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sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Pequenos mundos dentro do mundo


Sinto sempre um certo deslumbramento quando encontro pequenos mundos dentro do mundo, sítios que não visitávamos mas que têm um código próprio para se estar e para se compreenderem. É por isso que hoje vos falo dos cemitérios, pode parecer uma conversa um tanto tétrica mas dei comigo a pensar nisso.
Sempre olhei os cemitérios com grande distanciamento, pareciam-me lugares desertos, pretensiosos nos seus monumentos, cansativos nos caminhos labirínticos e infinitamente anónimos para lá encontrarmos eco das nossas saudades. Além disso, não acredito na vida eterna e não compreendia o que podia levar as pessoas a fazer romaria até aos restos mortais dos que amaram, para os que têm fé sempre seria mais lógico irem rezar a uma igreja do que junto a um montinho de terra.
Mas uma coisa é a racionalidade e outra a emoção, o instinto ou qualquer impulso indecifrável que nos leva a fazer coisas que a nossa cabeça não reconhece nem determina. Daí que me veja compelida a ir ao cemitério ter com o meu pai de vez em quando, às vezes só porque está um lindo dia, outras porque estou angustiada, outras porque sim e mais nada.
Gosto daquele ritual de ir comprar umas flores à velhota que está em frente ao portão, já ficamos a conversar, já lhe pergunto pelo reumático e ela acaba sempre –“é para o paizinho, não é?” e junta uma gerbera amarela ou uma rosa fresquinha ao ramo que eu escolhi. Gosto de ver as jarras com as flores de plástico e as fotografias amarelecidas, de detectar os sinais de abandono ou o grau de sofrimento que persiste entre a data marcada na pedra e as mil e uma formas de que cada um tem de ir lá dizer que se lembra. Venho sempre apaziguada, apesar de a minha cabeça se perguntar porquê, porquê, não está lá nada, o que eu procuro já não existe, mas só de ver o nome dele e a frase que escolhemos “Com amor” me parece uma confirmação de que ele existiu.
Há dias estava uma velhota a limpar um jazigo, com vassoura, balde e pano, a porta escancarada para o dia luminoso de sol, cantarolava quando eu passei por ela e cumprimentámo-nos com aquela cumplicidade de quem sabe o segredo da outra sem sequer precisar de falar nisso. Andei para cá e para lá, a mudar a água da jarra, compor o ramo, a prolongar os gestos de silêncio e intimidade em que ninguém interfere, até que reparei que a senhora tinha desaparecido, mas a porta do jazigo continuava aberta. Quando espreitei lá para dentro, um pouco a medo, como quem entra em casa alheia, pude ver os folhinhos imaculados a debruar as prateleiras, a moldura areada com a fotografia de um homem jovem e ela, a velhota, sentada numa cadeirinha a fazer renda. Não contive o riso de a ver ali, tão plácida como se estivesse no jardim a ver os patos brincar no lago, e ela riu-se também. –“Sabe, - disse ela – gosto de vir aqui fazer companhia ao meu filho. Falo-lhe de tudo sem abrir a boca, se for para outro lado sinto-me sempre sozinha. Quer provar um pouco do bolo que trago para comer a meio da manhã?” E pronto, ali ficámos um pouco, sem nada para dizer, não era preciso, o bolo era óptimo e eu voltei pelas ruelas labirínticas com a alma renovada.
Não sei se há vida eterna ou não há, parece-me isso bastante indiferente, o paraíso na terra somos nós que o fazemos, o outro logo se vê…

5 comentários:

Bartolomeu disse...

Tanto carinho, tanto amor, tanto encanto, ornamentam as suas palavras cara Doutora. A vida de alguem é eterna, enquanto alguem a lembrar. A necessiade de visitar a campa, de a ornamentar, de ajoelhar junto a ela e conversar metafísicamente com quem já não faz parte, fisicamente deste mundo, é a meu ver o reflexo da saudade. Tão maior é essa saudade, quão maior é o amor que nos une à pessoa que partiu. Sabemos que não podemos tê-la em pessoa, mas não ha força capaz de a fazer desaparecer da nossa memória. Prevejo que aos poucos, essa relação física com o local da sepultura, vá perdendo a importância, mas nunca o diálogo mental deixará de existir. Esse diálogo, essa relação que ultrapassa o entendível, porque não encontra termos de comparação em qualquer outra acção curriqueir da dia a dia, tem ainda a funcção de, alem de apaziguadora, orientadora e confortante.
Diz-se, não posso confirmar, que apos a morte ocorrer, o espírito, a alma, mantem-se algum tempo num limbo, quem sabe é devido a essa permanência que se mantem a proximidade e a interligação entre os dois espíritos?
A seu tempo saberemos.
Espero um dia ainda me poder rir à farta, com as outras almas, das parvoices que fui fazendo e dizendo, durante o tempo que me couber.
Entretanto faça-se como a nossa amiga Pézinhos nos ordenou, dias atrás, percorramos o caminho da felicidade, sempre com os sentidos bem vivos.
;)))

invisivel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
invisivel disse...

Cara Dra. Suzana:

Lindo texto este que nos revela um pouco do seu íntimo.

Julgo sentir o mesmo, do seu sentir...

Pedro disse...

O seu texto trouxe-me à memória um livro que li há uns tempos. Era o O Livro Tibetano da Vida e da Morte, de Sogyal Rinpoche. Só o título nos faz franzir o sobrolho e deixa-nos de pé atrás. Mas eu atesto que é mesmo bom e antigo vinho. Descontando todo o projecto de anestesiamento do eu que é o budismo, e que é chocante para um ocidental, a dada altura o autor falava de momentos únicos carregados de uma forte dor.

Esses momentos eram únicos pois como é natural uma dor profunda não é comum. Por outro lado, os momentos eram únicos porque o embate da dor expunha partes mais profundas de nós ao real. Como naqueles fins de tarde, depois de uma tempestade, em que entre o céu negro e o cheiro a terra molhada, há um rasgo de visibilidade em que o tempo pára e vemos o dourado do Sol reflectido nas longínquas montanhas nevadas.

Era uma sensibilidade muito fina associada a uma paz de espírito, que permitiam o desenvolvimento espiritual de quem os vivia e deles sabia tirar partido. Se deles tiramos partido, cara Suzana Toscano, não o sei (irredutível materialista sou), mas que por eles já nós passamos disso tenho a certeza...

Pouco mais há a dizer. Mas fica como corolário que devemos ter os braços bem abertos quando a dor estilhaça o nosso mundo, porque acima do grande abismo azul e com o horizonte a abraçar-nos, é chegada mais uma oportunidade de navegar em mar aberto.

Cumprimentos,
Paulo

Suzana Toscano disse...

Caro Bartolomeu, são saudades, sem dúvidaque vamos iludindo como podemos. Isso do limbo, não sei, ninguém sabe, mas que era bom acreditar, isso era.
Caro Invisível, este sentimento é comum a todos os que sentem a falta de alguém, deve ser muito triste nunca ter sentido saudades.
Caro Paulo, que lindo texto, às vezes também leio esses livros, é como diz, mesmo descontando uma boa parte em que não nos revemos, encontramos sempre uma noa forma de olhar as coisas, a questãoe stá em sabermos tirar proveito delas, como faz, em vez de arrumarmos o livro com desdém.