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quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Cortejo fúnebre

Nos meus tempos de estudante, quando colaborava na disciplina que anos mais tarde viria a ser regente, tive conhecimento da seguinte história.
Num dia de Verão, quente como no Inferno, depois do almoço, um investigador descia a Rua de Saragoça em direcção à Faculdade de Medicina. No decurso do trajecto cruzou-se com uma carreta fúnebre. O esforço dos que puxavam a dita era mais do que evidente, já que rua é bastante íngreme. Atrás do corpo apenas o padre. Mais ninguém. O médico, pessoa muito austera e de forte personalidade, olhou desconsolado o quadro. Passou para o outro lado, retirou o chapéu e acompanhou até ao cemitério da Conchada o corpo de um ser que nunca soube quem era, mas que teve um acompanhante. Um único acompanhante. Não foi o próprio que contou este episódio. Houve quem o visse e lhe perguntasse de quem era o funeral. Disse que não sabia, mas tinha-lhe custado ver alguém a ser enterrado sem a companhia de uma alma viva, apesar da presença do padre.
Passados mais de 35 anos, lembrei-me deste episódio quando li o funeral do assaltante do banco morto a tiro. Morte em directo, funeral discreto. No cemitério de Benfica, num lugar esconso, baixou à terra o corpo de um criminoso acompanhado por três pessoas: o irmão, a cunhada e uma terceira pessoa. De acordo com a notícia, o sujeito até era religioso, mas não foi acompanhado por nenhum sacerdote, fosse de que Igreja fosse.
Será que os criminosos não têm alma?

9 comentários:

Anónimo disse...

Há muita falta de alma mesmo em quem não aparece aos olhos da sociedade como criminoso, meu caro Professor...

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Também li a notícia. Sendo o homem religioso, fico a pensar porque razão os familiares que o acompanharam à última morada - segundo a notícia o irmão e a cunhada - não terão solicitado a presença de um sacerdote. Ou será que pediram e lhes foi recusado?

Tiago Moreira Ramalho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tiago Moreira Ramalho disse...

História tocante essa que se passou há 35 anos, digna de ser página de romance. É realmente triste. Não digo que devesse haver gente à volta: ele era imigrante, provavelmente não conhecia muita gente. O que entristece é saber que nenhum padre esteve presente: hipócritas. Não sou muito religioso mas respeito o direito de cada um a sê-lo quanto quiser, pelos vistos os padres não...

Suzana Toscano disse...

Se todos os actos da vida estão a ser "laicizados" também os funerais são cada vez mais uma cerimónia social, o espelho da vida terrena com todos os seus símbolos - pouca espiritualidade, pouca compaixão, muita vaidade, muita ostentação. É talvez a forma moderna de dizer que a vida se prolonga para além da morte...

SLGS disse...

Caro professor:
Começo por dizer que leio sempre com muito agrado tudo o que neste blogue publica. Por tal lhe agradeço e deixo expressos os meus parabéns.
A história que hoje nos deixa, trouxe-me à memória uma por mim vivida teria os meus seis, sete anos (tenho hoje 64)e que não resisto a contar.
Por essa altura (1949/50...) era muito frequente aparecerem na minha terra (Portel, distrito de Évora)refugiados/mendigos oriundos de Espanha que, não raro, diria mesmo normalmente, eram detidos pela GNR e depois de alguns dias na cadeia concelhia recambiados à origem.
Acontece que um desses refugiados/mendigos, velho e doente (lembro-me dele perfeitamente)morreu por lá.Organizado que foi o funeral, como indigente, lá seguiu o seu último caminho no esquife da Misericórdia, sendo a carreta tirada por dois homens. Acontece que, por força do caminho para o cemitério, o féretro (dois homens na carreta e o esquife) passou frente a uma pequena casa comercial dos meus pais e pela qual minha mãe zelava. Perante a desolação que se apresentava, minha mãe, impossibilitada de abandonar o estabelecimento, mandou-me a mim, fedelho de seis, sete anos acompanhar o funeral, o que eu cumpri. Logo na altura a atitude da minha mãe me impressionou e pode crer que a compreendi. A experiência, no entanto, foi muito completa e marcou-me para a vida, pois assisti à retirada do corpo do esquife, ser embrulhado num lençol e depositado directamente na sepultura, o que muito me impressionou. Assisti ainda à reposição do esquife na carreta e ao regresso desta e do esquife à origem.Tudo me causou muita impressão e, claro, motivo para uma grande lição de vida que minha mãe de seguida me deu no esclarecimento das interrogações que lhe apresentei. Ficou para a vida.
Eu não era mais que um pirralho. Grande, a minha saudosa mãe.
Que me desculpem a maçada, mas achei que devia contar

Massano Cardoso disse...

Eu, até poderei dizer "nós", é que lhe agradecemos por ter dado tão rico contributo. Pode ter a certeza que não mais esquecerei esse episódio da sua infância que, a partir de agora, passa a ser também "meu"...
Muito obrigado.

Pedro disse...

Meus Caros,

Na mesma senda uma pequena história. Numa viagem de alfa eis que se dá uma paragem abrupta do comboio. Na espera que se seguiu começa o alvoroço e a curiosidade na minha carruagem, entretanto sabe-se que se trata de um suicídio. Depois o comboio arranca.

Um padreco (brasileiro das igrejas envagélicas) afirma -- é escandaloso abandonar um corpo na linha!

Disse para com os meus botões -- bem prega Frei Tomás...

Cumprimentos,
Paulo
PS: A saída do comboio, com a passagem obrigatório à frente da locomotiva, foi chocante qb.

Jorge Oliveira disse...

A lição pode ser outra : o médico teve um gesto muito bonito ao homenagear o morto, mas não lhe ocorreu ajudar os vivos que faziam um esforço dos diabos a puxar a carreta.

Enfim, o que poderíamos esperar de "uma pessoa muito austera e de forte personalidade"? Que se juntasse aos vivos, na Rua de Saragoça, no Pontal ou noutro sítio qualquer...?