"O Presidente da República permanece convicto de que, no contexto específico do actual estado de desenvolvimento do País, o novo diploma continua a possuir disposições que comportam sérios riscos de perturbação do normal funcionamento dos serviços públicos e da actividade dos tribunais, tendo ainda consequências negativas para o equilíbrio financeiro do Estado, numa dimensão que, não sendo possível prever, será seguramente muito significativa. Desta forma, pode tornar-se, no futuro, mais difícil a resolução dos problemas que o País enfrenta" (Comunicado da Presidência da República).
O senhor Presidente da República promulgou, contrariado, o decreto da Assembleia da República que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas. Contrariado pelas razões que expressa nesta parte do comunicado em que anuncia a promulgação.
Já aqui manifestei, aquando da recusa de promulgação da primeira versão do decreto, a minha tão modesta quanto convicta opinião sobre o erro de estimativa política a que esta leitura conduz . Faço-o de novo porque desta vez o comunicado do senhor Presidente da República, no parágrafo acima citado, é muito mais claro do que o foi a mensagem à AR, tornando também mais evidente, ressalvado o devido respeito, o erro de perspectiva da discordância presidencial.
No "contexto específico do actual desenvolvimento do País" é absolutamente necessário que o Estado e as demais entidades públicas sejam responsabilizáveis pelos danos que, nas várias formas por que se manifesta o poder, causam aos cidadãos.
No "contexto específico do actual desenvolvimento do País", permitir que o erro administrativo, o erro do julgador, ou o mesmo o erro do legislador, quando grosseiros e lesivos possam passar impunes ou indemnes, em nada contribui para o esforço, que todos reconhecem que tem de ser feito, de aperfeiçoamento da actuação do Estado em especial nas suas relações com os cidadãos.
Sei bem que os ventos não sopram a favor de uma visão da política que ponha o acento tónico nos direitos dos cidadãos. É da História. Sempre que o Estado se muscula, por razões financeiras ou por motivos securitários, reduz-se ao mínimo ético democrático o entendimento sobre o que vale a cidadania nas suas múltiplas expressões. Perdem contornos os limites ao exercício dos poderes públicos que os direitos das pessoas devem significar.
Só a esta luz se pode compreender que à promulgação presida o sentimento presidencial de que "o novo diploma continua a possuir disposições que comportam sérios riscos de perturbação do normal funcionamento dos serviços públicos e da actividade dos tribunais, tendo ainda consequências negativas para o equilíbrio financeiro do Estado, numa dimensão que, não sendo possível prever, será seguramente muito significativa".
O diploma agora promulgado é, antes, um avanço na qualidade da democracia. Não só porque cumpre os desígnios constitucionais do acesso à justiça e da responsabilidade dos entes públicos, mas também porque pode representar exactamente o contrário daquilo que o senhor Presidente da República diz temer. Pode significar - e se o País disso precisa! - um estímulo a um melhor funcionamento dos serviços públicos e uma mais cautelosa e rigorosa administração da justiça.
Nota: Seria dispensável escrevê-lo. Mas pelo teor do que de vez em quando leio nalguma imprensa sobre as opiniões aqui expressas - sobretudo aquela imprensa que está pouco habituada a lidar com quem não intervém por calculismo -, por uma vez deixo aqui dito que neste blog ninguém escreve com procuração de terceiros. As ideias e as opiniões do 4R vinculam e responsabilizam quem as assina.
Não é por acaso que este é um blog de pessoas com nome e com cara. Livres. E que, naturalmente, prezam a sua individualidade.
5 comentários:
É muito engraçado.
É de rir a moralidade com que muitos falam como se tivessem alguma factura a cobrar depois das asneiras que já fizeram.
O documento "Uma gota no Oceano chamado Portugal" circulou a net. Foi enviado a todos os jornais, TVs, partidos, PR, parlamento, etc, etc...
Para quem não sabe esse documento descreve todos os escândalos de corrupção dos políticos que são branqueados pela polícia, comunicação social e pelo povo.
Todos os dias recebo centenas de emails de cidadãos que estão indignados com o rumo que o nosso país está a tomar.
Para verem todos esses roubos:
http://democraciaemportugal.blogspot.com
Coragem e vergonha na cara precisa-se
Afinal este presidente é apenas um que se comporta como presidente do estado e não presidente do país. Para as próximas eleições vou meter tantos votos nele como meti da última vez mas, ao contrário de todos os anteriores, este é o primeiro presidente que tem oportunidade real de sê-lo de todos os portugueses de facto. E por isso é o primeiro a mostrar que de facto não é. Espero, assim, que seja também o primeiro a mostrar que há quem só passe lá 5 anos.
Apoiadíssimo caro Dr. José Mário Ferreira de Almeida, haja quem sem papas na lingua abra o peito e sem receios, faça soar a voz do descontentamento. E para reforço deste seu claríssimo post, aqui deixo um poema de José Régio.
Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
--------------------------------------------------------------------------------
Quando eu nasci,
ficou tudo como estava,
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
P'ra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...
Caro Drº Ferreira de Almeida:
É incompreensível a posição do Presidente nesta matéria por acção, e curiosamente noutras bem importantes, por omissão.
O Presidente foi eleito pela maioria dos portugueses e, por isso, é seu dever ajuizar sobre os interesses concretos de todos os portugueses, e não se refugiar em suposições e em estudos de gabinete, que mais parecem ensaios de futurologia!
Mesmo que o Estado não esteja preparado para eventuais danos colaterais que esta lei possa implicar, o que está em causa é a responsabilização desse mesmo Estado, (que afinal também somos nós), sobre todos os actos que atentem contra o cidadão!
Fazendo um pequeno exercício de futurologia, sou tentado a concordar com o comentário do caro tonibler, e penso que este Presidente vai marcar pela diferença: um mandato de cinco anos, não por este episódio, mas pelo “morno” deste tempo que se arrasta…
Mas também cinco ou dez que diferença faz!? O Estado pagará, tal como paga a todos os ex-presidentes: a subvenção mensal, o gabinete, a segurança, as secretárias, o carro, as comunicações e sabe-se lá que mais…
Aqui o Estado, está muito bem preparado!
Caro Ferreira de Almeida
O risco que nós corremos é o da completa jurisdicionalização da vida pública, que resultaria na total paralisia do Estado e poderia acabar ...sabe Deus onde!
Temos de encontrar a origem dos problemas e solucioná-los, em vez de acrescentar remédios que atacam os sintomas e não resolvem a doença.
Gosto muito de ler Philippe Delmas e nele me vou apoiar, já que é de França que ele se ocupa e qualquer semelhança com a nossa realidade será pura fantasia.
E vou fazer curtas citações já que a natureza deste espaço obriga à concisão.
No "Mâitre des Horloges", escrito no início dos anos 90:
- o Estado deve actuar onde o privado não pode, assegurar o equilíbrio entre interesses antagónicos, com a perspectiva temporal que o mercado não tem,...enfim, preservar os grandes equilíbrios.
- parece faltar, na renovação do Estado, uma certeza de si próprio, a convicção sobre a sua identidade;
NO "Il n´y a pas de malheur français", escrito agora:
- desde há quase 4 séculos que o Estado parecia capaz de tudo conciliar;
- a primeira questão política é a da confiança;
- ao longo dos últímos 20 anos nehum dos problemas essenciais foi resolvido...dão-se-lhes respostas, mas são as soluções que tratam dos problemas, enquanto as respostas falam deles;
- a compexidade legislativa, associada à chuva e à gesticulação legislativas, gere um arbitrário burocrático kafkiano que termina sempre por se encontrar um texto que permita a decisão desejada;
- existe uma esquizofrenia generalizada, provocada pelo cepticismo fundamental dos dirigentes sobre a possibilidade de agir;
- o custo da não escolha de uma geração de dirigentes, ao longo dos últimos 20 anos... é o défice;
- a acumulação de regras é gémea da dívida;
- o ácido tão poderoso que corroe as decisões até à imobilidade é o procedimento;
- o procedimento está para a acção assim como o utensílio para o projecto e a autoridade para o poder; mas a ligação essencial é de subordinação; a confusão das duas é sempre sinal de fraqueza;
- etc.,etc.
Mas, para terminar, já quase no fim do livro, nem me atrevo a traduzir:
"La judicialisation de la vie quotidienne est un de plus pénibles effects de la société de défiance généralisée."...
"La facilité de recours aux tribunaux montre l´aigrissement rapide de la méfiance en soupçon et de l´envie en agressivité. Les dirigeants sont des cibles idéales de ce processus et ils le savent. De sorte qu`il n´est pas difficile de leur faire craindre que leur responsabilité de décideur ne se mue en celle de coupable."
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