
A polémica à volta deste jardim prendeu-se com o facto de não poder haver jazigos, cruzes, relevos da sepulturas, flores ou outros ornamentos.
Quebrar as tradições não é nada fácil. Os autarcas, às tantas, já deviam sentir-se como novos Odoricos Paragauçus, personagem cómica criada pelo dramaturgo brasileiro Dias Gomes, e interpretado na série televisiva pelo actor Paulo Gracindo, que ansiava estrear o seu novo cemitério, promessa da campanha eleitoral. O pior é que ninguém morria!
Ao ler esta notícia recordei-me de dois momentos. O mais recente foi como deputado em que me pediram para estudar a feitura de um projecto-lei relativamente ao destino a dar aos restos mortais dos corpos depositados nos jazigos. Nalguns cemitérios, ao fim de alguns anos, muitos acabam por ser abandonados ou apresentarem sinais de degradação com urnas desfeitas originando uma atmosfera pouco digna, ou mesmo nada. Quando fui contactado para esta tarefa tinha acabado de ir a um funeral em que constatei casos semelhantes, num cemitério de Coimbra, tendo ficado indignado com quadros verdadeiramente macabros. É certo que estamos a falar do terreno dos mortos, mas o facto destes não se importarem, não significa que não sejam respeitados, respeito esse que é extensível aos vivos quer sejam ou não familiares. Aceitei a incumbência e, para o efeito, adquiri várias obras sobre a matéria com o objectivo de estudar vários aspectos, sobretudo os tempos mínimos necessários à remoção dos restos mortais e os destinos a dar-lhes. Não descrevo as obras, porque, de facto, são lúgubres, mas, curiosamente, aprendi muito!
O outro momento teve a ver com o facto de há muitos anos ter ido a um curso de verão numa universidade norte-americana.
Fiquei instalado numa residência universitária. Quando cheguei ao quarto, já a tarde ia avançada, deparei, através da janela, com um belo e frondoso parque do outro lado da rua com gradeamento metálico a relembrar o do Jardim Botânico em Coimbra. Árvores de grande porte, provavelmente centenárias, enxameavam um terreno de características irregulares, tipo colinas, com arruamentos sinuosos, canteiros floridos, relvado bem aparado, parecendo-me descortinar um ou outro banco, enfim uma paisagem muito encantadora. Pensei na sorte em ter aquele quadro mesmo em frente. Assim que tivesse uns momentos livres teria que dar uma volta pelo jardim. Ao fim do segundo ou terceiro dia, tendo a tarde livre, dispus-me a visitá-lo. Olhei pela janela, vi pessoas a passear, outras sentadas, crianças a andar de bicicleta, uma senhora a empurrar um carrinho de bebé, um jovem a fazer jogging e o jardineiro em cima de um cortador da relva a andar de um lado para o outro, ou seja vida no parque. Contornei o gradeamento à procura da entrada. Assim que entrei cruzei-me com algumas pessoas que revelaram a sua simpatia cumprimentando-me, fazendo recordar as saudações que se fazem nos nossos meios pequenos. Não foi preciso muito tempo - bastou contornar a primeira colina - para verificar a existência de pedras tumulares disseminadas, aparentemente ao acaso, revelando estar num cemitério! Cemitério muito diferente dos nossos, quase que me apeteceria dizer alegre, mas cemitérios alegres é algo que não existe. No entanto, sentia-se uma certa paz e até uma beleza difícil de explicar, ao ponto de as crianças e os adultos partilharem o espaço para actividades lúdicas sem se incomodarem.
Pensar na morte não é agradável, mas pensei que se um dia pudesse ser enterrado num local igual a este contribuindo para a beleza e frondescentes árvores e flores e permitir uma sensação de tranquilidade aos familiares não deixaria de ser uma pequena maravilha.
O senhor António Rosa teve bom gosto ao optar pelo novo cemitério e os autarcas de Abrantes estão de parabéns pela iniciativa.
Se o cemitério construído por Oderico Paragauçu fosse idêntico a este estou certo de que não se importaria em ser o primeiro a inaugurá-lo esperando o tempo que fosse preciso...