"Jamais fique completamente ocioso. Leia, ou escreva, ou reze, ou pense, ou dedique-se a algo para o bem de todos." (Tomás de Kempis).
Tenho verificado ao longo dos últimos anos uma apetência febril para o consumo de psicofármacos por parte dos doentes e uma explosão de prescrições por parte dos clínicos. Os primeiros sofrem e os segundos, não podendo combater a maioria das causas, fazem por “esconder” o sofrimento como se estivessem diante de uma parede atacada por bolor acabando por a pintar de novo. Mas o bolor e a humidade ficam e, ao fim de algum tempo, tudo volta ao mesmo.
Retirando os casos ditos de depressão major, somos obrigados a reflectir se grande parte dos casos são motivo para tratamento. Muito provavelmente, não! A medicalização das sociopatias, que estão na base de muito sofrimento, pode constituir um problema de saúde pública pela dependência provocada pelos fármacos, pelos efeitos cognitivos, diminuição da memória e da criatividade, e diminuição da capacidade de resposta a certos estímulos, para não falar noutras.
Acontece que a maioria dos “doentes” sentem uma “tristeza própria da alma”, como foi designada pelo monge Tomás de Kempis há mais de cinco séculos. A facilidade na prescrição, os interesses na mesma, e a “diminuição” da resistência à “tristeza da alma” explicam o incremento do seu consumo, ao ponto de 32% dos utentes adultos do Serviço Nacional de Saúde andarem sob o efeito dos mesmos. Transformar a tristeza em depressão é merecedora de revisão.
Há casos em que a alma anda mais do que triste, mas sim esmagada, destroçada, apunhalada e violentada até a dor ser insuportável, como foi o caso de uma senhora de idade que veio à consulta por causa do seu braço direito que a impedia de trabalhar e dormir. Bastante inflamado informei-a que em poucos dias ficaria aliviada. Olhou-me e disse que era impossível. - Impossível como? Vai ver que as dores desaparecem. – Mas não desaparece o resto. Vi logo que havia mais alguma coisa. A senhora precisava de desabafar. É fácil libertar a língua de um sofredor. Contou que teve de criar o neto desde pequenino porque a mãe tinha morrido de leucemia fulminante. Bom aluno e bom neto. Há poucos anos morreu o avô. – O senhor doutor conhecia-o, era seu doente. Disse quem era. Recordo ter vindo à consulta e no dia seguinte sofrer um enfarte fatal. Depois desse dia o neto começou a ficar triste, deprimido e deixou de ir às aulas, mas no último período conseguiu recuperar e entrar na faculdade com boas notas. Foi então que tentei saber um pouco mais da doença e conclui que o rapaz sofria de esquizofrenia. Anda a ser tratado. – Como o senhor doutor sabe, às vezes começa com aqueles comportamentos e eu fico logo aflita, nem imagina. Ao longo destes anos ando sempre em sobressalto e a idade avança e não sei o que vai acontecer.
- Bom. Na próxima semana vamos ver como está o braço e depois trataremos da alma! Esboçou um sorriso, agradeceu e disse que sim que viria falar comigo. Vamos ver como se pode ajudar a “tristeza” desta alma. Para já, quer que a ouçam. E saber ouvir é meia cura para muitos males...
3 comentários:
Caro Professor,
É pertinente este seu post. Primeiro porque vale a pena lembrar que não existe uma política de saúde mental em Portugal. Em sociedades modernas, os problemas deste tipo agudizam-se e são tão importantes como os "males fisicos", senão mais.
Em segundo lugar, e é duro de dizer, os profissionais de saúde mental em Portugal tudo o que sabem fazer é prescrever medicamentos até deixarem os pacientes em estado semi-zombie. Não sei se por má formação académica, se para atingirem algum tipo de quota minima de prescrição...
Esta é uma realidade a que tenho assistido através de exemplos próximos, e acho que ninguém dá a devida importância ao que se passa porque efectivamente ninguém dá a devida importância a politicas de saúde mental, dado que toda a gente acha que isso são coisas de maluquinhos.
Parabéns pelo post.
..... "E saber ouvir é meia cura para muitos males..."
Tão verdade que é, Caro Professor, o que escreveu acima.
Tenho constatado nos últimos tempos, por razões de doença de familiares, que nos nossos hospitais, em especial, na área da enfermagem, há uma preocupação excessiva em cumprir as rotinas, mas a parte de socialização com o paciente é ignorada.
é quase como se estivesse a verificar um automóvel, vêem-se os níveis dos líquidos, soro, medicamentos, temperatura, tensão arterial e passa-se de imediato à cama seguinte, sem qualquer palavra.
uma profunda desumanização.
pergunto para mim, quando observo estas situações, mas onde é que estes enfermeiros se formaram ?
Eu ainda sou do tempo ... como no anúncio...:-) .... de ter contacto com os médicos e enfermeiras no Hospital CUF..... há uns bons anos atrás ... e que diferença ... Santo Deus.
Que saudades daquelas enfermeiras do Hospital CUF ... super carinhosas para os doentes.
enfim... o mundo está mais frio, impessoal e desinteressado.
cumprimentos.
Caro Professor Massano Cardoso
Tenho vindo a formar a opinião de que há por parte dos médicos uma grande facilidade em encharcar os doentes que sofrem da "tristeza da alma" de anti-depressivos. Não sei se justifica. Mas fiquei surpreendida ao saber que 32% dos adultos do SNS vivem sob o efeito de anti-depressivos. Um número impressionante a demonstrar que estamos perante um caso de saúde pública que necessita de maior atenção por parte do SNS. Com um número assim tão significativo como é que podemos andar bem?
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