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domingo, 23 de agosto de 2009

“Por que ris, Demócrito?”

Os Abderitas, desesperados com o estranho comportamento de Demócrito, que começou a rir de forma permanente e sem motivos aparentes, apelaram aos bons ofícios de Hipócrates que se disponibilizou a tratar o mais ilustre de todos os sábios, tido como possesso da loucura.
Depois das trocas iniciais de cumprimentos e das preocupações do físico, Hipócrates fez-lhe a seguinte pergunta: “Por que ris, Demócrito? É das coisas boas e das coisas más que falei?” Foi então que ainda se riu mais. Preocupado, Hipócrates interpela-o de modo a poder ajudá-lo a entender que a razão não lhe assistia. Respondeu-lhe: “Se puderes convencer-me disso, ó Hipócrates, operarás uma cura como jamais se fez”. Com a sua imensa sabedoria, Demócrito explicou-lhe a causa do seu riso, ao perorar um dos mais facundos e interessantes ensaios sobre a natureza humana e a infinidade de comportamentos capaz de arvorar. Demócrito ria-se do homem insensato, do seu rancor, dos seus ardis, da sua inveja, das suas conspirações, da sua maldade, da sua avareza, da sua insaciabilidade, dos que rivalizam entre si a perfídia, dos que se alimentam das coisas mais perniciosas como se fossem virtudes.
Foi tão convincente a sua exposição que Hipócrates se rendeu à sua imensa sabedoria. Ao dirigir-se aos Abderitas disse-lhes: “Dou-vos graças por me terem convocado, pois vi Demócrito, o sábio dos sábios, o único capaz de tornar o homem sensato”.
Fui impelido a comentar este episódio da vida de Hipócrates, tão bem descrito no livro “Do Riso e da Loucura”.
Razões? Duas, entre milhares que traspassam os nossos corações ao longo da vida. Vi a figura de um doente, combalido, a sair de um avião e ser recebido como um herói por Kadhafi. Tratava-se de Megrahi, o bombista de Lockerbie. Condenado, acaba por ser libertado por razões de saúde. Tem um cancro em fase terminal. Invocaram razões humanitárias para que pudesse morrer na sua pátria. Estou a ver Demócrito, caso fosse vivo, a rir-se deste dúbio e estranho comportamento de todos os envolvidos, incluindo o criminoso que não teve qualquer pejo em liquidar centenas de inocentes. A outra notícia diz respeito ao massacre de My Lai. O oficial, que fez o que fez, obedecendo aos superiores hierárquicos, os quais por sua vez obedecem aos superiores políticos, pede perdão, quarenta anos depois. Afirma que não há um só dia em que não sinta remorsos. A carnificina não tem qualificação possível e diz muito sobre a natureza humana. O que diria Demócrito sobre este caso? Provavelmente uma gargalhada sonora.
My Lai, Lockerbie, a libertação do assassino e a receção com que foi mimoseado provocariam intensa hilaridade a Demócrito, não porque fosse louco, mas por que era sábio. O sábio que ri não é louco, louco é aquele que faz chorar, ontem, hoje e amanhã.
Já sei porque ris, Demócrito. E tu, por que choras? Não respondas, deixa-me imaginar...

5 comentários:

Freire de Andrade disse...

Pois eu não "vi a figura de um doente, combalido, a sair de um avião e ser recebido como um herói por Kadhafi". Vi várias vezes as cenas do embarque, na Escócia, e da recepção na Líbia e o que observei sempre foi um doente combalido a embarcar no avião e um homem direito que segurava uma bengala aparentemente inútil a descer do avião e a ser recebido por Kadhafi. Não digo que estivesse a fingir de doente, mas lá que a contradição merecia uma boa gargalhada de Demócrito, lá isso merecia.

Massano Cardoso disse...

Pois! A imagem que eu utilizei "vi a figura de um doente, combalido, a sair de um avião" foi a de um jornal, o DN. Não vi as cenas do embarque. São pequenos pormenores que não originariam uma "boa gargalhada", talvez um sorriso cínico. O "resto" da história, o que aconteceu há vinte anos, o que aconteceu agora e entrementes, isso sim, é que são motivos para "boas gargalhadas de Demócrito" e não só...

Bartolomeu disse...

Caro Professor Dr. Salvador, nobre discípulo de Esculápio, assalta-me uma reflecção: será que a humanidade necessita perdoar aos seus algozes... para se sentir realmente humana?
É ténue a linha que separa e distingue o criminoso do pacífico?
É tão poderosa a força que move o assassino quanto aquela que move o humanista?

Massano Cardoso disse...

Caro Bartolomeu

Vou pensar nas suas perguntas. Não quer dizer que consiga responder.

Bartolomeu disse...

Nada é peremptório, caríssimo Professor...
;)