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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

No Dia Nacional do Idoso


Pela estrada plana, toc, toc, toc,
Guia o jumentinho uma velhinha errante
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc, toc
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

Toc, toc, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toc, toc, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.

Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toc, toc, moleirinha branca
Com o galho verde duma giesta em flor.

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toc, toc, toc, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

Toc, toc, toc, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.

Toc, toc, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toc, toc, toc, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toc, se levanta,
Pra vestir os netos, pra acender o lume...

Toc, toc, toc, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã!

Toc, toc, toc, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!

Toc, toc, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...

Toc, toc, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toc, toc, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toc, toc, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!
Guerra Junqueiro

9 comentários:

Catarina disse...

Que lindo na sua aparente singeleza!
Deste eu não me recordo.

jotaC disse...

Caro Drº Pinho Cardão:
Um abraço sincero de gratidão, por me recordar estes versos...

Bartolomeu disse...

E verdade! Excelente recordação. É fantástico como se vão deixando esquecidos alguns doces da nossa infância, este é um deles.
Até o nosso amigo Jóta Cê, ficou com os cabelos eriçados devido às emoções que lhe fez despontar, caro Dr. Pinho Cardão.

(c) P.A.S. Pedro Almeida Sande disse...

Tanta falta fazem os Eças, os Ramalhos, os Junqueiros ... e a santa moleirinha ... toc, toc, toc, só por cá ficaram os novos jumentinhos!

Anónimo disse...

Perdoe-me o Pinho Cardão por não glosar a poesia, aliás bela pela sonoridade, mas aproveito a deixa para recomendar o escrito de Helena Matos no Blasfémias - http://blasfemias.net/2009/10/28/tudo-menos-isso/

António Transtagano disse...

Dr. Pinho Cardão

Eu, idoso me confesso, desconhecia a existência do Dia Nacional do Idoso! Tinha apenas uma ideia que havia o Dia Mundial do Idoso (1 de Outubro) mas pelos vistos até já isso deve ter mudado. O TEMPO não perdoa!

Por princípio,sou contra os Dias de...! E para falar com franqueza, não gosto muito do termo "idoso". Mais genuino e verdadeiro, prefiro o "velho", que não o do Restelo.

Idosos todos nós somos, porque temos idade. É frequente encontrar como critério de preferência, em algumas leis, decretos, despachos normativos e tuti quanti, fórmulas como esta: "Em caso de igualdade, os mais idosos preferem os menos idosos"! Ora diga-me lá, não ficaria melhor "Em caso de igualdade, os mais velhos preferem os mais novos"?

O que parece, sim, é que se procurou anetemizar... os velhos!

O que francamento me irrita é a compaixãozinha de alguns plumitivos e preopinantes quando estremecidamente referem "Os nossos idosos". Os deles, tão deles, que até parece que já fomos transaccionados!

Dito isto: é sempre bom recordar Guerra Junqueiro! Mais um poema lindo dos "Simples"!

Ainda tenho para aí o meu "idoso" livrinho de leiura da instrução primária! E que sabíamos de cor este poema, lá isso sabíamos!

Pinho Cardão disse...

Caríssimos Catarina, JotaC, Bartolomeu, António Transtagano, Maioria Silenciosa, Ferreira de Almeida:

Também eu não gosto dessa coisa dos Dias Nacionais de...e de...
Proliferaram de tal forma e feitio que alguns dias já têm que albergar mais do que uma denominação.
Mas hoje, nas notícias da manhã, ouvi logo uma entrevista sobre o dia de hoje.
E lembrei-me das muitas pessoas de idade que, ricas, pobres ou remediadas, acabam por ficar aprisionadas nos prédios de muitos andares que construímos nos dormitórios das nossas cidades, longe do convívio humano que poderia ser o café do bairro, mas que lhes fica difícil atingir entre a floresta de cimento e a insegurança das ruas, remetidos a um isolamento desumano e irreparável. Ou das muitas pessoas abandonadas em lares, onde poderão ter muito conforto físico, mas amarguram a falta do calor humano dos familiares que aí as depositaram.
E lembrei-me também de um tempo passado, mas todavia ainda recente, da velhice sofrida das aldeias, sem reforma ou protecção social ou assistência na doença, mas em que a solidariedade sempre presente era conforto e companhia.
E pensei que esse envelhecer seria, por certo, mais feliz do que o envelhecer no cimento das grandes e pequenas cidades, em que a vida de egoísmos retira aos velhos qualquer espécie de carinho ou aconchego familiar.
E, nestes pensamentos, lembrei-me do envelhecer feliz , tão bem descrito por Guerra Junqueiro no poema da moleirinha ou de outras gentes que ainda pude surpreender nos meus verdes anos na minha aldeia beirã.
Oxalá esse ambiente e esse clima pudessem um dia complementar as conquistas sociais dos nossos dias...

Quanto à Helena Matos, ela tem razão. Os velhos são cada vez menos o sujeito e cada vez mais mais objecto. Os nossos velhos cada vez mais são os velhos de ninguém.
Mas a moleirinha é ainda de todos nós. E se os comentadores do 4R ainda se enternecem com o poema é porque nem tudo ainda está perdido!...

Freire de Andrade disse...

Ainda há poucos meses procurei esta poesia na net (e encontrei) porque apenas me conseguia recordar dos primeiros versos. Só depois vim a saber que estava na estante à minha frente no livro de leitura da 4.ª classe que a minha mulher guarda ainda zelosamente. Obrigado por ma recordar.

Pedro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.