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terça-feira, 28 de agosto de 2007

André

Vi há dias a notícia da morte de Holden Roberto, líder histórico da Frente de Libertação de Angola (FNLA) e que fundou, em 1954, a União dos Povos do Norte de Angola (UPA), tendo vindo mais tarde a assinar os acordos de Alvor (1975) e de Bicesse (1991).
Cada um tem a sua perspectiva dos acontecimentos, quer pelo que aprendeu nos livros, quer pela medida em que a sua vivência se cruzou com a história. A notícia avivou em mim algumas memórias bem escondidas, daquelas que eu não conseguiria trazer à superfície sem o clic que as desperta quando menos se espera.
A primeira vez que ouvi o nome de Holden Roberto era criança, vivia em Luanda, e os meus pais comentavam muito preocupados o desaparecimento intermitente do André, o criado negro que vivia lá em casa desde pequeno e nos tínhamos habituado desde sempre a ver como o companheiro de brincadeiras. No meio da conversa ouvi palavras que não conhecia: terroristas e Holden Roberto.
Em 1960, o André era um jovem de 20 anos, orgulhava-se de saber ler e escrever, usava óculos e adorava crianças. Tinha umas gargalhadas estrondosas e uma paciência infinita para contar histórias maravilhosas, com animais e feiticeiras, fazendo piruetas que nos deixavam de olhos arregalados. Ia casar com a Guida, uma angolana bonita a que ele chamava “rainha”, que era costureira e se aprimorava nos nossos vestidos.
A questão era que o André ficava várias noites fora de casa, andava misterioso e fugidio. O ambiente político estava carregado, com uma onda de prisões, tudo indicava que a preocupação vinha da desconfiança de que o rapaz “andava metido na política”.
Confrontado com as escapadelas, o André falou como um adulto. Que queria lutar pela sua terra, que pertencia à UPA, que era esse o seu dever. E que se ia embora, para não por em risco as pessoas de que tanto gostava. Avisou que não era seguro continuarmos lá, que tínhamos que partir porque ele não era capaz de garantir a nossa segurança. Disse que ia ter com Holden Roberto, o pai de todos os negros que queriam uma terra livre, mas não era um terrorista.
Chorava como uma criança ao arrumar a mala, os óculos embaciados deixavam-lhe os olhos do lado do mundo que nós não percebíamos. Nunca mais o vimos.
Por muito infantil que possa parecer, nunca deixei de associar Holden Roberto à partida do André e ao fim brutal da minha primeira infância, tão feliz, em África.
Justo ou injusto, cada um lê a história à sua maneira.

11 comentários:

Bartolomeu disse...

Justo!
Não poderá deixar de ser justa a opção de um homem lutar pela identidade da sua raça e pela independência da terra que ancestralmente lhe pertence.
Se as formas ou os meios são humanísticamente justos, já é um problema diferente.
Belíssimo texto caríssima Suzana, como sempre, recheado de uma extrema sensibilidade.

Massano Cardoso disse...

Certos acontecimentos marcam-nos para sempre. A sua história revela isso mesmo. Adivinho que gostaria de saber o que é feito do André...

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
São histórias muito marcantes sobretudo porque alteram o rumo de vidas. O André gostava da Família, mas o apelo à luta por uma sobrevivência terá sido mais forte!
André chorou porque naquele momento viveu as emoções de quem simultaneamente perde e ganha.
Quantos Andrés não passaram pelo mesmo? Mas não haverá muitas Suzanas que recordem com tanta sensibilidade e gratidão a sua existência.

Suzana Toscano disse...

Caro Bartolomeu, os tempos de paz, sossego e alguma propsperidade que, felizmente, vivemos há muitas décadas vão amolecendo as convicções, porque na verdade não as sentimos em perigo. Acho que vale a pena lembrar que nem sempre é assim, que há escolhas bem difíceis que é difícil avaliar por quem tem a alma serena e a vida segura.
Pois é, Massano Cardoso, como gostaria!, muitas vezes o meu pai procurou saber dele, mas foi uma época muito conturbada, com pouco espaço para saudades. Acho que casou com a Guida, mas nós viémos embora um ano depois e perdemos o rasto uns dos outros. Mas ele está nalgumas fotografias e talvez em filmes, tal e qual o descrevo.

Suzana Toscano disse...

Margarida, acho que há mesmo muitos, tantos quantas as pessoas que tiveram que deixar para trás ou ver partir aqueles de quem gostam por causa das guerras, nas suas múltiplas facetas. As crianças, sobretudo, porque não compreendem as causas e sentem a separação como uma injustiça, conservam lá bem escondida a cicatriz que ficou.

António Viriato disse...

Cara Susana Toscano,

Permita que a felicite, mais uma vez, pela bonita história, com fundo real, que aqui nos trouxe, ainda por cima, com travo africano.

Difícil é para todos nós, portugueses europeus e africanos, esquecermos os laços profundos que nos uniram, passada que está a conjuntura traumática da guerra, que, na verdade, bem poderia ter sido evitada, tivesse havido maior visão política e flexibilidade negocial de Lisboa, em tempo oportuno.

Assim, restam-nos as memórias e a esperança de um entendimento futuro, com respeito recíproco pelo passado comum.
Continuação de boa inspiração e vá-nos brindando com a exploração dessa veia literária, porventura recôndita, mas bem real, no meu modesto parecer.

Anónimo disse...

Cá em casa, Suzana, para além do habitual louvor pela beleza dos textos, despertaram-se algumas memórias...

Suzana Toscano disse...

"Assim, restam-nos as memórias e a esperança de um entendimento futuro, com respeito recíproco pelo passado comum", subscrevo inteiramente, caro António Viriato e ainda bem que lhe agradou a história, corre o risco de eu ganhar balanço...
Caro ferreira d'Almeida, não deve haver muitos portugueses sem qualquer referência, pessoal ou familiar,das áfricas e da vida que aí se vivia. Faz parte do património comum .Da riqueza comum, diria mesmo.

Unknown disse...

Não conheço nada de Angola, a não ser o que está nos livros e vem na imprensa, e aquilo que o meu irmão me conta dos tempos em que prestou serviço militar. O meu irmão é um apaixonado, incondicional, de Angola!
De África conheço apenas Moçambique, onde estive oito dias. Gostei muito, não fora o susto que apanhei quando ao respirar o primeiro ar pensei...Meu Deus vou morrer aqui!

Mas, o que eu quero aqui dizer é que, já ouvi muitas histórias similares a estas, com epílogos bem diversos: uns, autênticas tragédias, outros, aterradores!

Para este epílogo feliz estou em crer que contribuiu sobremaneira, a possibilidade que foi dada ao André de se instruir, e a vivência feliz, e sem preconceitos, que teve junto da família.
É o que eu deduzo das recordações da Drª Suzana.

Como a Drª Margarida Aguiar muito bem diz:

-“O André chorou porque naquele momento viveu as emoções de quem simultaneamente perde e ganha".

Que bem dito!

lusitânea disse...

Lamento vir estragar este idílico ambiente mas se esse André "se foi" outros que como ele "desapareciam" para serem "doutrinados" cumpriram as ordens recebidas do Sr Holden : passar a catana todos , incluindo os menores e os de outras tribos como os bailundos...
Detecto que o multiculturalismo só é bom aqui, neste rectângulo colonizado, mas era sempre muito mau no ultramar
A história estará aí para ajuizar das vantagens que os africanos obtiveram na independência.
É pena que subsista uma dupla visão de "justiça".Lá a revolta , o assassinato era por uma boa causa.Aqui e agora temos que ser compreensivos, aguentar,pagar a quem nos fez vítimas de verdadeiras "limpezas étnicas"... bonito!

Anónimo disse...

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