Na sua coluna habitual no caderno de economia do ´Expresso´, a Sr.a Dr.a Manuela Ferreira Leite interroga-se sobre o facto de não se arranjar interessado em ocupar aquele que outrora era considerado um dos lugares mais prestigiados da função pública e é hoje um dos melhores remunerados de entre os cargos superiores públicos: o de dirigente máximo da administração tributária.
De entre as razões que a Dr.a Manuela enuncia, há uma com que concordo de pleno, ainda que dela faça uma interpretação própria. Com efeito, o desinteresse pelo acesso aos mais altos cargos da Administração Pública é uma consequência da atitude política dos últimos tempos que, deliberadamente ou não, degradou fortemente a imagem dos funcionários públicos a todos os níveis, incluindo os dirigentes.
Dirão alguns que o ajustamento em curso, nas suas fases mais violentas, provocou danos colaterais e sempre teria de os provocar. O desprestígio social e a desvalorização da função pública é um deles. Pois eu tenho dúvidas sobre a inevitabilidade, e não penso que as medidas de redução de efetivos e dos rendimentos dos que se manterão nos quadros das entidades públicas tenham necessariamente de ser justificadas por uma atitude política que, por ação e omissão, criou na opinião pública a ideia de que os funcionários são privilegiados, improdutivos e até responsáveis pelo estado a que isto chegou...
O dano não é, pois, colateral. É um dano direto por não se ter feito o discurso inverso, mas sobretudo por não se ter valorizado o esforço feito pelos trabalhadores das Administrações Públicas. O preço está aí, figurado na deserção dos melhores e nas dificuldades de recrutamento de quem se lhes substitua.
Atrevo-me a uma sugestão. No guião da reforma do Estado que se abra de um tópico mais, devidamente calendarizado: reabilitação dos funcionários públicos. E não, não basta prometer-lhes - muito menos na atual conjuntura pré-eleitoral - a reposição de rendimentos perdidos. Será melhor prometer a recuperação do prestígio e do orgulho que se atiraram para as ruas da amargura.
Assim, talvez daqui a uns anos seja possível voltar a encontrar com facilidade algum dos muitos capazes de se desempenharem do cargo de diretor geral da administração tributária, disposto e estimulado a servir um Estado que não o rebaixe.
12 comentários:
Em França, lá pelos idos de mil duzentos e troca o passo, o Papa Inocêncio III, apoiado pelo rei Capeto, Filipe II, deu inicio a uma cruzada contra os Cátaros. Esta perseguição veio a resultar na criação do Tribunal da Inquisição.
Bom, Cátaros já temos; falta pouco para que os funcionários públicos comecem a andar descalços, esfarrapados e a viver de esmolas, perseguidos e vítimas de uma certa Inquisição, também já são; de passo trocado com o governo, há muito que andam. Falta-lhes mil e duzentos... anos, para que os funcionários públicos venham a ser reabilitados; para que os seus rendimentos perdidos, venham a ser repostos e para que o seu prestígio e orgulho saiam das ruas da amargura.
Creio que algum desprestígio da função pública já vem de há muito. Prestigiados, sim, só no tempo de Salazar. Lamentavelmente esta é a verdade.
Não só os governos têm feito por isso, e este também, mas os próprios funcionários têm cavado fundo esse desprestígio. Veja-se a consideração social que um professor primário ou liceal merecia e impunha e o que acontece agora. O mesmo se poderá dizer de muitas outras funções. Os sindicatos da função pública, em greves continuadas, só ajudam ao festim. A função pública deveria atrair os melhores, por se tratar de uma actividade que tem reflexos imediatos na vida do cidadão. O que dizer que devia pagar bem.
Pagar bem a menos, em vez de pagar pouco a muitos. Verifica-se o contrário. Em vez de cortes verticais na função, foi-se para os cortes horizontais, numa política de igualização que só pode dar mau resultado. E quando alguém aparece a sobrepor-se à regra, como foi o caso do actual Director da Agência para a Gestão do Crédito Público (ou do anterior Director Geral dos Impostos,Dr. Paulo Macedo), logo a imprensa e o povo bradam aqui del-rei,escândalo, ordenado milionário, ganham mais que o 1º Ministro!...
Como se o ordenado do 1º Ministro não fosse ele um dos grandes entraves a uma boa selecção do perfil dos funcionários.
Isto é, criou-se uma conivência perversa entre cidadãos, media e partidos políticos que só arrasta para o fundo.
Digo eu, que nunca fui funcionário público. Felizmente.
Concordando com o problema do desprestígio (e, já agora, do nível salarial, que só é mais alto que nas funções menos qualificadas, hoje um técnico superior com trinta anos de experiência pode ganhar 1300 euros por mês), acho que neste caso há mais um factor: a CRESAP, Comissão de Recrutamento e Selecção da Administração Pública).
Por uma questão de princípio envolvi-me em três concursos (mesmo não estando neste momento da administração e tendo dúvidas de que quisesse estar) e o que vi deixou-me estupefacto.
O secretismo chega ao ponto de não se saberem quem são os concorrentes e não ser possível ao próprio saber como foi classificado.
Que uma empresa privada, que para contratar uma pessoa não precisa de fazer concursos, não precisa de grandes mecanismos de controlo na selecção, parece-me uma evidência.
Que se tente importar os mesmos modelos para concursos, é completamente absurdo, sendo que num dos casos fui excluído da pequena lista a enviar ao governo por falta de experiência profissional nas áreas da conservação e florestas.
Compreende-se: tenho só trinta anos de experiência nessas áreas e os meus concorrentes escolhidos, todos juntos, não chegam aos vinte, sendo que dois deles têm respectivamente um ano e dois anos de experiência na área.
Nem toda a gente está para fazer de idiota neste tipo de concursos cujo escrutínio é simplesmente impossível
henrique pereira dos santos
Para concursos públicos, faltou ali em cima.
Estou de acordo com HPS. Compreendendo que alguma coisa tinha de ser feita para afastar a ideia, aliás em parte real, de favoritismos vários e de arbitrariedade na escolha para cargos de direção, o modelo que se escolheu é absurdo. Tenho ouvido relatos semelhantes que só não são risíveis porque mexem com a vida a a expetativa de quem apostou na sua formação e valorização.
De resto nunca fui adepto de escolhas feitas por gurus. Quando tive responsabilidades públicas pronunciei-me contra um sistema de medição do mérito e da experiência por gente que não passou por qualquer teste, não mudei de ideias.
Este é, de facto, um dos factores que, paradoxalmente, não contribui para a escolha dos melhores, mas para o seu afastamento.
Caro Henrique Pereira dos Santos:
O que conheço, que é pouco e peca por envolver alguns meus conhecidos, tende a confirmar o que diz.
Já no que respeita ao "secretismo", aí penso que o nome dos candidatos deveria ser sempre mantido em sigilo, face ao dano que implicaria para os próprios o conhecimento público da sua exclusão. Creio que a "publicidade" das candidaturas seria um factor nocivo à paresentação de alguns bons candidatos, receosos a verem o seu nome na praça pública por razões nem sempre, ou pouco, objectivas.
Caro Pinho Cardão,
Esse é o raciocínio, típico da iniciativa privada, que nunca pode ser aplicado à gestão da coisa pública.
É que o secretismo que supostamente protege uns, prejudica terceiros e é ineficaz na escolha.
Dois exemplos concretos: para a CCDR Centro, a CRESAP indicou três nomes, um dos quais o que de uma pessoa condenada nos tribunais por gestão dolosa. Claro que isso só é possível porque sendo o processo completamente fechado, as probabilidades dessa informação, essencial, chegar ao Júri, é muito baixa.
Segundo exemplo: habitualmente são escolhidas seis pessoas para ser entrevistadas. Em dois dos concursos, foram escolhidas oito. Pode ter sido por razões perfeitamente razoáveis, mas também é possível que fosse necessário repescar uma pessoa que não ficava nas seis pessoas e era preciso que pudesse chegar à entrevista para poder ser escolhida, sem escrutínio.
A verdade é que as únicas defesas do Estado contra o nepotismo, o tráfico de influências, a prepotência e etc., são a simplificação administrativa e a transparência.
Quem não está disposto a isso, não concorre.
Porque para mim, escolherem duas pessoas completamente incompetentes em vez de mim, com o argumento da menor experiência profissional, também é muito ofensivo.
Muito mais que simplesmente perder um concurso onde as regras são razoáveis e onde até posso discordar das decisões do júri mas consigo entendê-las.
henrique pereira dos santos
Aliás, esse secretismo permite que o Senhor Presidente da CRESAP preste falsas declarações ao parlamento, como fez, sem que ninguém se escandalize.
E isto no quadro da actividade fiscalizadora do parlamento sobre essa comissão.
henrique pereira dos santos
Meu caro Pinho Cardão, não creio que possamos generalizar. No tempo de Salazar os funcionários eram prestigiados não tanto porque havia só bons servidores do Estado, mas porque a estrutura social a isso inevitavelmente conduzia. Nesse tempo até os advogados gozavam de prestígio, veja bem o meu Amigo...
Existem e sempre existiram na AP excelentes quadros, tão bons que o problema hoje, começa a ser a falta de competitividade no mercado de emprego da nossa Administração em relação ao setor privado, sobretudo se este vier a animar. Eu, que também não sou funcionário público mas que, nas minhas múltiplas existências profissionais por lá passei, aprendi muito com homens e mulheres sabedoras que sempre fizeram carreira como servidores públicos, estando firmemente convencido ainda subsistem competências, capacidades e dedicação ao serviço público. Garanto-lhe que aqui de onde escrevo recebo muita gente de mérito, que não merece a retribuição negativa - deliberada ou não, repito - das políticas postas em prática nos últimos tempos.
Há muito mau funcionário público? Ai isso há. Como existem muitos maus advogados, professores do ensino particular, péssimos médicos nos hospitais privados, trabalhadores administrativos do piorio nas empresas, operários negligentes, dirigentes nascidos do compadrio tão incompetentes como incompetentes são alguns dos que permanecem na função pública. Não encontrará por aí nenhuma diferença, a não ser que agora se ter como sacralizado quem não é funcionário público, vitima da existência de um aparelho do Estado e da necessidade de o alimentar...
Pois eu julgo que aqui é que falta fazer a reforma do Estado. E estou seguro que não se faz qualquer reforma, mesmo com consenso alargado, desvalorizando o capital humano da Administração Pública. Far-se-à procedendo exatamente ao contrário, deixando este discurso político estigmatizante como infelizmente é aquele que se ouve dirigido aos funcionários.
Não sou eu que discordo do que diz, caro Ferreira de Almeida.
Caro HPS:
Admito que tenha razão. Por vezes a transposição do bom que faz o privado poderá não resultar no público. Mas o que eu pretendia com o que referi era que a publicitação não contendesse com a aprrsentação de boas candidaturas ou de bons candidatos que vissem posteriormente o seu nome nas ruas da amargura em detrimento da selecção de outros com menos currículo ou perfil para o cargo.
Caro Pinho Cardão,
Eu percebo inteiramente o seu raciocínio, que é aliás a justificação apresentada pelo Presidente da CRESAP.
O problema maior desse raciocínio é que parece lógico e razoável. E é, em algumas circunstâncias (quando uma empresa, que não precisa de concursos, resolve fazê-los, não tem evidentemente necessidade de os martelar).
Mas é olhar para os resultados concretos do que está a acontecer com a CRESAP, implicando a erosão rápida do seu crédito e, consequente, afastamento de bons concorrentes, exactamente o que se pretendia evitar com o secretismo.
Acredite que o escândalo ultrapassa tudo o que seria imaginável.
Perder um concurso não é drama nenhum nem é desprestigiante, se quem ganha tiver qualidade suficiente para que se compreenda que o que está em causa não é a falta de qualidade própria, mas a maneira como se olha para diferentes candidaturas, todas elas com um nível mínimo de qualidade.
henrique pereira dos santos
Muito bem, caro Zé Mário, concordo em absoluto com a sua tese, o discurso de mobilização e estímulo ao trabalho das empresas contrasta de modo inexplicável com a etigmatizacão permanente de que trabalha no sector público e as medidas de intervenção orçamental podiam deviam ter sido compensadas com o necessário reforço do reconhecimento mais do que justo aliás tantas vezes ilustrado nos jornais pelas condições em que muitos trabalham e situações a que ê preciso dar resposta. Receio que em breve estaremos a lamentar os estragos, como diz e muito bem nunca foram os ordenados "chorudos" que prestigiaram a administração, foi sempre o prestígio das funçóes e o reconhecimento da sua importância social, fossem professore, juizes, médicos, polícias ou outras carreiras. Funcóes e importância social e económica que amplamente se reconhecem e exigem, mas sem querer dar o estímulo evidente que qualquer empresa, por pequena que seja, considera essencial para manter os seus colaboradores motivados.
Enviar um comentário