1. Diversas análises de conjuntura recentemente divulgadas – INE, BdeP – dão conta de que se assiste nesta altura a uma recuperação da actividade económica movida pelo consumo privado. E isso é interpretado pelos comentadores, de uma forma geral, como um “indicador positivo”.
2. Não podemos deixar de nos interrogar sobre o significado desta realidade, nomeadamente quando se têm conta os problemas fundamentais da economia portuguesa de que quase diariamente se fala: (i) competitividade (insuficiente), (ii) produtividade (baixa), (iii) desequilíbrio persistente das contas com o exterior, evidenciando um desajustamento crónico entre a procura e a oferta de bens e de serviços, (iv) endividamento ao exterior muito elevado e em forte agravamento, (iv) desemprego a aumentar para níveis record…
3. O aumento do consumo privado – provavelmente resultante do elevado ganho real dos salários na função pública e nos sectores protegidos da economia duma forma geral, bem como do efeito-riqueza dos ganhos da Bolsa nos últimos 6 meses – constitui, à luz da necessidade de resolução daqueles problemas estruturais, uma pura ilusão na minha perspectiva.
4. Pura ilusão porque nos pode levar a crer que “as coisas estão a melhorar” quando, na realidade, se trata de uma “melhoria” efémera e de uma “melhoria” que só contribui para agravar aqueles problemas – nem a competitividade nem a produtividade nem o endividamento, nem mesmo o desemprego vão melhorar com esta recuperação do consumo privado.
5. Na fase em que nos encontramos, só o investimento produtivo, em actividades concorrenciais, gerando capacidade exportadora adicional de bens e de serviços (turismo de qualidade, por exemplo) pode ajudar a resolver aqueles problemas – mas não é isso que está a acontecer…
6. Nesta fase, que pode ainda ser demorada, em que o investimento produtivo está retraído ou “encolhido” – se alguma coisa acontece é desinvestimento, através da cessação da actividade de inúmeras empresas do sector concorrencial, por falta de mercado ou por incapacidade de acompanhar a concorrência.
7. Por outro lado, esta recuperação do consumo privado assenta numa carga fiscal excessiva, que suporta os aumentos reais na função pública e em boa parte dos sectores protegidos (via subsidiação orçamental, directa ou indirecta), a qual é certamente inimiga da competitividade.
8. E ainda contribui para eternizar o problema do endividamento ao exterior – num ano em que a economia contrai cerca de 3% ou mais, a balança corrente com o exterior vai apresentar um défice de quase 10% do PIB (FMI, último World Economic Outlook) – nunca em Portugal se viu uma coisa assim…
9. A conclusão parece-me manifesta: não é pelo consumo privado que vamos lá…mas o contraditório está aberto obviamente!
5 comentários:
Caro Dr. Tavares Moreira,
Embora a minha formação e actividade seja na designada micro-economia, não deixo de concordar com a sua opinião, aproveitando para expressar essa concordância desta maneira:
São várias interrogações
sobre o actual crescimento,
sendo de evitar divagações
de total deslumbramento.
Problemas disfarçados
pelo consumo privado,
deixa alguns traçados
de um futuro entravado.
De facto, não é pelo consumo privado que se vai lá, como muito bem o meu amigo demonstra.
Mas todos os dias ouço a distintíssima gente que é por aí que lá chegamos...Tão distinta que só basta afirmar; já não têm que provar.
De facto, e no fim, é o povo que vai provar o amargo.
Muito bem dito, caro Manuel Brás, "problemas disfarçados pelo consumo privado"...
O disfarce é, no entanto, de fraca qualidade, deixa quase todas as fragilidades à mostra!
Exactamente, Pinho Cardão, essa distintíssima gente tem sempre razão, está sempre na dianteira...
Só falta esperar o dia em que retomam o discurso do 4R, apresentando-o como descoberta sua...
Não deixa de me surpreender, entretanto, a tranquilidade com que as principais agências económicas domésticas divulgam estes dados, como se estivessemos no melhor dos mundos...
Caro Tavares Moreira
A tragédia grega é o facto do herói conhecer o seu destino e não poder fazer nada para o alterar.
O drama nacional é o país saber qual é, (pode ser), o seu destino e ser impotente para mudar.
Na verdade, somos um país sociologicamente pouco "plástico", e, no entanto, não temos tamanho que justifique essa rigidez.
A ironia do destino do actual governo é que vai ter de "reparar" os erros e acções, que uma parte importante dos membros componentes do mesmo, praticou no passado.
Nesse sentido, com seis anos de atraso, vamos "provar" as mézinhas que foram propostas por Guterres.
Cumprimentos
joão
Caro João,
Bem observado, do ponto de vista sociológico...
Mas o drama mesmo são os problemas económicos que estão por e "para resolver" (as aspas são para aqueles que têm de ser resolvidos mas não têm solução, v.g. endividamento externo imparável)...
Enviar um comentário