Há muitos anos, na altura do
Natal, pedi a uma senhora, que costumava fazer limpezas, se não se importava de
ir a um pinhal meu cortar um pequeno pinheiro, jeitoso, para fazer a árvore do
Natal. Ela sabia o local, não era muito longe. Respondeu-me que sim. Passados
dois ou três dias apareceu com um delicado e harmonioso exemplar. Felicitei-a
pelo gosto, o que me surpreendeu sobremaneira, dado a sua falta de jeito e
alguma brusquidão. O pinheiro foi alvo de atenções e enfeitado à maneira. O
pessoal ficou satisfeito e orgulhoso da árvore de Natal, talvez a mais bela que
alguma vez entrou em casa.
O Natal passou e o novo ano
nasceu normalmente, sem grandes dores. Passadas algumas semanas, já o sol
aquecia com volúpia os corpos e as mentes dos mais carenciados, a senhora
surgiu-me em casa, muito nervosa, dizendo que tinha sido notificada para ir à
GNR. Estranho. - O que é que aconteceu? Não foi difícil saber a causa de tão
inusitada convocatória. Nas terras pequenas sabe-se tudo, mesmo antes do seu
tempo. Foi acusada de ter furtado o pinheiro. Afinal, talvez para não se
deslocar ao meu pinhal, optou por arranjar um nas proximidades da sua casa.
Viram-na e denunciaram-na ao dono, o qual, por sua vez, foi à GNR participar o
ocorrido. Fiquei incomodado pelo facto, mas como o pedido de indemnização
poderia ser avultado para as suas posses, senti que tinha a responsabilidade de
arcar com as consequências. Se não tivesse feito o pedido, a taralhoca não
teria feito o que fez. No dia aprazado, sem estar notificado, também compareci
no posto, onde já se encontrava o queixoso, com tiques de demandante, a
taralhoca responsável pelo situação e o militar que, num fastidioso
interrogatório, ia batendo as teclas da velha máquina de escrever, mas apenas
com o indicador da mão direita. Pelo andar do matraquilhar as coisas iriam
levar muito tempo. Quando chegou à matéria de prejuízos, virou-se para o
proprietário e perguntou-lhe o valor. O demandante disse uma cifra avultada,
atribuindo ao pequeno pinheiro qualidades e uma raridade botânica perfeitamente
ridículas. O militar, que tinha o dedo indicador no ar, ficou de cara à banda.
Repetiu a pergunta duas ou três vezes para ter a certeza que tinha ouvido bem,
mas o dono, cara sisuda, confirmou.
Há certas situações e
comportamentos que não consigo compreender. Face ao pedido, algo desmesurado
para o pinheiro em causa, reagi da melhor maneira. Saquei de um cheque e
comecei a preenchê-lo com a cifra indicada, pronto para o entregar ao
proprietário em nome da acusada. Ficaram todos surpreendidos com o facto de ter
aceitado sem discussão o dinheiro solicitado. A taralhoca ficou de boca aberta,
até me pareceu que abriu as pernas como a querer equilibrar-se, e o militar
parecia que tinha sofrido uma espécie de paralisia e gaguez, sempre com o indicador
da mão direita no ar. Pobre dedo, não sabia qual a tecla a martelar. O queixoso
de maus fígados avermelhou-se e encolheu-se perante a minha reação. - Aqui tem
o cheque e peço desculpa pelo incómodo provocado pela senhora. Olhou-me,
gaguejou, disse qualquer coisa, não foi muito preciso, mas desistiu da queixa.
O militar suspirou de alívio e o indicador da mão direita finalmente acabou por
descansar. Já merecia. A senhora, a taralhoca, suspirou. Eu recolhi o cheque,
dei os bons dias e fui-me embora. Ao final da tarde, de regresso a Coimbra,
passei por uma galeria de arte, onde estavam alguns quadros do Monsenhor Nunes
Pereira. Olhei para a "primavera", tão bela. Preço? O mesmo que o
dono do tal abeto raro e "extraordinariamente valioso" queria. Tirei o
cheque do bolso e adquiri a bela obra de arte.
Se não fosse este episódio não teria a oportunidade de saborear a arte de um artista excecional. A árvore do Natal foi a mãe da "Primavera". Acabei por o ofertar à primavera de uma vida...
Se não fosse este episódio não teria a oportunidade de saborear a arte de um artista excecional. A árvore do Natal foi a mãe da "Primavera". Acabei por o ofertar à primavera de uma vida...
2 comentários:
Continuo convencido de que o demandante foi «comido». O pinheiro era a 3D e o quadro era a 2D (uma dimensão a menos). Não o sabia tão espertalhaço, Doutor Massano…
Abraço
:):)
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