Número total de visualizações de páginas

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Irlanda vs. Portugal, ou Sociedade vs. Estado

Depois da Grécia, obrigada a recorrer à ajuda do FMI e do mecanismo de estabilização europeu em Abril último, eis que chegou a vez da Irlanda, que aceitou a criação de um plano de auxílio que decorre das urgen-tes necessidades de refinanciamento e recapitalização do sector bancário.

É conhecido que sou, desde há muito, um admirador confesso das opções que as autoridades irlandesas tomaram em matéria de política económica desde a segunda metade dos anos 80. Que, no espaço de pouco mais de uma década, guindaram o país para o topo do nível de vida europeu, só com o Luxemburgo acima.

Também não é novidade que, em Portugal, toda a esquerda (PS incluído) sempre viu com desconfiança o sucesso irlandês – pelo que não é surpreendente a mal disfarçada satisfação, e mesmo o sarcasmo, perante as tremendas dificuldades financeiras que desde há cerca de dois anos a chamada “ilha verde” tem vindo a viver crescentemente: “Oh, então a Irlanda não era um sucesso?!... Pois agora até está pior do que Portu-gal!...” – eis, entre outras, duas expressões que alguns, pouco informados e ávidos de mostrar que não esta-vam errados, (me) têm referido, com um sorriso nos lábios, nos últimos tempos.

Desengane-se quem pensa que mudei de opinião sobre a Irlanda. E não mudei por um motivo simples: as origens da crise irlandesa nada têm a ver com as opções de política económica das autoridades do país. O que, por outro lado, faz com que as dificuldades de curto prazo da economia irlandesa não sejam, felizmente para nós, minimamente comparáveis com o que se passa em Portugal. Explico porquê em seguida.

A crise financeira da Irlanda, que levará à intervenção do FMI e da Comissão Europeia tem a ver, única e exclusivamente, com uma gestão imprudente, irresponsável e, por isso, absolutamente condenável, dos ban-queiros e gestores do sector financeiro do país. Sobretudo devido ao desmedido avolumar de uma bolha imobiliária financiada internamente, e a uma elevada exposição ao fenómeno do subprime. Quando a crise conhecida por este nome rebentou nos EUA, originando uma forte quebra nos preços da habitação, começa-ram as dificuldades nos bancos irlandeses: os “buracos” foram sendo conhecidos pela abrupta perda de valor dos activos inscritos – quer os do outro lado do Atlântico, quer os resultantes do rebentamento da bolha imobiliária doméstica – nos balanços. E, quando a recapitalização total necessária no sector financeiro ainda está por apurar, mas se julga poder ascender a próximo de EUR 100 mil milhões (!), ou cerca de 60% do PIB irlandês, percebemos que não há Estado que resista – por mais acertadas que tivessem sido as políticas prosseguidas*. E foram: nos 12 anos entre 1996 (ano em que foi decidido que o projecto do euro se iniciaria em 1999) e 2007 (ano em que foram conhecidos os primeiros efeitos da crise), a Irlanda registou 10 (!) excedentes orçamentais, que em média representaram 1.5% do PIB por ano; a dívida pública média foi de 40% do PIB (25% em 2007); o défice externo (balança corrente) foi, em média, de 1% do PIB por ano e a dívida externa (medida pelas responsabilidades externas líquidas da economia) era pouco superior a 15% do PIB no fim de 2007. No mesmo período, o PIB cresceu a um ritmo médio anual superior a 7%; o nível de vida (PIB per capita corrigido pelas paridades do poder de compra) subiu de 106% da média da UE-27 para 144%; a produtividade cresceu, em média, quase 3% ao ano; a taxa de desemprego média foi de 5.8% da população activa (4.6% em 2007).

Já em Portugal, no mesmo período, em todos os anos existiram défices públicos e externos que, em média, representaram 3.6% e 8.8% do PIB, respectivamente; a dívida pública média anual foi de 57% do PIB (mais de 62% em 2007) e, em 2007, a dívida externa atingia mais de 90% do PIB (10% em 1996). O crescimento médio anual do PIB foi de 2.3% (abaixo da média europeia de 2.5%); o nível de vida desceu de 80.5% para 75.3% da média da UE-27; a produtividade cresceu, em média, 1.3% ao ano; a taxa de desemprego média foi de 6.1% (8.1% em 2007). Creio que os números falam por si, tornando notórias as diferenças…

Felizmente que em Portugal o sector bancário não foi gerido como na Irlanda (onde estaríamos agora se tivesse sido?...), o que faz com que a situação financeira não seja, nem de perto nem de longe, tão aflitiva como a irlandesa. Só para se ter uma ideia, a dívida pública celta deverá, em 2010, rondar 100% do PIB (recorde-se, 25% em 2007) e o défice público subirá, ainda que pontualmente, é certo, para cerca de 32% do PIB!... Tudo para evitar o colapso do sector financeiro (só o salvamento do Anglo Irish Bank será respon-sável pela deterioração do défice de 2010 em quase 20 pontos percentuais do PIB…).

Mas não tenhamos ilusões: se a curto prazo a situação portuguesa é financeiramente bem menos dramática do que a irlandesa, já a médio e longo prazo, estamos… pior. Uma vez salvos os bancos na Irlanda e coloca-das as contas públicas em ordem (num plano a 4 anos), aquele país tem todas as condições para recuperar o dinamismo que ainda recentemente o caracterizava. Já em Portugal… o problema é estrutural e prende-se com (falta de) competitividade, como os números atrás referidos bem mostram.

Essencialmente, porque o trabalho de casa – impopular, é certo, mas com repercussões positivas a médio prazo – não tem sido feito como devia pelos decisores políticos em múltiplas áreas que já muitas vezes apontei em escritos anteriores.

De forma simplista, creio não ser descabido concluir-se que na Irlanda foi a sociedade que tramou o Estado; já em Portugal, tem sido o Estado a tramar a sociedade. Uma diferença elucidativa que, felizmente, nos é favorável no imediato – mas cujas implicações a médio e longo prazo não podem deixar de nos preocupar.


* Claro que se pode sempre falar em falhas de supervisão e regulação na área financeira – mas deve recordar-se que elas não foram um exclusivo da Irlanda (muito pelo contrário) e têm mais a ver com a actuação das entidades reguladoras do sector (nomeadamente o banco central) do que propriamente com o Governo. E que dizer quando os dois bancos irlandeses (Bank of Ireland e Allied Irish Bank) submetidos aos stress tests realizados pelo Comité das Autoridades Europeias de Supervisão Bancária em conjunto com o Banco Central Europeu em Julho último cumpriram os requisitos mínimos exigidos?...


Nota: Este texto foi publicado no Jornal de Negócios em Novembro 23, 2010

8 comentários:

(c) P.A.S. Pedro Almeida Sande disse...

Subscreve-se. Para nós gestores e economistas com coluna vertebral, só há um caminho:emigrar!

«A geração mais qualificada de sempre está a deixar o país» Retrato de uma geração sem saída: um em cada 10 licenciados emigra»

Com a geração menos qualificada no poder, ignorante e " Greedy" , cometendo todos os dias erros de palmatória, Portugal continua a afundar-se.


JN: «Empresas do Estado fogem a corte salarial»

PS aprova regime de excepção para evitar fuga de quadros da Caixa Geral. Medida pode ser adoptada pela TAP, CTT, CP, Refer e ANA, entre outras

Esta medida do PS é mais uma medida criminosa que protege apenas os apaniguados do Partido, discriminatória, anti-democrática e anti-económica.


Passando por cima de todas as outras, o sector não transaccionável QUE SE CONFUNDE EM GRANDE MEDIDA COM AS EMPRESAS DO ESTADO OU COM MONOPÓLIOS NATURAIS PRIVATIZADOS, ao não diminuir os custos, e impor custos irreais a montante ao tecido que emprega, estrangulará o resto da economia nacional.

Quando tiverem 30% de desempregados não se queixem.

Idiotas!

É preciso criminalizar os idiotas que tomam estas medidas!

Adriano Volframista disse...

Miguel Frasquilho

Apenas alguns comentários ao seu post:

a) Querer ver, no "problema" da Irlanda, outra causa que uma monumental falha de supervisão é, no mínimo, um erro de paralaxe. Os bancos alavancaram-se sózinhos? da noite para o dia? por causa das radiações cósmicas? Esconderam os balanços da entidade reguladora? roubaram os depositantes, criando, por exemplo, um banco virtual?
b) O Governo irlandês, aplaudido pela comunidade financeira internacional e local, assumiu a integralidade dos créditos e dos débitos; precipitou-se e comprou um problema de enormes dimensões, sujeitando os seus concidadãos a um esforço desumano sem um prazo definido de resolução e sem certeza absoluta do grau desse mesmo esforço.
Por outras palavras, pediu um cheque em branco aos contribuintes sem, curiosamente, identificar e, eventualmente, punir os responsáveis....Olhe que, em certas circunstâncias, a diferença entre um Madoff ou uma D. Branca é um mero papel com uma autorização estadual....
c) Querer ver no "problema" nacional uma falha do estado é, no seguimento do erro de paralaxe acima, elidir a dimensão e alcançe da influência do nosso estado na sociedade. A cumplicidade pode ter graus mas, neste caso, poucos podem estar a salvo de serem abrangidos; isto de "esqueçer" que o crime também se comete por omissão é conveniente mas, não ajuda à resolução dos problemas, porque obnubila a análise do problema.
d) O modelo de desenvolvimento irlandês, a economia de mercado ou o papel da actividade do estado na sociedade não estão em causa; o que está em causa, se nada fôr feito, é a avaliação em termos éticos dos comportamentos dos agentes. Querer persistir na ilusão que esta não é importante, nem sequer relevante é abrir caminho à repetição de erros que deram origem a, pelo menos, duas guerras mundiais;

Cumprimentos
João

Fartinho da Silva disse...

Mais uma vez não concordo com a sua análise.

Se olhar para a dívida das famílias e empresas reparará que esta é bem maior que a dívida do Estado, portanto não foi o Estado que tramou a sociedade, mas sim o Estado a sociedade que decidiram aniquilar-se um ao outro.

Esta situação, é aliás, recorrente entre nós. O nosso tradicional egoísmo, a nossa tremenda dificuldade em nos colocarmos no lugar do outro, a nossa imensa facilidade em exigir aos outros aquilo que nós próprios não fazemos, a nossa lusa tradição de tentar colocar em prática legislação inaplicável, a nossa lusa mania de fazer contas apenas ao investimento inicial e nunca aos custos de manutenção, o nosso ancestral "desenrascanço", a nossa tradicional desorganização, enfim... somos o que somos, pena é que ainda não tenhamos percebido aquilo que somos e devido a isso não conseguirmos deixar a idade das borbulhas e passar à idade adulta.

Fartinho da Silva disse...

Já agora o que dizer das tradicionais excepções aos cortes salariais?

Já vai nas "empresas" públicas e semi-públicas e no parlamento... e estamos a 24 de Novembro...

(c) P.A.S. Pedro Almeida Sande disse...

Fartinho da Silva

E é por isso que os bons exemplos são necessários.
Para educar o povo, e não para retirar o fatiotas esperto e ambicioso e alcandorá-lo a senhor das moscas!

Fernando Pobre disse...

Estou paralaxítico!

Cumprimentos
Fernando Pobre

Pedro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Suzana Toscano disse...

Caro Miguel, não creio que as pessoas se regozigem com os problemas da Irlanda, pelo menos os que não consideram que o êxito ou o fracasso dos países deva ser visto como um jogo de ganha-e-perde-contra-quem, tipo futebol.Mas hás-de concordar que não é fácil entender, durante anos fomos condenados pelo defice (e bem)e comparados com o superavit da Irlanda e da Espanha, uns bons exemplos. Mas eles afinal tinham bolhas imobiliárias e problemas no sistema financeiro (pelo menos a Irlanda) e nós, nem um nem outro. Pelo que se vê, o superavit de uns não queria dizer nada sobre a sua solidez financeira. A ausência de bolha imobiliária nossa também não, e a solidez do sistema financeiro não nos tira da fila de espera Grécia-Irlanda-Nós-Espanha.Temos defice e endividamento que bastem, mas não foi por causa do defice que os outros faliram, foi por causa de bolhas e fraquezas que nós não temos e, no entanto, parece que estamos todos no mesmo estado desesperado.Hás-de concordar que é confuso!