Cada dia que passa aumenta a minha dificuldade em compreender o funcionamento da justiça. Assusta-me a atuação de alguns responsáveis pela aplicação das regras que sustentam um estado de direito. São inúmeros os exemplos e os sinais de que algo não vai bem nesta área; a última capaz de garantir a esperança aos cidadãos que tudo fazem para respeitar as normas, os princípios humanísticos e as leis. É raro o dia em que a justiça não desça uns degraus na escala de valores. Sente-se uma atmosfera de desalento, de desconfiança face a certas decisões, e, também, algum receio de cair numa malha que, em princípio, responsável pela garantia dos nossos direitos, pode transformar-se numa viagem atribulada ao verdadeiro inferno.
Agora, quando passo em frente de um tribunal já não consigo sentir a mesma sensação de respeito e de segurança quando era criança, numa altura em que me ensinaram quais eram os verdadeiros templos da civilização, os tribunais. Foi o meu avô que me chamou a atenção. Ensinou-me coisas muito importantes, não muitas, mas as suficientes, e na altura devida, para que a minha personalidade fosse moldada no sentido do correto e do respeito pelos demais. Uma delas diz respeito à justiça. Passeávamos muito. Um dia, levava-me pela mão quando, subitamente, parou em frente do Tribunal Velho. Achei estranho ter parado naquele sítio, já que passávamos frequentemente por aquele local. Não vi nada que justificasse aquela paragem. Olhei-o. Nesse instante apontou com a mão esquerda para o edifício e disse-me: - É nesta casa que um homem honrado sente o significado do respeito. Não percebi muito bem o que queria dizer, mas lá foi explicando que, quando alguém sentisse que tinha sido injustiçado, era ali que encontrava a reparação, enquanto os maus apanhavam os castigos, advertindo-me de que tinha de cumprir com as regras e que nunca tivesse receio nem vergonha de entrar naquela casa.
A partir daquela lição, curta, mas incisiva, ao ponto de a conseguir ver e ouvir, ainda hoje, com uma nitidez impressionante, o juiz passou a ser a pessoa mais importante da terra. Nem o médico, nem o padre, nem o professor, nem o chefe da estação, nem os guardas chegavam ao calcanhar daquele homem. Não tinha medo e gostava de o ver. Parecia-me diferente de todos os outros. Afinal, havia alguém que nos protegia e eu conhecia-o. Se houvesse algum problema o juiz resolvia-o. Até cheguei a pensar dizer-lhe que andava aborrecido, porque já me tinham roubado mais do que uma vez os meus queridos piões. Mas havia sempre um familiar que me comprava um novo. Mas não era a mesma coisa, porque não tinha ainda uso e sem uso é diferente.
Um dia roubaram-me a minha capa com capuz, azul, novinha em folha e que me permitia andar à chuva sem chapéu. Uma maravilha. Coloquei-a no bengaleiro do corredor da escola e à saída nada. Desapareceu! Fui para casa debaixo de chuva e desgostoso com a vida. A minha mãe fez queixa e passados alguns dias disse-me que a tinham encontrado. Fiquei contente, mas foi sol de pouca dura, porque estava suja e esquartejada. O autor do furto, um jovem, teve de responder no tribunal. Um dia de manhã, de calções, entrei com a minha mãe na casa da justiça. Disse que me iam fazer umas perguntas e que não tivesse receio. Receio? Pensei eu. Nem pensar, ali só quem comete faltas é que deverá ter receio, eu não. Sentámo-nos. Passados uns minutos, um senhor abre a porta de uma sala e chama-me. Entrei sozinho e respondi a todas as perguntas. O senhor, de ar austero, ia escrevendo sem grande pressa numa secretária repleta de grossos volumes de folhas azuis. No fim, pega-me na mão, ajuda-me a descer da cadeira, e acompanhou-me até ao corredor. Ainda esperámos, sem perceber a razão, longos momentos, até que a minha mãe mandou-me para casa dos meus avós que era ali muito perto. Eu queria ficar, mas ela não deixou. Ao sair, espreitei para a sala de audiências. A porta, entreaberta, permitiu-me descortinar as costas do tal rapaz sentado e cabisbaixo. À sua frente estava o juiz, que não me viu, porque a minha mãe enxotou-me literalmente.
Tinha acabado de almoçar quando chegou a casa. Os meus avós perguntaram-lhe qual foi o resultado. Foi então que relatou, em discurso direto, naturalmente, que o juiz lhe deu um valente apertão, na esperança de que nunca mais viesse a fazer tamanho disparate.
Sim senhor! Grande juiz. Apertou-lhe os calos. Eu sabia que podia confiar nele...
A partir daquela lição, curta, mas incisiva, ao ponto de a conseguir ver e ouvir, ainda hoje, com uma nitidez impressionante, o juiz passou a ser a pessoa mais importante da terra. Nem o médico, nem o padre, nem o professor, nem o chefe da estação, nem os guardas chegavam ao calcanhar daquele homem. Não tinha medo e gostava de o ver. Parecia-me diferente de todos os outros. Afinal, havia alguém que nos protegia e eu conhecia-o. Se houvesse algum problema o juiz resolvia-o. Até cheguei a pensar dizer-lhe que andava aborrecido, porque já me tinham roubado mais do que uma vez os meus queridos piões. Mas havia sempre um familiar que me comprava um novo. Mas não era a mesma coisa, porque não tinha ainda uso e sem uso é diferente.
Um dia roubaram-me a minha capa com capuz, azul, novinha em folha e que me permitia andar à chuva sem chapéu. Uma maravilha. Coloquei-a no bengaleiro do corredor da escola e à saída nada. Desapareceu! Fui para casa debaixo de chuva e desgostoso com a vida. A minha mãe fez queixa e passados alguns dias disse-me que a tinham encontrado. Fiquei contente, mas foi sol de pouca dura, porque estava suja e esquartejada. O autor do furto, um jovem, teve de responder no tribunal. Um dia de manhã, de calções, entrei com a minha mãe na casa da justiça. Disse que me iam fazer umas perguntas e que não tivesse receio. Receio? Pensei eu. Nem pensar, ali só quem comete faltas é que deverá ter receio, eu não. Sentámo-nos. Passados uns minutos, um senhor abre a porta de uma sala e chama-me. Entrei sozinho e respondi a todas as perguntas. O senhor, de ar austero, ia escrevendo sem grande pressa numa secretária repleta de grossos volumes de folhas azuis. No fim, pega-me na mão, ajuda-me a descer da cadeira, e acompanhou-me até ao corredor. Ainda esperámos, sem perceber a razão, longos momentos, até que a minha mãe mandou-me para casa dos meus avós que era ali muito perto. Eu queria ficar, mas ela não deixou. Ao sair, espreitei para a sala de audiências. A porta, entreaberta, permitiu-me descortinar as costas do tal rapaz sentado e cabisbaixo. À sua frente estava o juiz, que não me viu, porque a minha mãe enxotou-me literalmente.
Tinha acabado de almoçar quando chegou a casa. Os meus avós perguntaram-lhe qual foi o resultado. Foi então que relatou, em discurso direto, naturalmente, que o juiz lhe deu um valente apertão, na esperança de que nunca mais viesse a fazer tamanho disparate.
Sim senhor! Grande juiz. Apertou-lhe os calos. Eu sabia que podia confiar nele...
5 comentários:
Pois é, caro Prof., como se costuma dizer: “Tempos que já lá vão. Hoje em dia, não se fazem juizes como antigamente.” O tanto que se lê sobre o estado da justiça em Portugal suscita-nos uma certa insegurança, uma falta de confiança. Também eu me recordo de olhar para os “guardas” que passavam pela casa do meu avô onde sabiam que nunca sairiam de garganta seca. Beber “um copito”durante as horas de expediente era coisa muito normal naquela altura. Pareciam gigantes aos olhos de uma garota. Imponentes. A cor das fardas mudou. O tamanho das armas também. E a sua eficiência, pelo que parece, e na sua maioria, também... Tudo funciona em cadeia.
"Cada dia que passa aumenta a minha dificuldade em compreender o funcionamento da justiça",diz o Professor e dizemos muitos.
Uma justiça em que magistrados são simultaneamente órgão de soberania e sindicalistas, uma justiça onde todos falam e todos se contradizem, uma justiça cheia de poderes e contrapoderes que conflituam e se anulam, uma justiça que demora anos a fazer justiça, o que é o mesmo que não a fazer, uma justiça que vai vertendo para os media o que lhe interessa, uma justiça que assim possibilita julgamentos populares, uma justiça em que há duques e condes e até uma marquesa, no dizer do actual PGR, uma justiça que transformou quem devia ser discreto em figuras das mais mediáticas das televisões, uma justiça em que o Governo tem medo de actuar...
No meio de tudo isto, há gente, juízes, procuradores, polícias, agentes administrativos que dão o seu melhor e ainda lhe vão dando alguma dignidade. E juízes que, com coragem, ainda conseguem decidir justamente contra os julgamentos populares efectuados pela opinião pública e publicada.
A justiça é o nosso grande problema actual.
Caro Professor,
Este relato mais parece ter ocorrido na sala do director da escola do que num Tribunal! É mesmo "real" que um caso destes levou duas crianças a Tribunal (acusador e acusado)!? Ou tratou-se apenas de uma encenação com a conivência do Juiz para dar uma "lição" ao rapaz que prevaricou?! Parece-me surreal este acontecimento.
Será possível que a casa onde que um homem honrado sente o verdadeiro significado do respeito, se tivesse transformado num gélido deserto, onde os homens perderam a faculdade de se escutar?
http://www.youtube.com/watch?v=_XBBCunspKc&feature=related
Fénix
O autor do furto não era uma criança, era um adolescente com alguma idade, não sei quantos anos, e já trabalhava. Eu sim, era uma criança com 9 anos ou quase. Passou-se este episódio há cinquenta anos. Se foi uma encenação? Não sei. Nem nunca me deu ao trabalho de saber. O que eu sei é que gostaria de ver, hoje, a justiça com os mesmos olhos e confiança com que a via naquela altura. Eu sei que esta atitude não é normal, é mesmo surrealista, e talvez as “coisas” não fossem tão idealistas naquele tempo. Um desejo que não custa muito.
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