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sexta-feira, 27 de abril de 2007

O desamparo da solidão...

Hoje ao final do dia, já a noite espreitava, decidi-me por fazer umas compras rápidas numa pequena mercearia já perto de casa. Uma daquelas mercearias de bairro, que vendem um pouco de tudo, em que os alimentos expostos ainda resistem ao preço electrónico. É um daqueles sítios em que fazemos uma viagem ao passado, em que o tempo parou. Mas em que encontramos o fundamental para nos salvar de uma ida ao supermercado!
Quando entrei, apressadamente, notei uma velhinha que estava encostada um pouco ao lado da porta, que me cumprimentou com "boa-noite minha menina". Senti uma certa ternura mas, ao mesmo tempo, algum desconforto porque senti naquela voz tristeza...
Ao sair, dirigi-me à pessoa para lhe perguntar se precisava de alguma ajuda. Tive então uma breve conversa, que me sensibilizou e tocou. Já há muito tempo que não sentia a solidão de forma tão nítida e o seu doloroso significado.
-- A Senhora precisa de alguma ajuda? Venho aqui de vez em quando e é a primeira vez que a
encontro.
Ficou espantada, com uma espécie de medo.
-- Minha menina sou uma velha que se sente muito sozinha.
-- A Senhora como é que se chama? Vive aqui no bairro?
Esboçou um sorriso de gratidão.
-- Chamo-me (...), moro aqui perto numa casinha junto à igreja. Sabe onde fica?
-- Conheço muito bem o sítio. A igreja é muito bonita. Precisa de alguma coisa?
-- Minha menina sou viúva e estou sozinha. Agora, com o bom tempo já posso vir até aqui à rua. No Inverno, é frio e escuro. Em casa, a solidão é maior.
-- Senhora D. (...) já pensou em frequentar um centro de dia? É um local onde as pessoas se reúnem para conversarem e estarem umas com as outras.
Transbordou um olhar de esperança.
-- Muito obrigada, há já algum tempo que espero uma resposta de uma senhora assistente social que foi ver a minha situação. Tenho que esperar, tenho esperança que me arranje alguma coisa.
(...) E a conversa continuou, envolta numa pobreza envergonhada e numa nuvem de solidão.
A solidão mais triste é a de velho. É monótona e sem esperança. A velhinha com quem travei esta conversa sofre da má solidão: do abandono, do desamparo, o que se designa por uma "vida isolada sem protecção". Quer dizer uma vida em que se perdem as relações humanas, o enquadramento social, a segurança e a auto-estima.
Se juntarmos a esta solidão a pobreza, o que temos é um duplo empobrecimento e o risco de perda de si próprio. E quando assim é, é muitas vezes o princípio do fim...
O envelhecimento não é um mal. Mal é a situação de pobreza e solidão, do alheamento e da indiferença dos mais novos, da ausência de acompanhamento - emocional, mais do que físico - e do não aproveitamento do muito que as pessoas idosas têm para dar.
É esta a sociedade em que vivemos, que temos obrigação de melhorar. São muitas as velhinhas que precisam de amparo!

11 comentários:

Bartolomeu disse...

"A solidão mais triste é a de velho. É monótona e sem esperança."
:)
Caríssima Margarida, esse olhar que dedicou àquela idosa, as palávras que lhe dirigiu e a disponibilidade que manifestou para lhe prestar auxílio, estou certo que foram de uma importância enorme para ela. Provavelmente naqueles momentos ela foi menos só e a Margarida, apesar de uma certa impotÊncia em conseguir contrariar, aquilo que a própria natureza arquitecta, sentiu que algo dentro de si se movimentou.
Lembro-me de em criança, passar os meses das férias grandes, na aldeia onde a minha mãe nasceu. Era criança, mas retive na memória, imagens, rostos, ditos, habitos, etc. Lembro-me nítidamente que os idosos tinham as suas vidas preenchidas. Subsistiam com a quilo que cultivavam nas hortas. De manhã cedo, muito cedo, dirigiam-se aos campos para regar. Nas horas de maior calor juntavam-se no largo da aldeia, à sombra e conversavam. A meio da tarde, voltavam às hortas. No final do dia regressavam e depois do jantar, a que eles chamavam a ceia, voltavam a juntar-se no largo para novas conversas. Resumindo, tratavam do seu sustento básico, mexiam-se e mantinham o cérebro ocupado. Os idosos de hoje, vegetam, por assim dizer. Subsistem de uma reforma miserável, ou de um qualquer subsídio. Compram a miudo na mercearia do bairro, o indispensável, o resto è depositado na farmácia. Conversam esporádicamente com uma Margarida que a notou, encostada um pouco ao lado da porta. E por ser tão raro que este fenómeno suceda, espantam-se e exibem uma expressão de medo, quando essa mesma Margarida, lhes responde ao cumprimento e gasta uns momentos da sua atarefada existÊncia, oferecendo-lhe um sorriso e dedicando-lhe atenção. A mesma atenção que essa velhinha, um dia dedicou a outros e que nesta altura da sua vida é tão ou mais importante que os medicamentos para a tensão arterial, ou a diabetes.
Diz-se que o bater de asas de uma borboleta, aqui, pode influênciar o clima no outro lado do globo.Em nome da velhinha, muito obrigado Margarida.

Pinho Cardão disse...

Excelente texto e excelente comentário!...
O Bartolomeu tem razão. A vida nas aldeias era árdua e difícil, mas a velhice era acompanhada. Raramente alguém estava sòzinho.

antoniodasiscas disse...

Cara Margarida
Mais um excelente texto que obriga a pensar nos problemas sociais mais agudos, como é este da velhice,onde a pobreza por um lado e a falta de apoio e calor humano por outro, deveriam merecer melhor e mais atenção por parte do estado.Ai destes desfavorecidos senão fossem os organismos privados de solidariedade social que vocacionalmente, tratam e se preocupam com as situações em causa. E não deixa de interessante notar que aqueles que mais apregoam e mais aparentemente berram pela aplicação de soluções urgentes e amplas, para tais desgraças, - pasme-se com o orçamento destinado ao desempenho de a tais funções - são exactamente aqueles que chegados a serem governo, se ficam pelas passadas jaculatórias e pouco mais, sinal de que só a propaganda política à volta destes casos,os "comove". Fico à espera de mais um artigo,para poder desabafar. Valeu?

Anónimo disse...

Excelente, Margarida.

Virus disse...

Hmmm... vocês já repararam que enquanto que na civilização Ocidental (a dita desenvolvida e sobretudo a das zonas urbanas) a velhice é encarada como um fardo e um empecilho, por oposição nas civilizações Orientais (em particular nas asiáticas) a velhice é considerada como um estatuto superior e de enorme consideração e reverência?

Afinal aonde está o "desenvolvimento" civilizacional que a nossa sociedade é suposto ter?

Pena é que os nossos "desenvolvimentos" civilizacionais a pouco e pouco estão a impregnar-se nas civilizações orientais!!!

Unknown disse...

Cara Margarida,

Como sempre os seus textos agitam as consciências e alertam para o País real. A sua velhinha é igual a tantas outras que circulam nos passeios das nossas cidades e passamos à frente por serem demasiado vagarosas. Esta é a realidade !
Uma vez no hospital, onde tinha ido por doença, vi uma velhinha que ali chegou, a simular uma situação de doença grave que os médicos desde logo desmascararam. O que se passava era que a velhinha tinha frio em casa, era Inverno, e lembrou-se de pedir aos bombeiros para a transportarem ao hospital onde encontraria o calor que precisava.
Não lhe vou contar do choro da velhinha quando os médicos lhe deram “alta” e os bombeiros a transportaram de regresso a casa.
Como colmatar estas situações que tanto nos constrangem?
A resposta está na humanização e no aumento, com qualidade, dos chamados centros de dia e dos lares, onde os velhinhos, que também seremos nós amanhã, possam encontrar os bens materiais e humanos para levar o resto duma vida digna e da melhor qualidade possível. Felizmente já existem muitos lugares de qualidade.
Não nos iludamos! Quer queiramos ou não, todos sabemos que o princípio cultural que existia na nossa sociedade dos filhos terem a obrigação de tomar conta dos pais, já foi.
Por outro lado, o espírito de solidariedade entre os vizinhos que ainda se vê em algumas aldeias, não se pode transportar para as cidades, como é óbvio.
Partindo do principio de que devemos interiorizar que a nossa velhice não pode ser o pesadelo de ninguém, nem o nosso próprio pesadelo, a sua velhinha, as nossa velhinhas e nós, seremos com certeza mais felizes por sabermos que não vamos morrer de solidão.
Obrigado pelo seu alerta!

Great Houdini disse...

Margarida, boas palavras, que acolheram a vida daquela senhora e agora também nos aconchega o coração.

Confesso já ter lido este post e gostei, mas agora sempre que me chove dentro da alma, aproveito para vir aqui passear e encontro sempre algo que me faz respirar fundo e continuar.

Velhice e solidão que gigantes tenebrosos, nada é capaz de causar mais tropor e nada é mais desnecessário do que eles.

Esta sociedade, continua a passos largos a motivar-me para ir procurar um buraco na amazónia mais profunda.

A solidão é um sentimento que me intriga, pois não considero triste a não ser que a companhia seja má ...

Quanto à velhice nem tudo é mau, espreite aqui o que uns cotas ainda conseguem fazer aqui, inspirador não é?

Margarida obrigado por ter partilhado e não esqueça que a pior solidão é a que se impõem quando estamos do meio da multidão.

Quanto à velhinha, o que será feito dela ... tantas palavra em sua honra que não vão chegar ao destinatário.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Bartolomeu
O "falso" desenvolvimento trouxe problemas sociais muito graves. O padrão de vida das pessoas idosas alterou-se para bem pior em poucas décadas. Quer daqueles que vivem no campo quer daqueles que cresceram nas cidades. Os primeiros porque mais isolados, longe das famílias de origem, os segundos porque desenquadrados no meio de uma multidão incógnita.
No meio da febre do desenvolvimento o País não se preparou para tratar dos seus velhos e o pior é que não está a trabalhar para fazer face ao envelhecimento da população.
A solidão pode ser muito bem, se não formos capazes de alterar o actual estado de coisas, um castigo anunciado para aqueles que tem a fortuna de viver mais tempo. Uma enorme injustiça! Triste velhice, essa de envelhecer em solidão!

Caro Dr. Pinho Cardão
É verdade, a árdua e difícil vida no campo era feita num ambiente de calor humano. A falta dele é uma das causas da solidão.

Caro antoniodasiscas
O problema da pobreza e da solidão das pessoas idosas não se resolve com "complementos solidários". Passa essencialmente por assegurar o acesso a serviços essenciais e por fomentar a integração das pessoas idosas nas famílias.
A demagogia política não resolve os problemas, antes os agrava!

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Virus
Muito pertinente a comparação que apresenta. O mundo desenvolvido do ocidente deveria ser bem mais humilde e acarinhar e proteger a velhice. Pois se todos caminhamos para velhos e queremos viver mais e tudo fazemos para retardar a velhice, que sentido faz abandonar os velhos? Mas que sentido faz renunciar aos seus afectos, aos seus talentos e sabedoria?

Caro Invisível
A história da sua velhinha lembra-me outras histórias tanto ou mais tristes, quando os filhos querendo ver-se livres dos pais idosos os "depositam" nos hospitais para partirem de férias sem o peso da sua companhia!
É muito importante reflectirmos sobre os problemas bem vivos que estas e outras histórias tão bem retratam, que normalmente as pessoas não gostam de falar porque não sabem como os tratar ou porque se sentem incomodadas.
O alerta deveria ser constante! Agitar as consciências, como referiu, já é alguma coisa...

Caro Great Houdini
Os pequenos gestos – que afinal não custam nada – podem representar muito para quem tem pouco muito pouco ou quase nada...
A velhinha que se cruzou naquela tarde com a minha vida, ou a minha vida que com ela se cruzou, sendo pobre e sofrendo de grande solidão, tem a clareza – o que muito me impressionou – de viver o seu destino, de compreender o que lhe está a acontecer.
Infelizmente há muitas pessoas idosas que vivem esta angústia. Felizmente que também há outras sortes! O problema é que ainda não chega a todos. Ainda não é um "direito".
Certamente que a velhinha do meu encontro trocaria de bom grado o seu abandono pela privacidade e autonomia que a vida lhe terá proporcionado noutros tempos. Mas sozinha não tem escolha!

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro José Mário
Excelentes e estimulantes todos os comentários.

Tavares Moreira disse...

Grande Margarida!