nacional acima de tudo, não possamos, nós mesmos, apresentar verdadeiras alternativas que contribuam para resolver o difícil e estrutural problema económico do País. Temos duas prioridades simultâneas, ambas com máximo grau de urgência.

Uma é o relançamento do crescimento económico, que tem sido anémico (e tudo aponta para que assim continue). E isso não se fará com os custos de contexto que são conhecidos, que afastam qualquer investidor do nosso País. São necessárias alterações profundas em áreas tão fulcrais como a justiça, a legislação laboral, a burocracria na Administração Pública, ou a política fiscal. Com alterações nestes domínios estaremos a contribuir para aumentar a produtividade, tornar o país mais atractivo e competitivo, e reduzir o nosso défice externo.

A outra prioridade é a imperiosa e inevitável redução do défice público e da dívida pública – o que contribuirá também para reduzir o endividamento externo.

Ora, no ponto em que estamos, esta correcção da trajectória das contas públicas deve – e tem que – ser feita de forma sustentável, isto é, do lado da despesa pública.

As experiências passadas que promoveram a redução do défice público e assentaram no aumento de impostos resultaram em verdadeiros fiascos, como hoje todos sentimos na pele. Só serviram para liquidar a nossa economia, reduzir a olhos vistos a nossa competitividade.

Portanto, a mesma receita pretensamente correctora, queremos nós ver pelas costas!...

Aliás, nós temos é que trabalhar para, por um lado, reformar o nosso sistema fiscal e, por outro, para reduzir quer a carga fiscal, quer o esforço fiscal, matéria em que comparamos muito mal na Europa. Mas para isso, é preciso reduzir o peso da despesa pública no PIB.

Ora, já no discurso que proferi no último Congresso referi que, do lado da despesa, as opções não são muitas.

As rubricas com maior peso são os consumos intermédios (os gastos do Estado no dia-a-dia), as despesas com o pessoal (massa salarial) e as prestações sociais. E portanto é aqui que temos que actuar, sem o que não conseguiremos combater a dimensão da despesa pública.

Hoje, neste Congresso, vou mais longe: em minha opinião, será preciso uma nova reforma da Administração Pública, porque o PRACE foi um verdadeiro fracasso e nem em termos financeiros produziu resultados. Uma reforma que terá que começar por algo que nunca foi feito em Portugal: a discussão das funções do Estado, a definição das áreas onde o Estado deve e não deve estar presente, e de que forma o deve fazer.

Será também preciso combater o desperdício em todas as áreas do Estado.

E sejamos claros: as áreas dos salários e das pensões poderão não escapar a cortes. Será injusto?... É possível. Mas não seria inédito.

Porque, por exemplo, nos salários, quando o FMI esteve em Portugal nos anos 70 e 80, e fomos obrigados a desvalorizar o escudo e a subir as taxas de juro, os salários perderam poder de compra. Ou seja, houve de facto redução de salários – só que encapotada. Porque tínhamos poder sobre instrumentos económicos como as taxas de juro e a moeda, o que hoje não acontece. E portanto, a correcção terá que ser feita às claras. E como é sobre a função pública que o Governo tem controlo, e é a função pública que serve como referência para toda a economia, é aí que se tem que actuar… Provavelmente com uma actuação diferenciada, isto é, com reduções proporcionais aos níveis salariais, o que permitirá que os salários mais baixos não sejam afectados. E com os decisores políticos a dar o exemplo! Como ainda recentemente aconteceu na Irlanda.

E também na área social não será possível deixar de congelar e impor tectos em diversas prestações sociais não contributivas.

(…) Creio que será inevitável que estas opções ou opções parecidas com estas sejam tomadas em Portugal. São duras?... Claro que sim! E sei que será difícil explicá-las a uma população que já está cansada de fazer sacrifícios e que ainda não viu chegarem os resultados (...).

“Das leituras e da medicina”

Gonçalo M. Tavares, o escritor português que nos tem dado muitas alegrias, e honra como poucos a língua e a literatura portuguesa, escreveu, hoje, no DN, um editorial que merece alguma análise. Ao ler o título, “Das leituras e da medicina”, mergulhei com curiosidade no pequeno e elegante texto. Vale a pena lê-lo.
De acordo com o autor, médicos responsáveis não deviam limitar-se a “órgãos que ainda estão vivos”, deviam colocar, após à questão, “o que é que come?”, outra, “o que é que lê? "e que imagens é que vê habitualmente?”.
A partir daqui, e muito bem, realça a importância da cultura, da leitura, da apreciação de quadros, de filmes, de tudo o que alimenta e revoluciona o pensamento, obrigando o cérebro a trabalhar e a contribuir para a saúde e bem-estar dos cidadãos. Concordo plenamente com esta abordagem. No final do texto pergunta onde estará esse médico capaz de tão salutar ação terapêutica ao aconselhar “dietas intelectuais”? “Provavelmente não existe”.
Quando li este editorial estava sentado no consultório prestes a iniciar mais uma jornada. Ao meu lado esquerdo tinha acabado de depositar três livros, livros que me acompanham por toda a parte, à espera de algum momento de ócio. Gosto de aproveitar breves ou longos minutos para ler algumas páginas, às vezes leio apenas uma, outras, nenhuma.
Ao acabar de ler, fui obrigado a rever mentalmente os doentes e os trabalhadores que, por força da lei, têm de se sujeitar a exames. Concluí que muito dificilmente poderia prescrever um livro ou qualquer manifestação cultural. Quem convive com os cidadãos, nas circunstâncias em que um médico os observa, sabe da impossibilidade deste tipo de terapêutica. Ao fim do dia queixo-me frequentemente do baixo nível cultural da população portuguesa, da dificuldade em transmitir certas informações, da incapacidade em aceitarem conselhos simples, básicos, elementares, para não falar na baixa adesão à terapêutica e às dramáticas insuficiências económicas. São apenas os mais velhos os atingidos? Não, os de meia-idade e os mais jovens também manifestam estas características. Quando vejo um doente ou um trabalhador com um livro, aproveito a ocasião para tecer alguns comentários e enveredar por um diálogo cultural, mas é muito raro. Como se pode fazer terapêutica literária, se nem a outra conseguimos? Mas o problema só está no lado dos cidadãos que vão ao médico? Não, também existe um problema deste lado. A formação dos médicos é cada vez mais intensa e complexa e, praticamente, todos os esforços formativos são direcionados para a componente técnica, descurando-se a parte humanística, irmã siamesa da prática médica. Foram separadas, infelizmente. Tenho tentado, nas minhas atividades docentes, realçar a importância desta faceta. Em vão, talvez por incapacidade minha ou talvez pelos motivos já enunciados. É pena esta dissociação, porque a medicina foi, ao longo dos tempos, um importante alfobre da cultura.
Olho para as três obras em cima da minha secretária, “Mariana Sirca”, de Grazia Deledda, “A saga de Gosta Berling”, de Selma Lagerlof e “Os peixes também sabem cantar”, de Halldór Laxness” e penso: - De bom grado daria um destes livros. Entretanto, uma colega, em conversa informal, perguntou-me qual dos três andava a ler. Respondi: - Os três ao mesmo tempo. Ao ver a sua admiração disse-lhe: - É uma questão de gastronomia intelectual, os livros também têm sabores diferentes, e, ao passar de um para outro, consigo ter um prazer difícil de explicar.
Dificilmente conseguirei prescrever “dietas intelectuais”, como aconselha Gonçalo M. Tavares, e, por isso, prefiro embebedar-me com belas obras, o que me fez relembrar Baudelaire, “É preciso que vos embriagueis sem tréguas. Mas de quê? De vinho, de poesia, ou de virtude, à vossa vontade”, ou, se quisermos ser um pouco mais comedidos, e citando Flaubert, “Embriagar-me com a tinta vale mais do que embriagar-me com aguardente”. É o que eu preciso neste momento...

Crise na Europa? Mas qual crise?...

1.Aquilo a que tenho aqui apelidado “retórica da desculpabilização” – a utilização das desculpas mais variadas, por porta-vozes ou “opinion-makers” afectos ao regime para imputar a terceiros a responsabilidade pelas graves consequências dos erros de política próprios – constitui hoje uma tarefa dominante ou mesmo obsessiva.
2.Todos os dias somos bombardeados com novos afloramentos dessa “retórica da desculpabilização”, que assim procura confundir os cidadãos, tentando leva-los a acreditar, por exemplo, que as dificuldades que estamos suportando (e que vamos continuar a suportar, com acrescida gravidade) têm sobretudo uma origem externa...
3.Numa das modalidades mais em uso, muito frequente por exemplo em debates televisivos, é normal ouvir-se a referência a uma crise da Europa, em particular da zona do Euro... “que diabo, isto é uma crise europeia, não somos só nós” (refrão)...
4.Fica assim “explicado” que as nossas dificuldades são mais ou menos comuns aos restantes países europeus, o que assegura naturalmente absolvição dos graves erros de política que nos lançaram neste calvário de dívidas e que nos vão endividando mais e mais...
5.Em recente mensagem natalícia, num estilo realmente incurável, foi-se ao ponto de explicar que todos os países da Europa foram obrigados a “rever as suas agendas” - formula redonda, mas hábil, de lavar as causas, sobretudo domésticas, dos problemas gravíssimos que enfrentamos...
6.Estamos em presença de um gigantesco exercício de desinformação, que recorre a todos os meios e que conta com uma colaboração activa ou passiva da generalidade dos “media”, sendo muito poucos aqueles que lhe resistem.
7.Recordei-me deste gigantesco exercício de desinformação quando li, na edição do F. Times do pretérito dia 19, um interessante artigo de Tony Barber (“Expect adventures in euroland until leaders craft a plan”), no qual parodia a ideia de crise na Europa.
8.Barber cita a Alemanha, que representa cerca de 30% do PIB da zona Euro, cuja economia deverá crescer este ano cerca de 3,5%, graças sobretudo ao desempenho das suas exportações (sendo que, conjuntamente, os mercados de Portugal, Grécia e Irlanda não chegam a 2% dessas exportações...) e em que a confiança dos empresários apresenta, no corrente mês, o valor mais elevado desde...Janeiro de 1991!
9.Barber questiona, com humor, essa falsa ideia de crise na Europa, reconhecendo que a crise existe em alguns países, sim, fruto do enorme desequilíbrio das suas economias e do sobre-endividamento...e que essa crise pode ainda agravar-se se não houver uma resposta convincente da parte dos lideres europeus.
10.Aqui chegados, é pois altura de perguntar aos habituais porta-vozes e “opinion-makers” do regime: onde é que está a crise económica da Alemanha? E a da Austria, da Holanda, da Finlandia, do Luxemburgo, da França, da Bélgica, da Eslováquia ou mesmo da Itália? E que “mudanças de agenda” são esses países obrigados a fazer (a não ser trocar a de 2010 pela de 2011...)?

A caminho de 2011...

Tenho a percepção que a palavra que mais vezes foi falada durante 2010 foi a palavra ESTADO, mas pelas piores razões. Talvez um recorde recente, não por acaso, mas porque o Estado engordou a sua omnipresença na sociedade e na economia.
Assistiu-se a uma trajectória que conduziu, está hoje mais claro do que nunca, à incapacidade do Estado resolver os problemas que ele próprio criou no seu seio e à impotência para fornecer em situação de crise, como lhe compete, os apoios e incentivos necessários e adequados para suprir e minorar carências básicas da vida das pessoas e para impulsionar um quadro favorável à retoma económica.
Com um Estado assim, que não cumpre as suas funções, que faz o que não deve e que não faz o que deve, não admira que o País esteja numa situação de difícil saída, dado que as pessoas e as empresas para além de terem que trabalhar e se esforçar para dar a volta à crise, têm também que fazer frente aos custos desmesurados de um Estado que não quis em tempo útil emagrecer a sua veia paternalista de em tudo intervir e de tudo controlar.
Partimos mal para 2011, mas haja esperança que por necessidade saberemos superar a crise, incluindo a exigência de um Estado que deixe funcionar a economia e que cumpra efectivamente com as suas funções sociais.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Avisos (VI)

A Propósito da Situação de Portugal in Sol, Maio 28, 2010

“(...) A complicadíssima situação que estamos a viver resulta, a meu ver, de dois factores: um, mais conjuntural; outro de carácter mais duradouro, mesmo estrutural.


O primeiro – e quanto a mim menos importante – resulta do despoletar da crise de endividamento da Grécia, no fim de 2009, e da ligação que (justa ou injustamente, isso é pouco relevante), a comunidade internacional logo fez em relação a Portugal (…).


Mas a verdade é que, devido ao segundo factorestrutural, e por isso muito mais importante –, creio que era uma questão de tempo até que esta situação chegasse. Acabou por ser mais cedo do que mais tarde, devido à já referida crise grega. Mas já para lá caminhávamos… e a bom ritmo. É que, como é facilmente perceptível, nenhuma família, empresa ou país pode gastar sempre mais do que produz. Ora, se tomarmos como referência um período relativamente longo, como por exemplo o que se tem passado desde 1974, o ano em que nos tornámos uma democracia, constatamos, de forma arrepiante, que em todos os anos Portugal registou défices públicos e externos (…). Em cada um dos 37 anos entre 1974 e 2010, nunca o que se produziu ou arrecadou foi suficiente para o que se gastou!... E pior: o nosso país é o único entre os 27 que compõem a União Europeia em que tal sucedeu (…).

Pergunto: esta realidade inspira confiança a alguém?!... Com este historial, não será normal que, em tempos de endividamento global galopante (para responder à crise) e de dúvidas quanto ao cumprimento dos compromissos financeiros por parte de alguns países, Portugal esteja sob escrutínio mais apertado?... Ainda para mais quando é consensual que o crescimento económico deverá continuar a ser anémico nos próximos (largos) anos, dificultando ainda mais a obtenção de recursos que facilitem o pagamento das nossas responsabilidades?!...”

Gatos...

Nada melhor do que as viagens para poder analisar com mais acuidade o comportamento de certas pessoas. Muitas passam despercebidas, mas naqueles momentos, em que não há nada para fazer, exceto esperar, permite-me libertar os olhos e o pensamento para o que me rodeia. Recordo muitos episódios, mas o facto de ter escutado, involuntariamente, uma conversa, também noutro espaço rico em observações idênticas, café, fez emergir da minha memória uma senhora loura a querer provar que ainda estava nos quarenta, embora já tivessem passado mais de dez anos sobre esse período, com lacinhos cor-de-rosa no cabelo, mais apropriados para meninas da escola primária, e que se agitava pelo amplo espaço do aeroporto atrás da sua cadelinha, a qual tinha sido penteada como a dona e usava também dois lacinhos cor-de-rosa, iguaizinhos, na cabecinha. Tão parecidas que elas eram! Chamava-a com diminutivos próprios, usando uma língua áspera que, curiosamente, ficava doce sempre que se lhe dirigia. E a safada da cadelita, vaidosa como a dona, dava-se ares de menina mimada, toda coquete e atenciosa. Mas não foi só com cães que eu observei este comportamento, também vi com gatos. Estes, mais desconfiados, altivos, com tiques meio aristocráticos, chamavam a atenção; olhos, bonitos, pelo cuidado, obesidade ociosa e o estranho enroscar nas donas. Estas, habitualmente muito exuberantes, despertavam outro tipo de curiosidade devido à forma como falavam, muito alto, com nítida vontade de chamar a atenção dos demais para a peça que estavam a representar através de incomodativos monólogos com os bichos. Só tranquilizava quando os enfiavam dentro da caixinha e desapareciam pela porta de embarque. E logo gatos!
A senhora que estava sentada à minha frente, no café, anafada, revelando os efeitos das alterações hormonais próprias da idade, loira a dizer basta, e de beiços muito vermelhos, mostrava uma agitação pouco habitual, olhando ansiosamente para a porta à espera de alguém. Ao fim de algum tempo, apareceu outra senhora, de aspeto mais consentâneo com a idade e sem tanta cor, mais para o acinzentado, que, assim que se sentou, começou a ouvir da amiga, queixas e preocupações com a sua filhinha que lhe tinha dado uma noite péssima. – Vê lá tu que espirrou durante toda a santa noitinha e eu sem saber o que fazer, ainda tentei ligar ao médico mas ele não me atendeu. E a conversa era dominada pela senhora que fazia um alarido do caraças, impedindo-me de ler o jornal. Já que não me deixava ler, passei a ouvir a conversa. Mas as queixas continuavam e eu olhava para a senhora. Filhinha? Com esta idade? Só se for neta. E comecei a ter pena da noite da senhora e da pobre criança. Foi só quando ouvi que tinha conseguido falar com um amigo que tinha um amigo que era vizinho do veterinário é que fiquei a saber quem era, uma gatinha. Irra! É demais.
O neuroticismo, um conceito que engloba um vasto leque de sofrimento psíquico, tem sido detetado com mais frequência em pessoas que foram infetadas por um parasita denominado Toxoplasma gondii que necessita do intestino do gato para se reproduzir. Já há muito tempo que se sabe que os ratos infetados por este protozoário cheiram menos os gatos, não têm receio deles, passam mais vezes à sua frente e, consequentemente, são papados muito mais facilmente do que os ratos não sofredores de toxoplasmose. Uma interessante adaptação evolutiva por parte de um parasita que assegura deste modo o seu ciclo reprodutivo. O que é curioso é que contamina mais de dois mil milhões de pessoas em todo o planeta. Habitualmente não há complicações de maior na nossa espécie, exceto durante a gravidez, em que pode originar dramas preocupantes. Haverá alguma vantagem evolutiva na contaminação humana? Penso que não, porque os gatos não nos comem. Mas não deixa de ser interessante a associação revelada por vários trabalhos, sobretudo um, publicado recentemente, onde se questiona o papel da toxoplasmose na definição da cultura. Isto porque os comportamentos das pessoas poderão ser diferentes, nalguns aspetos, e influenciados pelo que se passa a nível do cérebro onde o raio do bicho se instala, ou melhor, se enquista. As alterações da personalidade são diferentes nos dois sexos. As mulheres tendem a ser mais inteligentes, mais afetuosas, mais conformadas, mais atentas aos outros, mais moralistas, entre outros aspetos, enquanto os homens se tornam menos inteligentes, com baixa autoestima, rígidos e instáveis sob o ponto de vista emocional. No entanto, ambos denotam elevada sensação de culpa, apreensão, indecisão, preocupação e ansiedade quanto ao futuro. Ainda são estudos de associação, mas começa a ser identificado alterações de neurotransmissores cerebrais provocados pela presença do parasita no cérebro e modificações operadas a nível do sistema imunológico.
Uma interessante área para pesquisa, sem qualquer sombra de dúvida. Em termos evolutivos, já não sei se não foram os gatos que, aproveitando-se do parasita que necessita do seu intestino, aprenderam a manipular os seres humanos através dele!
Seja como for, destaquei, ainda que de forma sumária, estes achados, porque da conversa havida entre a dona da gatinha e a amiga, perpassou-me pela cabeça duas interrogações; a primeira foi: - Será que a senhora tem toxoplasmas enquistados no cérebro? Quanto à segunda: - Como será o marido? Às tantas também deve sofrer...

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Uma boa notícia!

Uma boa notícia, o governo norte-americano decidiu que, não havendo provas que sustentem as afirmações dos anúncios da Danone – serve para quase tudo -, a marca francesa terá de pagar uma indemnização de 21 milhões de dólares às autoridades federais e a diversos estados. Alguns dos seus produtos não poderão conter referências a propriedades curativas, quer nas embalagens quer nos anúncios.
Esta medida deveria ser aplicada na Europa e não se restringir apenas a produtos desta marca, mas a muito mais que andam por aí. Ouço com frequência, na rádio, alguns anúncios referentes a estes produtos, por vezes legitimados por nutricionistas. São de tal forma obscenos a ponto de pensar que, um dia destes, ainda corro risco de me despistar, tamanha é a raiva que sinto, ao promoverem e divulgarem virtudes curativas e preventivas.
Uma boa sugestão para a tão viciante capacidade legislativa dos nossos governantes, ao menos poderia sair uma legislação mais saudável e dava umas massitas ao tesouro nacional, o pior é se os governantes e deputados andam a tomá-los convencidos dos seus efeitos...

A grande ilusão

Os défices orçamentais têm sido da ordem dos 13 mil milhões de euros ou superiores. A dívida pública directa e explícita vem aumentando vertiginosamente, e mais aumentaria caso se considerassem as responsabilidades que o Estado terá que assumir nas PPPs, nas empresas públicas deficitárias, nos diversos Fundos sem fundo da saúde ou do equilíbrio energético. Nos últimos tempos, até os juros só puderam ser pagos com recurso aos credores e com novos empréstimos.
No entanto, para o Governo, para o Bloco, para o PC, para o PS e para muita opinião publicada a culpa é dos especuladores financeiros e dos mercados internacionais. Nós somos apenas vítimas.
O FCPorto nos últimos 26 anos ganhou 17 campeonatos, ganhou 10 Taças de Portugal, tantas como o Benfica e Sporting juntos e, já agora, ganhou 14 Supertaças. Nesse mesmo período, foi duas vezes Campeão Europeu, ganhou uma Taça UEFA, uma Supertaça Europeia e foi Campeão Intercontinental por duas vezes.
Pois durante um recente Programa de comentário sobre futebol, perguntava-se o que explicava a vantagem do FCPorto sobre os adversários. Acontece que 77% das respostas atribuíam o facto às arbitragens e apenas 12% ao mérito da equipa ou do treinador.
Em critério e rigor de análise, a malta da bola e o pessoal da política estão de acordo no jogo e convergem absolutamente no resultado.
A malta da bola apanha permanentemente boladas, rasteiras e caneladas, e sai sempre mal ferida das ilusões que a magalomania dos dirigentes e treinadores diariamente lhes criam, para seu bem, claro está. E, mesmo levando pela medida grossa, a malta da bola acredita sempre que a culpa é só dos adversários especuladores. Enquanto assim for, não se podem queixar.

Avisos (V)

A Propósito do PEC de Março de 2010 in Jornal de Negócios, Março 23, 20010

“Conhece-se, finalmente, a versão completa da actualização 2010-2013 do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC). Que, em meu entender, deixa muito a desejar.

(…) Apesar de todas as declarações em sentido contrário (…), a verdade é que, neste PEC, o Governo torna a subir impostos (e não é pouco), reincidindo em trágicos erros de ajustamentos orçamentais anteriores, que em muito contribuíram para conduzir Portugal à situação de definhamento económico que vivemos. E que só tenderá a agravar-se, porque o nosso País – já sufocado com impostos – será fiscalmente ainda menos atractivo e competitivo. Quando será que em Portugal iremos perceber esta realidade?!...”

domingo, 26 de dezembro de 2010

Contradições

Gosto imenso de ler alguns dos comentários publicados nas curtas secções dedicadas aos leitores dos diferentes jornais. Ainda há dias, num jornal cá do burgo, uma leitora escreveu uma carta muito pertinente sobre a problemática do ruído na cidade; bem escrita, cuidada, com estilo, revelando uma formação superior. As suas críticas e análise eram mais do que pertinentes, mas a dada altura, na sua apreciação crítica, apontou o cursor do seu texto para a minha pessoa, criticando-me, ao perguntar o que anda o provedor a fazer a este propósito. Um pequeno parêntesis, sou o Provedor do Ambiente e da Qualidade de Vida Urbana de Coimbra e, nessa qualidade, tenho dado algum contributo ao intensificar a voz e a defender os que se sentem injustiçados e foquem assuntos relevantes para a comunidade. Claro que tive de responder, dizendo o que já tinha feito e o que andava a fazer relativamente a este assunto. Como nunca mais saía a resposta, deixei de me incomodar, mas, hoje, na primeira página, fiquei surpreendido com o título e a chamada de atenção para a problemática do ruído na cidade. Não esperava pelo destaque. Pelo menos, espero que fique a saber um pouco mais sobre as atividades de um órgão que, não tendo capacidade decisória, pretende ajudar a resolver alguns problemas.
A minha intenção não era falar sobre mim, ou sobre o organismo que tutelo, mas sim falar sobre a “contradição”, a mais vulgar das características humanas. A senhora deu a entender, no seu texto, que o provedor era um vulgar ser “contraditório”. Às tantas até é capaz de ter razão, e se fosse só como provedor...
Chamar a atenção para as contradições em que caímos é uma espécie de desporto. Umas vezes, assiste-lhes, a quem denuncia os factos comprovativos da contradição, a razão, outras, nem por isso, mas não importa, o que interessa é encontrá-la, e depois denunciá-la.
Ia a pensar na mais vulgar das características humanas, quando, ao ler a entrevista do senhor Cardeal-patriarca, que defende a sua igreja, deparo-me, entre muitas afirmações, com uma bastante interessante. Dizia respeito à promulgação pelo Presidente da República do casamento homossexual. Começa por esclarecer que “a questão do casamento é uma questão civilizacional desde o princípio da humanidade em todos os povos e culturas...”. Bom não é preciso alongar mais sobre o seu pensamento, porque é mais do que óbvio. Mas ao terminar esta resposta, afirmou: “A gravidade dessa lei está na ideia de querer alterar a natureza. Nessa altura, espero já cá não estar!” Presumo que deverá estar no céu, longe da Terra, mas será que, nas “alturas”, não conseguirá ver o que se passará cá em baixo? Vai deixar de se interessar pelos terráqueos? Será que as suas “futuras” funções de Diretor-geral de qualquer repartição do reino de Deus o impedirá de continuar a dar atenção ao pobre pessoal deste país? Claro que a sua afirmação terá de ser lida “simbolicamente”, simbologia que apregoa e defende ao longo de toda a entrevista.
No mesmo periódico, e a propósito das críticas de Manuel Alegre ao passado “salazarista” de Cavaco Silva, um leitor, que regularmente escreve nesta secção, aponta a contradição de Alegre, ao afirmar que “Pior do que viver conformado com o Portugal de Salazar é lutar contra o Portugal de Salazar, a partir de um país com um regime muito mais cruel e onde as violações dos direitos humanos eram muito mais graves (Argélia).
E agora? Agora? Vamos continuar a viver com as nossas contradições, que nos alimentam continuamente, porque sem elas o que é que faríamos ou dizíamos? Nada, seríamos uma espécie de anjinhos papudos com ar de tolinhos à espera de algum acontecimento que nos fizesse despertar da eterna letargia para que pudéssemos cair no reino da humanidade, local, onde, apesar de tudo, deve ser muito mais aprazível viver do que num mundo sem contradições.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Cristo

Ainda hoje recordo com nostalgia os momentos das férias, que aspirava ansiosamente, não para descansar, porque energia era coisa que não faltava na altura, mas para desfrutar mais à vontade as brincadeiras e as festividades que os embrulhavam. Quantas recordações desses tempos me acariciam o pensamento.
Mas não se pense que não tinha de dar, também, o meu contributo para as festividades. Dava, e com muito gosto. Nessas alturas, a turbulência infantil desligava-se, momentaneamente, quando era encarregado de limpar com cuidado um Cristo de marfim, que vinha do antigamente. Limpar o Cristo não era a mesma coisa que limpar as pratas com o “coração limpa metais”. Tinha que ser feito com o coração e o máximo de respeito. A minha avó, na altura da Páscoa, encarregava-me dessa tarefa. Em primeiro lugar retirava o pó, e, depois, com um pano embebido em água dava-lhe o tradicional banho, olhando sempre para a face, tentando observar se não estaria a incomodá-lo, porque quando me esfregavam a fuça, faltava-me sempre o ar, e eu não queria problemas. O olhar do Cristo era forte, não revelava propriamente sofrimento, mas intimidava, impunha respeito, era como se fosse um rei e era bonito. Ao longo dos braços compridos viam-se as veias, coisa que eu nunca tinha visto em mais nenhum, e imaginava o sangue a correr. Também não tinha as chagas, o marfim é duro. Por mais voltas que lhe desse não conseguia retirar aquele amarelo, nalguns pontos a descair para o torrado, mas, apesar de tudo, ficava com outro aspeto, sobretudo quando o expunha ao sol a” secar”. O amarelo, que parecia ser sujidade, passava a brilhar de forma dourada a responder ao sol na mesma moeda.
No domingo de Páscoa ficava na mesa, no meio da sala, rodeado de tudo quanto era bom, à espera do compasso. Aos pés, numa salva de prata, um envelope com dinheiro. Quando ouvíamos a sineta a avisar a chegada, corríamos todos para a sala. Entrava o puto a ribombar o sino, e a repetir a ladainha da ocasião, acompanhado pelos demais. Será que este ano alguém irá reparar no Cristo e dizer ao menos que é bonito? Era a pergunta que colocava sempre, porque o Cristo que nos davam a beijar era frio, de metal, uma imitação que não chegava aos calcanhares do “meu”. Mas não, nunca disseram nada. O homem da pasta de cabedal só se preocupava com duas coisas, recolher o envelope e enfiar mais um copo a tantos outros, ao ponto de não dizer coisa com coisa, nem olhava para o Cristo, e mesmo se olhasse devia vê-lo a duplicar ou a triplicar e muito embaciado; os outros despachavam-se fazendo deslocar o metal debaixo dos nossos olhos e bocas, mas mesmo assim ainda tinha tempo para ver que não tinha a categoria do rei da mesa. Esse sim é que merecia ser beijado. O padre, blá, blá, blá, corado, testa cheia de suor, espalhava a água benta por cima dos bolos e guloseimas sem se aperceber do Cristo de marfim, com enfado e desejoso de se ir embora. O pessoal acompanhante aproveitava o momento para enfardar novamente as suas panças de gula pascal, e eu ficava, mais uma vez, aborrecido por ninguém ter dito nada sobre o Cristo. No final do dia, colocava-o no seu poiso, a aguardar a Páscoa seguinte.
A vida roda e nunca mais soube dele. Acontece que há algumas semanas vi-o em casa de um familiar. Foi o suficiente para recordar numa fração de segundos tantos episódios. Não o cobicei, mas uma sensação de vazio foi-se construindo dentro de mim, sem me aperceber, até que, por uma mera casualidade, acabou por cair em minhas mãos, preenchendo esse espaço repleto de lembranças prontas a serem vividas.
Está mais escuro, sujo, até mais magro e um pouco triste, embora não tenha perdido aquele ar de rei, de senhor, e continua detentor de uma beleza que as imitações não conseguem atingir, as próprias veias dos seus longos braços deixam transparecer o sangue a circular; é quente, não é frio, mas está a precisar de um bom banho, tomara, há decénios que ninguém o limpa como eu fazia. Sei que não é Páscoa, estamos no Natal, mas é um bom momento para o fazer. Daqui a uns dias já deverá estar mais composto, com outro aspeto, mais alegre e, decerto, mortinho para reviver alguns episódios, meus, porque com a idade que tem quantas e quantas histórias não ficaram por contar...

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Boas-Festas de Natal


"Por aqueles dias, saiu um édito da parte de César Augusto, para ser recenseada toda a terra. Este recenseamento foi o primeiro que se fez, sendo Quirino governador da Síria. E iam todos recensear-se, cada qual à sua própria cidade. Também José deixando a cidade de Nazaré, na Galileia, subiu até à Judéia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e da linhagem de David, a fim de recensear-se com Maria, sua mulher, que se encontrava grávida. E quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoira, por não haver lugar para eles na hospedaria".
S. Lucas
Simples homem para muitos, homem e simultaneamente Deus para os que se reclamam das religiões cristãs, o que não há dúvida é que Jesus é uma grandiosa figura histórica que inspirou para o bem homens, culturas e civilizações. Como inspirou para o belo, já que por ele se ergueram as mais majestosas obras-primas do génio humano, da arquitectura, à pintura, à literatura ou à música.
Na dialéctica permanente entre o bem e o mal, também apareceram os que, arrogando-se da sua doutrina, extremistas e fundamentalistas, espalharam o mal, causaram sofrimento e dor, e negaram-se enquanto seres humanos.
Mas é inegável que, Deus para uns ou mero homem para outros, o mandamento único que nos legou, amai-vos uns aos outros, despertou consciências e abriu corações, tornando a humanidade irreversivelmente melhor.
Embora seja politicamente correcto negá-lo, é de facto por ele que comemoramos o Natal.
As melhores Boas-Festas para todos os autores, visitantes, amigos, comentadores ou leitores do 4R.

Avisos (IV)

A Propósito da Anterior Legislatura. in Sol, Outubro 18, 2008

"Com a apresentação do Orçamento do Estado para 2009 (OE’2009) fecha-se esta legislatura em matéria de política orçamental.

É, pois, altura de fazer um balanço sobre a evolução dos principais agregados das receitas e das despesas públicas, bem como do défice público, entre 2004 (último ano da legislatura anterior) e o que se prevê para 2009.

E, lamentavelmente, a conclusão que se pode tirar é que o OE’2009 confirma que a presente legislatura foi literalmente perdida em termos de consolidação orçamental.

  • (…) A redução do défice foi obtida inteiramente à custa do aumento da receita (combate à fraude e evasão fiscal e brutal aumento de impostos decidido em 2005);

  • A dívida pública sobe em 5.7 pontos percentuais do PIB;

  • O valor de todos os agregados da despesa pública face ao PIB sobe entre 2004 e 2009, – uma tendência oposta ao que devia acontecer – assumindo a despesa pública total o maior valor de sempre (!) face à riqueza nacional (47.8%);

  • A despesa corrente e a despesa corrente primária sobem mais do que a despesa total – porque, do lado da despesa, o Governo cortou onde era mais fácil (nas despesas de investimento) e não onde devia ter cortado (nas despesas de funcionamento, onde reside o “monstro”, que continua vivo e de boa saúde)".

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Conto de Natal

História de um pedaço de pão

Certo dia andando a passear por uma escura viela ouvi uns gemidos lamentosos que vinham do chão.
Olhei. Só vi um pobre pedaço de pão duro. Qual não foi o meu espanto ao ver que os gemidos vinham da tal nesga de pão.
Agachei-me e com espanto disse em voz alta:
- Parece que estou a sonhar, pois deu-me a impressão que ouvi uma voz que vinha deste pedaço de pão.
Nisto ouvi uma voz fina que me dizia:
- Não estás a sonhar, meu caro, ou não sabias que nós também falamos e temos os nossos padecimentos?
Ainda com mais espanto perguntei-lhe:
- E que dores tens tu? Eu julgava que o pão não sofria…
Logo a seguir o pão respondeu-me:
- Sim, sofremos. Olha tu, homem, queres ouvir a minha desditosa história?
Cada vez mais estupefacto respondi-lhe que sim.
O pão começou a falar.
- Certo dia, depois de ser vendido numa padaria, fui levado por uma criada que brutalmente me meteu dentro de um saco. Depois, qual não foi o meu espanto, quando vi que ia fazer parte de um lanche de anos da pequenita da casa.
O pão fez uma pausa.
Cada vez mais interessado disse-lhe:
- Continua, por favor, meu pedacito de pão.
O pedacito alegre com as minhas palavras continuou.
- Quando a mesa estava posta vi aparecer um grupo de crianças que logo se atiraram a tudo. Por dificuldade fiquei nos restos e fui parar à caixa do lixo.
Quando ia para o camião dos despejos fiquei no chão.
Nisto passou por ali um pobre que me apanhou para fazer parte da sua pobre refeição.
Muito contente fiquei quando o velhinho disse que era um manjar vindo do céu.
Mas nisto, quando estava quase a ser comido, bateu à porta alguém. O velhinho foi abrir. Fiquei admirado quando vi entrar um rapazito andrajoso.
O velhinho deu-lhe um beijo e logo fiquei a saber que era seu neto. O menino parecia cheio de fome e o pobre homem escolheu-me a mim para lhe dar.
Mais uma vez fui transportado, mas desta vez em bolsos quase rotos. Ao pé de mim estava uma moeda pequena.
O rapazinho corria como uma flecha e com os solavancos caí.
O pedaço de pão parou de falar. Depois disse-me:
- E aqui me encontro desde ontem à tarde sem ninguém me ligar nenhuma.
Eu respondi-lhe:
- Ó Senhor Pedaço de Pão, tem muita razão e desde hoje, fica dentro de uma caixinha na minha casa. É só pedir e eu dou-lhe tudo o que quiser porque compreendo a sua dor.
E, assim, eu e o pedaço de pão fomos para casa.
*
Este conto foi escrito pelo meu amigo JM, pessoa com um coração grande. Este conto é uma manifestação da sua enorme generosidade e bondade, que os amigos de verdade tiveram a sorte de conhecer.

Avisos (III)


A Propósito do OE’2009. in Jornal de Negócios, Outubro 21, 2008

“(…) Depois de ajustados os números de 2009 para uma base comparável,

  • a despesa pública atingirá (…) o valor mais elevado de sempre face ao PIB (47.8%), crescendo 7% face a 2008 (e num ano em que a inflação prevista será de 2.5%...);

  • a despesa corrente primária crescerá 5% (provando o total fracasso do PRACE); e

  • esta legislatura terá sido completamente perdida em termos de consolidação orçamental pelo lado da despesa (aquela que era essencial que tivesse sido prosseguida), com o défice a ser reduzido unicamente por via do aumento da receita, (…) cujos agregados, tal como os da despesa pública, se situam bem acima dos valores de 2004 – o último ano da anterior legislatura (…)”.

Execução orçamental: fundados motivos de dúvida...

1.Fomos ontem positivamente bombardeados pela notícia de que o défice da execução orçamental de 2010, até Novembro, tinha pela primeira vez no corrente ano ficado abaixo – 100 milhões Euros ou seja 0,59% do PIB – do registado em igual período de 2011...
2.No seu estilo inconfundível, o PM declarava que este dado iria transmitir confiança aos mercados...a reacção dos mercados, paradoxalmente e até agora, traduziu-se numa subida das taxas de juro da dívida portuguesa...
3.Os dados da execução orçamental ontem divulgados suscitam naturais reservas, por duas razões fundamentais: (i) o enorme volume de despesa cujo pagamento tem vindo a ser atrasado e que, como tal, não está contabilizada nos dados divulgados até Novembro e (ii) o crescimento da dívida pública directa até Novembro.
4.Quanto ao primeiro aspecto, sabe-se que os dados divulgados pela DGO na informação mensal são baseados nas regras da Contabilidade Pública, que no caso da despesa só registam a que é efectivamente paga, por conseguinte omitindo a que tenha sido realizada mas não paga.
5.Ora são do conhecimento público as gigantescas dívidas que, sobretudo na área da Saúde, têm vindo a ser acumuladas nos últimos meses, por insuficiência de verba para as pagar: são muitas centenas de milhões de Euros, talvez mesmo milhares de milhões – trata-se pois de despesa realizada mas não contabilizada ainda como tal e que por isso é omitida nesta informação mensal da DGO...
6.Por outro lado, a dívida pública directa cresceu até Novembro 13,5% em relação à dívida registada no final de 2009, o que permite, mesmo descontando o factor anterior, ter dúvidas quanto ao rigor dos números apresentados...se o défice orçamental só cresce, por hipótese 8% ou 9%, como explicar que a dívida tenha crescido 13,5%?
7.Quanto a esta evolução da dívida, fortemente divergente da evolução do défice, até pode ser que exista uma explicação ou várias explicações...mas se e enquanto tais explicações não forem divulgadas, a dúvida permanece...
8.Neste quadro de dúvidas e mais dúvidas, algumas do conhecimento público outras que poderão ainda vir a ser suscitadas, a ideia de cantar vitória com a redução do défice de € 100 milhões parece prematura ou mesmo extraordinariamente ousada.
9.Não nos esqueçamos que a U.E. está “escaldada” pelo lamentável exemplo do défice da Grécia em 2009 que, de um valor inicial da ordem de 7% salvo erro (preliminarmente certificado pelos serviços da Comissão), na última revisão ia já em 15,4%...
10. E, como se usa dizer, “gato escaldado, de água fria tem medo”...

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Avisos (II)

A Propósito do OE’2008. in Jornal de Negócios, Outubro 16, 2007

"Há um ano, cataloguei o Orçamento do Estado para 2007 (OE’2007) como uma desilusão.

Um ano decorrido, ao analisar o OE’2008, o sentimento é, infelizmente, reforçado, porque nos encontramos perante um processo de consolidação orçamental absolutamente desadequado e fracassado.

Por duas razões principais. Porque é ilusório o combate à despesa; (…) porque carece de uma actuação acertada do lado dos impostos: a nossa falta de competitividade fiscal (…) em nada é invertida.

(…) Em 2008, a despesa pública total, corrente e corrente primária (…) sobem em valor absoluto (assumindo valores record); (…) sobem com (…) crescimentos próximos do dobro (!) dos de 2007, um cenário que considero verdadeiramente assustador; e (…) sobem em termos reais (mais do dobro do que se prevê para a inflação, 2.1%).

É transmitido um sinal de laxismo à sociedade, (…) um erro crasso, até pelos (…) tempos incertos da conjuntura internacional, com consequências sobre as já-de-si difíceis condições estruturais que, reconhecidamente, a economia portuguesa continua a atravessar. O que teria sido correcto, mesmo não conseguindo reduzir a despesa pública de facto, era, pelo menos, que todas estas componentes da despesa crescessem menos do que em 2007 e/ou não crescessem em termos reais. Assim, se alguma intenção houve de conter ou consolidar, ela resultou num rotundo falhanço.

Creio que o Ministro das Finanças tem perfeita consciência deste facto: a irritação que não escondeu na conferência de imprensa de apresentação do OE’2008, quando questionado pelos jornalistas quanto à falta de ambição deste Orçamento é disso reveladora (…)".

Os afectos é que contam...

Recentemente numa homenagem a um grupo de colaboradores que irão para a reforma, foi muito tocante ouvir as palavras de um deles sobre o misto de sentimentos, a gratidão pelo passado, o aconchego do presente ou o medo do futuro.
A passagem à reforma perspectiva-se para a maioria das pessoas como uma mudança radical nas suas vidas. Há como que um efeito de "guilhotina" que corta abruptamente um modo de vida do qual fazem parte todo um conjunto de hábitos e relacionamentos que desaparecem e deixam um vazio que é difícil preencher. E isto é tanto mais assim, quando as pessoas não desenvolvem ao longo da vida activa outras ocupações e interesses. Normalmente, não se reserva o tempo necessário para fazer ou planear uma transição que seja suave.
Talvez que o mais significativo seja a perda dos afectos que se constroem no trabalho ao longo de muitos anos, seja nos laços de companheirismo e de amizade que se estabelecem com os colegas, onde não falta a cumplicidade, a entrajuda ou a partilha de interesses e gostos comuns, seja nas relações de natureza hierárquica conduzidas pelo formalismo que enriquece a aprendizagem ou até nos “ódios de estimação” que muitas vezes servem para defender a auto-estima e ocupar um espaço de crítica e desvalorização suficientes para alimentar uma dose suplementar de adrenalina.
Tantas vezes ouvimos pessoas dizerem que estão cansadas de trabalhar, cansadas de ter que aturar este ou aquele chefe ou esta ou aquela prática ou exigência de trabalho, que tomara que chegue a hora da reforma para acabar com todos esses aborrecimentos. Mas quando se aproxima o momento, o receio da falta de todas essas “chatices” toma conta das pessoas. E, então, acabam a fazer um balanço positivo de um período mais ou menos longo da vida em que o trabalho desempenhou um lugar muito importante, desvalorizando as contrariedades e valorizando o que receberam da empresa, dos colegas, etc. A gratidão, a satisfação e a amizade tomam conta desses momentos, dos que partem para a reforma e dos que ainda têm de esperar.
É por isso que nem as organizações nem as pessoas devem cortar o “cordão umbilical”. No estado de reforma é desejável que os relacionamentos se mantenham, num formato naturalmente diferente, para aconchego de todos. Afinal as organizações são feitas de pessoas e a sua existência está intimamente ligada ao bem-estar de quem nelas trabalha. Os afectos verdadeiros nunca morrem e são o bem mais precioso da vida…

"Drogas eletrónicas"

Uma aluna minha, de um curso de pós graduação, não médica, escreveu um pequenino ensaio sobre um tema de saúde pública. Pedi aos alunos que, em vez de escreverem relatórios ou fazerem trabalhos, escolhessem à sua vontade um assunto relevante, debruçando-se sobre o mesmo de forma a transmitir novos conceitos ou perspectivas, mas sempre com um cunho muito pessoal. E é através desses textos que irei avaliá-los. Este escrito em concreto, “Drogas eletrónicas”, como outros que já comecei a receber, merece ser divulgado. Por este motivo aqui o deixo no Quarta República.

"Drogas electrónicas"

Já não conseguimos viver sem um computador, sem navegar na Internet, vivemos num mundo que já não funciona sem as famosas tecnologias. E como as novas tecnologias estão sempre a aparecer e evoluir, surgem agora as drogas electrónicas que não são mais do que sons e impulsos sensoriais que prometem efeitos físicos e mentais semelhantes aos da heroína, cocaína, ecstasy, LSD, álcool e até do viagra.
Esta nova droga consiste num software, I-doser, que emite doses de ondas sonoras que interferem nas ondas cerebrais do utilizador.
Este software pode ser descarregado no site oficial, onde são vendidas as doses de áudio. O seu uso é limitado, não sendo possível a reutilização depois de algumas doses mas, hoje em dia, existe sempre maneira de dar a volta “à questão” e retirar essa limitação.
A dose funciona de uma maneira muito simples, através do envio de sons que estimulam o cérebro, elevando ou baixando as ondas cerebrais até determinada frequência que gere o efeito desejado.
Desde o século XIX é conhecido que nosso cérebro emite determinadas ondas cerebrais, e, dependendo da frequência dessas ondas, o nosso comportamento e percepção do ambiente mudam por completo. Utilizando esse conhecimento, o software gera determinadas experiências aos seus utilizadores, de acordo com a função da dose utilizada por eles.
Cada dose de áudio dura entre quinze a sessenta minutos. Esta deve ser ouvida através de auscultadores, num local silencioso e com luz fraca. Caso se utilizem colunas, já não terá efeito, pois é emitido um som distinto em cada ouvido ao mesmo tempo. Diz o site do I-doser que quanto maior a qualidade dos auriculares, melhor será a experiencia. As doses estão agrupadas em categorias, como por exemplo: doses espirituais, sedativas, dieta ou sexuais.
As doses mais conhecidas são as Gate of Hates, que é suposto ser uma das drogas mais fortes e que irá assustar de morte, afirmando ter efeitos como "Pesadelos esperados, próximos de experiências de morte, e forte início de medo". A outra dose é Hand of God, a mais forte, que é como tocar o céu: “É como um santo que chega do céu, coloca-te de olhos fechados e mostra o universo, tudo, o infinito.”
Já tive curiosidade de ouvir um pouco da primeira, consegui obter o ficheiro áudio sem ter que pagar e sem qualquer limitação, logo consegui uma “droga” de forma gratuita. O que se ouvia eram uns ruídos muito baixos no início, saltei para o final e os ruídos já eram muito altos. Não consegui ouvir tudo, pois já estava a começar a ter dor de cabeça, de tanto ruído...
Li algumas experiências de utilizadores e uns dizem que não sentiram nada e outros que estavam realmente com medo e alguns tinham até alucinações. Há imensos vídeos das reacções no youtube e todos eles apresentam efeitos muito fortes.
Alguns especialistas dizem que os efeitos desta droga e dependência ainda não estão muito claros, apesar de serem perigosas pelo facto de “mexer” como o nosso cérebro. Alguns dizem que de certa forma é uma hipnose, já que a consciência dos utilizadores pode ser manipulada.
Por enquanto vamos ficar nas incertezas, porque ainda não existe nenhum estudo a provar os efeitos desta droga. Resta-nos esperar para ver o que vai surgir com as novas tecnologias.
(Diná Trindade)

Parabéns Diná.

Mulher empreendedora e solidária

Ontem vi num telejornal que o Prémio Empreendedor Imigrante do Ano foi entregue a uma iraniana de 29 anos, Leila Sadeghi, licenciada em literatura inglesa, que está em Portugal há 5 anos e que se distinguiu pelo trabalho inovador no campo da estética e das técnicas orientais que aplica no seu instituto de beleza em Coimbra. Além de tratar da maquilhagem e da beleza das suas clientes, esta mulher activa ainda dá umas horas do seu tempo a apoiar um centro de idosos e afectou 10% dos lucros da sua empresa a instituições de solidariedade. Numa pequena entrevista, falou português com muito acento mas com correcção e contou que a sua maior surpresa foi perceber a ideia que os portugueses têm das mulheres iranianas, que consideram oprimidas, quando afinal as portuguesas vivem muito mais sobrecarregadas de trabalho do que elas. E ria-se, divertida, a falar disso com uma grande admiração e a considerar que o governo iraniano é que tem culpa da imagem que se transmite para o exterior do seu país.
Há tempos fui ver um filme sobre as razões da crise actual e um dos entrevistados comentava que o mundo financeiro é um exclusivo dos homens, assim como quem diz que se houvesse mais mulheres as coisas não teriam descambado daquela maneira...

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

"Boas agressões"

Já começo a ficar farto das explicações sobre o papel dos antioxidantes na preservação da saúde humana. Precisamos de oxigénio para viver e muitas das reações que ocorrem no nosso organismo libertam radicais livres, os quais têm, de facto, efeitos perniciosos, mas apenas em concentrações elevadas; e para evitar que tal aconteça possuímos mecanismos de proteção e de neutralização.
Os radicais livres têm sido responsabilizados em várias doenças, nomeadamente nas doenças cardiovasculares e no envelhecimento. Usar e aconselhar antioxidantes constitui uma moda, e quando se verificou que o vinho tinha essas substâncias, clamou-se alto e em bom som que o papel protetor do vinho era devido a elas. Logo, beber uns copitos passou a adquirir o estatuto de medicamento ou de vacina! Mas só o vinho? Não! Chocolate, chás, brócolos, cenouras, morangos, tomates, vegetais verdes, amêndoas, castanhas, frutas cítricas e silvestres, só para citar alguns, têm componentes dotados desta atividade. Tudo bem. Resta saber, caso do vinho tinto, se as quantidades ingeridas, bebendo moderadamente, serão suficientes para ter algum efeito.
Desconfio sempre do excesso de virtudes. Agora surgiu um trabalho a revelar que vermes produtores de mais radicais livres ou que tinham sido tratados com substâncias, herbicidas, dotados de atividade oxidante viviam mais do que os normais! E quando lhe foram administrados antioxidantes passaram a ter uma vida convencional. Sendo assim, é de pôr em causa a ideia de que ingerir antioxidantes prolonga a vida.
A produção de radicais livres é o resultado da resposta do organismo às agressões, o que é perfeitamente normal. Esta resposta, afinal, acompanhar-se-ia de efeitos benéficos a certos níveis. Se a produção dos radicais livres nas mitocôndrias aumenta com a idade será mais uma consequência do que a “causa” do envelhecimento. Envelhecer lesa o organismo, e este tenta contrariar a agressão produzindo radicais livres. O exercício físico tão propalado como fazendo bem à saúde, e faz, aumenta os radicais livres, e beber bebidas alcoólicas também aumenta os radicais livres. Estamos perante agressões, e, no caso do vinho, os antioxidantes que comporta não deverão ser suficientes para neutralizar os que produz no organismo. Estes achados enquadram-se perfeitamente dentro da perspectiva ecológica, segundo a qual, e desde que respeitados certos limites, as agressões são muito úteis para podermos beneficiar positivamente em termos de saúde. Faz todo o sentido.
Sendo assim, quando alguém beber um copo de tinto terá, futuramente, de alterar os seus argumentos, deixando de afirmar que bebe vinho porque faz bem à saúde. Em vez de dizer “estou a proteger o meu coração porque o vinho é rico em flavonoides”, deverá passar para “tenho de agredir o corpito para que não se esqueça de proteger o meu coração”. Mas cuidado, nada de beber em excesso, porque tudo tem limites. De qualquer modo, tudo aponta para que a teoria da hormesis também se aplica ao vinho. Nada melhor do que uma boa agressão, e se for do “bom”, então, melhor...

Avisos (I)

À beira de mudarmos de ano, e tendo em atenção a delicadeza da situação financeira, económica e social que Portugal enfrenta – para já não falar da falta de credibilidade internacional do nosso país em matéria de “contas” (satisfação de compromissos financeiros) –, pareceu-me ser esta uma altura apropriada para recordar alguns dos meus escritos nos últimos 5 anos, em que fui avisando para o perigo das opções de política económica desadequadas que iam sendo tomadas, em particular no que diz respeito às políticas orçamental e fiscal. A crise internacional, cujos primeiros sintomas foram sentidos na segunda metade de 2007, a consequente crise de endividamento de algumas das economias periféricas europeias (nomeadamente a Grécia) e o rápido contágio a Portugal, apenas vieram apressar a situação que hoje enfrentamos. Mas já para lá caminhávamos e (infelizmente…) a bom ritmo.

Assim, hoje, amanhã, e dias 22, 23, 27, 28 e 29 de Dezembro (com um interregno para os dias natalícios) recordo alguns desses meus “avisos” que, infelizmente para todos nós, se vieram a revelar... certeiros.

A Propósito do OE’2007. in Jornal de Negócios, Outubro 31, 2006

“Acho o Orçamento do Estado para 2007 (OE’2007) uma desilusão.

(…) Portugal tem, indiscutivelmente, um excesso de despesa pública, sobretudo de despesas correntes, de funcionamento – do aparelho do Estado. É aí que reside o famoso “monstro” (…) que precisa de ser combatido.

Ao mesmo tempo, Portugal tem um claro problema de falta de competitividade fiscal – uma das componentes da competitividade geral, nem mais nem menos importante que outras componentes, mas que não pode (nem deve, face às tendências internacionais) ser esquecida.

Ora, nenhum destes dois problemas é combatido eficazmente no OE’2007.

Nunca (…) se encontraram reunidas tantas condições como agora para cortar eficazmente na despesa pública (…) em termos absolutos. Sei que não é fácil. Mas nunca, como hoje, foi tão necessário. E isso, sim, a acontecer, seria inédito. (…) A despesa pública, a despesa pública corrente e a despesa corrente primária (…) descem em percentagem do PIB – e isso é, inegavelmente, positivo. Mas esse não é o único critério relevante para se avaliar o que acontece na área da despesa pública. O crescimento destes agregados face ao ano anterior é, igualmente, importante. E a verdade é que, em 2007, a despesa pública total, corrente e corrente primária (i) sobem todas em valor absoluto (assumindo valores record); (ii) sobem mais do que se admite virem a aumentar em 2006 (respectivamente 2.6%, 2.9% e 2.5%, contra 0.4%, 1.3% e 0.8%); e (iii) sobem em termos reais (isto é, acima da inflação).”

Uma só medida que valeria bem mais que as 50...

1.A história de uma lista de 50 medidas para “encher” a chamada “agenda do crescimento” pode ter algo que se lhe diga...
2.Em primeiro lugar, não resisto à tentação de pensar que esta iniciativa das 50 medidas e da “agenda do crescimento”, atentas as suas características mediáticas, possa ter sido obra de alguma agência de comunicação, uma dessas maternidades de ideias fantásticas, pagas a peso de ouro...
3.Confesso que essa possibilidade me assusta, pois se assim for não iremos muito longe com esta “agenda do crescimento”...mal vai um País quando a estratégia de política económica tem de se submeter aos ditames de um mediatismo exacerbado, sendo para tal modelada por quem não tem a mais pequena ideia dos reais problemas da economia e de como devem ser enfrentados...
4.Acresce que uma das medidas apresentadas como mais emblemáticas – o fundo para financiamento dos despedimentos – arrisca-se a ser um nado-morto, rejeitada por todos os interessados no assunto e classificada até por um dos principais especialistas na matéria como uma ideia “surrealista”...
5.Ora na pretérita semana foi divulgado – mas rapidamente apagado da comunicação social – um relatório de Bruxelas em que Portugal era apontado como o País da U.E. com maiores atrasos de pagamento entre agentes económicos...
6.Tal situação era explicada sobretudo pelos atrasos de pagamento do Estado – o Estado Central, o Regional e o Autárquico, com todas as suas adjacências empresariais (os hospitais em grande destaque, ao certo)...
7.Quem acompanhe regularmente a actividade económica e conhece os problemas com que as empresas se defrontam, percebe bem as tremendas dificuldades que estes absurdos atrasos de pagamento causam à sua gestão financeira...
8.Este problema tem vindo a agravar-se com a dificílima conjuntura creditícia que se está vivendo, a qual tem sido ampliada pela conhecida dificuldade dos Bancos em obter “funding” externo...
9.Com volumes enormes a receber dos clientes – Estado à cabeça – e sem possibilidade de acesso a crédito ou só o conseguindo a taxas de juro quase proibitivas, as empresas, duma forma geral, vêem-se em extremas dificuldades para cumprir os seus compromissos financeiros...
10.Está a criar-se assim o conhecido fenómeno endémico da “bola de neve” na acumulação de atrasos de pagamento...porque não recebo e não tenho crédito bancário, não pago ou atraso o pagamento...
11.Atrevo-me pois a sugerir que se substituam as 50 medidas por uma só, esta sim verdadeiramente revolucionária: o Estado (os vários Estados) anuncia que vai emitir dívida para pagar, no prazo máximo de 90 a 120 dias, todas as dívidas às empresas...
12.Que grande agenda para o crescimento, com incalculáveis efeitos benéficos sobre a actividade e o emprego...

domingo, 19 de dezembro de 2010

A primeira de Cavaco

Teve lugar na sexta-feira passada a primeira entrevista-debate de Cavaco, no caso com Fernando Nobre.
Contra um ardoroso e nobre candidato, todavia aqui e ali a cair nas margens do alarmismo, quando, por exemplo, falou de implosão social, Cavaco Silva não se desviou do seu perfil de rigor e de seriedade.
Explicou as funções e as suas limitações; e mostrou como se moveu e agiu e os objectivos que conseguiu no quadro constitucional vigente.
E se considerou que o Orçamento não era o desejável, nem traria a cura para os males do país, também deu a entender que sem ele o país entraria em rota mortal. Foi a medicina imediata possível, que desse tempo à administração de remédio mais consistente e duradouro.
Quanto às propaladas alterações à Lei do Trabalho, Cavaco considerou que não seria por medidas desse tipo que passava o aumento do dinamismo empresarial e a recuperação da economia. De facto, outros factores, como o investimento em inovação, o investimento tecnológico ou o investimento em organização são mais decisivos para a mudança do que alterações às leis laborais.
De facto, nos custos laborais, nunca poderemos competir com a China, ou a Índia, ou os países de leste. Mas, com os custos laborais que temos, mas com outra organização, com outra tecnologia e apostando na inovação, podemos competir com os países em que a mão-de-obra é significativamente mais cara.
Cavaco Silva sabe o que quer para o país. Afirma as suas ideias. Elas valem por si. Por isso, não precisa de atacar as ideias dos outros.

sábado, 18 de dezembro de 2010

A rotina dos números...

As más estatísticas já, há muito, que fazem parte da nossa rotina. Já pouco ou nada reagimos, como se fosse uma fatalidade com a qual temos que viver. Parece até que temos já uma certa dificuldade em pensar que as estatísticas, sendo números, retratam a vida real de pessoas. A notícia passou quase despercebida. Não trabalham e não estudam. São 314 mil jovens. Uma realidade de vida esmagadora.
São muito jovens desaproveitados, a ganharem maus hábitos, a cargo das famílias, impedidos de construir uma vida normal e sem possibilidade de fazer projectos, muitos deles desorientados e desesperançados. Os que têm qualificações vão-se embora, os outros não têm grande futuro. É uma geração que se está a perder e que vai comprometer o futuro do País, mas é também uma pesada responsabilidade que recai sobre as gerações mais velhas incapazes de travar este rumo. O futuro de um país está nos jovens, porque são novos, têm a força própria da juventude. São criativos e inovadores. São empreendedores. E bem que precisamos de inovação para nos modernizarmos e sermos capazes de competir no mercado global.
Se pensarmos no esforço de investimento colocado na sua educação e formação, compreendemos as elevadas perdas que representa a incapacidade de o transformar em trabalho e geração de riqueza. Um custo gigantesco que vai muito além de uma mera conta aritmética, a que teremos que somar o custo da desilusão e frustração dos jovens.
O que é que temos feito para acabar com esta verdadeira sangria? Fosse uma situação conjuntural, facilmente reversível, e não teríamos que nos preocupar. Mas, para mal de todos, e em particular dos jovens, não é assim…

“Bom dia, tristeza”

Envelhecer é um privilégio, sobretudo se for acompanhado de um razoável estado de saúde. A perceção das alterações é mais ou menos evidente; umas vezes ocorrem abruptamente, outras insidiosamente dando tempo a que nos adaptemos sem angústia ou dor. A par das alterações fisiológicas, também a forma de ver o mundo e lidar com os acontecimentos sofrem modificações. São muito importantes, mas para darmos conta da sua existência é preciso que o tempo escorra demoradamente através da ampulheta da vida.
A inteligência emocional e as capacidades cognitivas modificam-se, de uma forma particular, à entrada do sexto decénio da existência, propiciando vantagens, quer no campo profissional, quer nas relações pessoais. Há quem afirme que a evolução otimizou o nosso sistema nervoso para intensificar os processos de relações interpessoais e de compaixão à medida que envelhecemos. Não sei se a evolução tem algum interesse em investir no estado de exceção que é o envelhecimento. Dou de barato esta observação e regresso, imediatamente, à questão inicial, porque é que a partir de certa idade os mais velhos são capazes de demonstrar capacidades interessantes e muito diferentes dos mais novos ante as mesmas situações? Os mais velhos conseguem ver ou extrair aspetos positivos de acontecimentos stressantes e dramáticos e simpatizam com os mais infortunados. Esta forma de reinterpretar cenas negativas em formas positivas é fruto de um mecanismo desencadeado pela experiência da vida e pelas lições aprendidas, dando algum significado à velha expressão de que “o diabo sabe muito, não por ser diabo, mas por ser velho”. 
Estas observações, simples, têm sido objeto de estudos muito interessantes, através dos quais grupos de pessoas pertencentes a diferentes grupos etários, vinte, quarenta e sessenta anos foram sujeitos às mesmas agressões e experiências. O comportamento de supressão, denotado pelos mais novos, não é muito saudável para controlar as emoções; os adultos mais velhos sabem resolver as situações extraindo tudo o que possa melhorar a qualidade de vida, embora, e aqui realço um aspeto importante, possam sentir mais tristeza, tristeza essa que leva a uma maior intimidade, intensificando as relações interpessoais. Poderão pensar, então, se ficam mais tristes correm mais risco de depressão! Não forçosamente, porque a tristeza constitui uma emoção muito útil na fase tardia da vida. Neste período, como todos sabem, os infortúnios têm tendência para se avolumarem devido à ordem natural das coisas, e, nestes casos, a tristeza permite compreender, dar e receber conforto, ajudando a criar uma atmosfera de intimidade nas relações interpessoais, indispensáveis para aguentar a última etapa.
É certo que a experiência acumulada é um fator importante, mas não chega para explicar todos os fenómenos. Afinal, também há uma base neurológica, o cérebro pré-frontal, responsável pelas “funções executivas”, memória, planeamento e controlador dos impulsos, diminui com a idade, levando-nos a ver e a sentir o mundo de uma forma diferente, mas bastante útil para conseguirmos adaptar às novas situações que o tempo inexoravelmente se encarrega de construir e de nos presentear. Há vantagens? Penso ter explicado que sim, ver algo de positivo em situações negativas, não as rejeitar ou fugir, como acontece em idades mais jovens, e não considerar a tristeza como algo negativo ou patológico, mas como uma emoção saudável para compreender e resolver os inúmeros problemas que as vidas longas propiciam, são uma forma equilibrada que a “evolução” terá desenvolvido para nos ajudar. No fundo, estes fenómenos materializam-se numa maior solidariedade, intimidade, compaixão, reforço das relações interpessoais, contribuindo para uma vida melhor, inclusive, dos mais novos.
Quando acabei de ler o estudo, pensei: - É capaz de ser mesmo verdade, porque começo a reagir desta maneira e, não tarda, vou entrar neste grupo etário...

Bom dia, tristeza 

Que tarde, tristeza 


Você veio hoje me ver 


Já estava ficando 


Até meio triste 

De estar tanto tempo 


Longe de você




Se chegue, tristeza


Se sente comigo


Aqui, nesta mesa de bar


Beba do meu copo


Me dê o seu ombro

Que é para eu chorar


Chorar de tristeza


Tristeza de amar
(Vinicius de Morais)

Sócrates não chegou a tempo...

Sócrates não foi a tempo de assinar a lista de Manuel Alegre entregue no Tribunal Constitucional, diz o Expresso de hoje.
Haverá várias explicações:
a) perdeu o autocarro
b) no momento, viu que não tinha trazido a caneta
c) achou que apoiar Manuel Alegre não era importante
d) pensou que a cerimónia não metia televisão
e) resolveu não gastar tinta, que a época está má.
f) preferiu meditar e descansar no Pulo do Lobo.

Pedrada

Não tenho qualquer problema em acordar cedo. O que me preocupa é dormir pouco com receio de, ao longo do dia, ficar curto de ideias. Ultimamente, tenho-me levantado não com as galinhas, mas antes de o galo começar a cantar.
O facto de chegar algum tempo antes da hora da responsabilidade permite-me ler um pouco, duas a três páginas de um bom livro, que me sabe a mel e, também, ver as pessoas a desembrulharem-se do casulo da noite, alguns com dificuldade visível, basta olhar para as suas faces, fácies da madrugada, inexpressivas, olhos embaciados, pensamentos opiáceos, marcha um pouco atáxica; deixa-me testemunhar a agonia do silêncio noturno e reparar em alguns efeitos dos filhos da noite. Foi o que aconteceu na manhã do dia das eleições para a Ordem dos Médicos. Atendendo às minhas responsabilidades tive de estar presente. Tudo em conformidade para mais uma manifestação cívica. As urnas vazias foram prontamente fechadas, deliciando-me com o crepitar e a liquefação do lacre a pingar sobre os respetivos atavios e a chancela a mergulhar no líquido vermelho, criando o selo da inviolabilidade, algo a fazer recordar histórias do antigamente, quando o lacre era usado tanto em documentos oficiais como em cartas de amor.
Antes de ter subido a escadaria, verifiquei que a paragem do autocarro em frente tinha o vidro lateral partido. No chão milhares de pedaços de vidro reluziam sob o efeito da luz do novo dia. Aproximei-me do montículo e, no meio, uma pedra era testemunha do ato selvagem. Ao lado, um pequeno ramo de uma planta com algumas folhas a coroá-lo, mais parecia uma flor lançada sobre uma campa. Dois momentos e dois significados na mesma madrugada.
O ato de vandalismo, um entre muitos que a cidade vem registando nos últimos tempos, constitui uma atitude lamentável de alguém incapaz de respeitar as regras de convívio social e o património coletivo. O que terá passado pela cabeça do energúmeno? Estaria sóbrio? Estaria bêbado? Fosse qual fosse o seu estado mental, ainda deveria ter alguma perceção do erro que estaria a cometer. É impossível não ter tido essa sensação. Às tantas não terá sido a primeira vez. Será que consegue aperceber-se do seu papel na sociedade? Será que tem emoções de amor, de caridade, de paixão, de ternura e não só de violência? Gostava de saber. Também gostava de saber como se comporta em caso de dor, de isolamento e de amor, entre outros.
Depois de ter dado início ao ato eleitoral, fui trabalhar todo o dia, sem conseguir esquecer os dois momentos que contrastavam em absoluto. Manifestação cívica de vários cidadãos que têm como objetivo dar o seu melhor para o desenvolvimento da sociedade a par da destruição selvática e gratuita de um representante de outra forma de ver e participar na sociedade. Ambos de origem humana. Sempre foi assim, poderão argumentar, talvez, mas não deixo de me questionar sobre o porquê de continuarmos a assistir a esta dicotomia.
Ao fim do dia, pelas vinte horas, e depois de um rápido cantar, “parabéns a você”, à neta mais nova, estava no meu posto de responsabilidade para o encerramento do ato. Tinha chegado o momento de colocar nas urnas os votos por correspondência. Tantos, meu Deus! Não me recordo a que horas foram todos colocados nas urnas. Finda esta tarefa, procedeu-se à contagem e depois à divulgação dos resultados. Meia dúzia de palavras finais para os vencedores e ala que se faz tarde, já passava da 1:30. Ao descer as escadas, cansado, calculei as horas que iria dormir, poucas. As noites curtas aborrecem-me, porque encurtam as ideias durante o dia. Noite fria, noite a despovoar-se, noite a convidar os amantes das pedradas, ainda olhei para o lado e reparei que o lugar do vidro estilhaçado já estava limpo, alguém terá cumprido com a sua missão, mas nada impede que, de manhã, noutro local, uma pedra seja novamente testemunha de um energúmeno, que se entreteve a desfazer o trabalho de outros.
O que sentirão os vândalos perante a destruição, a dor, o sofrimento e o amor?

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Proporções e desproporções...

"Emirates Palace" em Abu Dhabi

Com 13 metros de altura, decorada com arcos de prata, 181 peças em diamantes, pérolas, safiras, esmeraldas e outras pedras preciosas, pela módica quantia de 8 milhões de euros. Não fiquei impressionada...

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Então, ninguém nos compreende?!!

1.Na edição de ontem do Financial Times, com destaque de 1ª página (amigo Peter Wise...), o PM português era citado com garantindo que Portugal está a fazer tudo o que lhe compete no plano da consolidação orçamental e que até constitui um exemplo na adopção de reformas estruturais dirigidas à sustentabilidade das finanças públicas.
2.Escapou-lhe é certo a inspirada mensagem de que nos encontramos “na linha da frente da consolidação orçamental”, utilizada noutra declaração de ontem, esta voltada para o “mercado interno”...
3.Surpreendentemente, no leilão de dívida pública hoje realizado, último do corrente ano e no prazo mais curto – Bilhetes do Tesouro a 90 dias – a taxa de juro impressiona pela forte subida, quase duplicando em relação ao último leilão deste mesmo tipo de dívida efectuado em 3 de Novembro: nessa data a taxa de juro média foi de 1,818%, hoje atingiu 3,403%...
4.Ao mesmo tempo, a taxa de juro das obrigações do Tesouro a 10 anos está em subida há vários dias situando-se hoje em torno de 6,5% depois de na pretérita semana ter chegado a níveis inferiores a 6% na sequência de compras significativas pelo BCE - o que significa que basta o BCE afastar-se do mercado para que esta taxa de juro volte a subir...
5.Justifica-se assim perguntar: será que ninguém nos compreende nem acredita nas vigorosas promessas de consolidação orçamental que os dirigentes nacionais não se cansam de anunciar aos 4 ventos? Só o BCE nos compreende e acarinha os nossos esforços?
6.O que mais precisaremos de fazer para que os investidores/mercados acreditem finalmente em nós? Será mesmo necessária a ajuda de António Borges?

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Se o optimismo fosse um bem transaccionável e exportável...

1.Terá sido divulgado hoje um estudo de economistas do FMI segundo o qual Portugal será um dos países/economias desenvolvidos que menor esforço de ajustamento orçamental terá de efectuar até 2020...caso consiga cumprir os objectivos de redução do défice até 2013!
2. O que o FMI diz, pois, é que se for feito o ajustamento orçamental até 2013, colocando o défice abaixo de 3% do PIB, não se tornará necessário esforço adicional significativo, sendo certo que outros países desenvolvidos carecerão de novos ajustes...
3. Mas nós bem sabemos que o mais difícil - tremendamente difícil, mesmo - será realizar o ajustamento orçamental até 2013 e que, caso esse pressuposto não possa ser cumprido, lá teremos de fazer ajustes adicionais tal como outros...
4.Em reacção a este estudo o PM, no seu estilo inconfundível – de superavitário optimismo – declarou, segundo reza a comunicação social on-line, que Portugal se encontra “na linha da frente da consolidação orçamental”.
5.Infelizmente, o optimismo (sobretudo o de tipo pacóvio) não é um bem transaccionável internacionalmente, não pode ser exportado – e parece que no mercado doméstico também é cada menos vendável, a procura tem vindo a diminuir assustadoramente - pois se fosse exportável os nossos desequilíbrios económicos teriam solução fácil...
6.Ao ler esta declaração, ilustrativa de um extraordinário grau de levitação política, ocorreu-me um velho ditado dos meus tempos de criança: “presunção e água benta, cada um toma a que quer”...

“DÃO-SE ABRAÇOS”

Num destes fins-de-semana fomos de visita ao Alentejo, que o gostamos de ver, assim, numa imensidão de verde. A manhã, muito fria, foi dedicada a revisitar Évora, cidade onde sempre nos sentimos bem e onde há sempre algo que surpreende por entre as vetustas vielas. À saída do parqueamento estava montada uma tenda de Natal que apelava ao apoio a uma instituição de jovens desprotegidos. Nada de mais atendendo à época propícia aos apelos à solidariedade. A não ser o frenesim de uma data de miúdas e miúdos entusiasmados com a iniciativa, acompanhados de pais e professores. Entrámos na tenda, e eis que se me atira literalmente para o colo um dos miúdos que de sorriso aberto me diz “Toma lá um abraço! É de graça!”. E vai de se unir num abraço muito apertado. Só então nos apercebemos que esse era o produto que ali mais se distribuía: abraços, apertados e de borla. Outros miúdos, cá fora, paravam o trânsito de peões e de alguns automobilistas numa enorme e alegre azáfama de abraços, exibindo cartazes onde se lia, letras gordas, “DÃO-SE ABRAÇOS”.

Aqueles miúdos aprenderam que Natal não é só comprar, é também e sobretudo partilhar o que temos de mais precioso e que muitas vezes nada custa. Alguns dos que receberam o calor do abraço tê-lo-ão sentido também.

Por aqui, neste Natal, a todos os que nos visitam, comentam e animam este espaço, um afectuoso abraço.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O Bom Estado de Cavaco

O Estado de Cavaco aparece muito bem definido no seu Manifesto Eleitoral. Concorde-se ou não com o conteúdo, a definição está lá. E ainda bem que o Candidato não se eximiu a explicitar o que pensa sobre as funções do Estado. Para os portugueses saberem e os opositores não delirarem.
Para Cavaco, e além das três clássicas funções soberanas, defesa, segurança pública e justiça, compete desde logo ao Estado uma intervenção eficaz na redistribuição do rendimento, na atenuação das disparidades regionais e no desenvolvimento de políticas que evitem o despovoamento de largas parcelas do território nacional. Por uma questão de coesão e de justiça.
Na Economia, Cavaco rejeita a questão ideológica e a dicotomia Estado versus Mercado, como também rejeita atribuir ao mercado, enquanto tal, as responsabilidades pelas falhas e distorções verificadas. A culpa está na ineficiência dos sistemas de regulação e na acção dolosa de muitos operadores. Por isso, Cavaco atribui ao Estado uma função de regulação forte, com uma fiscalização e supervisão reforçada e eficaz.
Para Cavaco, o Estado tem ainda uma função essencial na preservação dos bens colectivos: ambiente, ordenamento do território, salvaguarda do património histórico e cultural.
No que respeita à Saúde, Cavaco nem compreende que o debate se coloque na existência do Serviço Nacional de Saúde, para si algo indiscutível. O que interessa discutir é as formas que o SNS pode tomar para ser sustentável e garantir o acesso de todos os portugueses.
Considerando também indiscutível o direito de protecção no desemprego ou na velhice, também o que, para Cavaco, interessa discutir são os mecanismos que o podem sustentar.
No Manifesto Cavaco explicita ainda o seu pensamento dobre o papel do Estado no ensino, na protecção à família, nas autonomias, no poder autárquico.
Os candidatos opositores a Cavaco actuam pela negativa: não confrontam Cavaco com o que ele diz e afirma, e criticam-no por aquilo que ele nunca afirmou e por intenções que nunca teve. O propalado objectivo que lhe atribuem de liquidar o Estado Social é um mero exemplo. Nesse tipo de argumentação, vão por mau caminho. E, por mau caminho, nunca chegarão longe.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Sem título...

Não é um problema que se resolva com restos de restaurantes, essas são imagens que me chocaram, o problema da pobreza resolve-se resolvendo os problemas estruturais do país e esse é um problema que não é susceptível de poder ser aproveitado por um Presidente da República para fazer a sua campanha eleitoral”, acusou.
Pois é, mas enquanto os problemas estruturais não se resolvem, e tardam em ser resolvidos, a privação de bens essenciais está a aumentar. O Estado Social está, bem se vê, em crise. Não cumpre a sua função ao faltar quando é mais necessário a quem mais precisa. Há muitos portugueses sem dinheiro para satisfazerem necessidades básicas como é a alimentação. Deixamo-los com carências alimentares, enquanto continuamos à procura de uma solução estrutural? O problema destas pessoas é não terem com que se alimentar. Quem tem uma real possibilidade de ajudar não pode encolher os ombros e fingir que não vê, que não é nada consigo. Os "restos de restaurantes" podem fazer muita diferença a muitos. O momento é de emergência e urgência...