Boné na cabeça, mãos atrás das costas, cabeça de lado, em constante movimento e sempre a olhar para a rua como se estivesse à espera de alguém. O tolo, que não via há alguns anos, estava no mesmo sítio, em frente da porta do cemitério. Viu-me e comentou sem olhar: - A Marisa não me vem buscar. E são horas do almoço. O relógio está a trabalhar. Às tantas só vou almoçar à noite. Mas hoje é dia de Natal ou quê? Entre as múltiplas frases olhava para o pulso como a querer confirmar o tempo.
- Esteve a trabalhar? Perguntei. – Estive. Estive à espera da Marisa. Nunca mais me vem buscar para comer. – E quem é a Marisa? – É a minha colega. Trabalha neste escritório aqui. – Muito bem. Já agora pode dizer-me o que é que o senhor faz? – Eu sou chefe. – Chefe de quê? – Chefe de primeira. Ainda cuspo muito para comer. A que horas se almoça hoje? São horas. Ia respondendo às minhas perguntas sempre de costas voltadas, olhando para o lado esquerdo à espera de que alguém chegasse. Sentado à sombra de uma delicada árvore deixei-me ir naquele estranho diálogo. – O senhor trabalha aqui há muito tempo? – Quinze dias, só! – E já é chefe? – Para o ordenado que tenho ainda é pouco. – Mas diga-me lá uma coisa. O senhor é chefe dos coveiros? Não respondeu. Talvez não tivesse ouvido, - Há muitos coveiros? – Há. – Quantos? – Quatro. – Afinal há quanto tempo está aqui? – Há muito. Há vinte anos. Sorri e comecei a recordar a conversa que tivemos há alguns anos em que o tempo era a coisa mais elástica e volúvel que alguma vez vi. Tinha aspeto limpo e cuidado. Quem o trata fá-lo com carinho e atenção. Continuei a conversar com ele através das suas costas. Nunca me olhou de frente. Sempre à coca da chegada da Marisa. – Já trabalhou hoje? – Estou à espera da Marisa para comer. Eu tenho de comer. Se uma pessoa não come morre. Vai para debaixo da terra. E não é que a gaja demora! Com catano. São quase duas horas e ela não vem. Para a próxima não a deixo ir a lugar nenhum. Primeiro come-se, depois trabalha-se. – Ela foi fazer o quê? - Se calhar foi às compras. – A esta hora está quase tudo fechado. São horas de almoço. – Ela já devia cá estar. Eu como às três horas. Depois as horas fazem-se tarde de mais. – A que horas é que sai? – Saio às duas. – Mas são uma e meia. Olhou para o relógio e ripostou: - São duas e meia, são. – Como é que se chama? – José Manuel da S. R. – Mora aqui perto? – Moro na Presa, antes de chegar à capela do Morais, lá para cima. Eu nem sei se a mulher dele já morreu ou não. Ainda há tempo a vi.
A conversa continuou sempre em redor da vinda ou não da Marisa. – Ela esqueceu-se de que tenho de comer. São três horas e daqui a pouco são três e vinte e ela sem vir. Olhava constantemente para o relógio cujos ponteiros, se trabalhassem melhor do que a sua cabeça, deveriam estar na uma e quarenta. – Ora, a gaja já cá devia estar. Ela e a outra. Eu como às duas horas, duas e meia, três horas, as horas que eu quiser. E ela demora-se. – Onde é que vai comer? – Aqui, no depósito. – Onde?! – O Nélson já comeu e há muito tempo. Eu é que não. – Quem é o Nélson? – É o coveiro cá disto. – Já agora o senhor quanto ganha por mês? – Dois contos e tal. Mas isso é pouco! – Já pediu aumento? – Há quanto tempo! Pedi à Marisa. Mas a Marisa hoje está demorada. Entretanto, rapa do bolso um longo desdobrável e pôs-se a lê-lo. – Que lista tão grande! O que é isso? – São as horas extraordinárias que ela me deve. – Desde quando? – Desde fevereiro. – Ela já não volta. Disse-lhe. Não respondeu. Permanecendo sempre de costas olhava atentamente à espera do que não tem que aparecer. O tolo, no seu discurso enigmático, ia construindo o seu mundo virtual, uma espécie de Pokémon desejoso de ser apanhado por alguém que pudesse ajudar a treinar a sua pobre mente. Repeti: - Ela hoje não vem. – Vem, mas só às quatro horas, quatro e meia. Já são quase. – Mas que horas são? Olhou para o relógio e disse: - São quase três horas. – Três ou duas? – Duas. – Pois são. Foi então que me recordei da frase do tolo com a qual definiu, e bem, o trabalho, “cuspir muito para comer”.
Foi o que eu fiz!
Aprendemos sempre com alguém, até com um tolo.
2 comentários:
SMC, este conto é, para mim, tão estranho que só vindo de um médico lhe dará algum peso. Senão, será loucura do contador.
Abraço
Sorri com o seu comentário. Mas sorri com saudade. Recordo de uma viagem que fiz da minha terra até Coimbra, ainda era estudante de medicina. Nessa conversa recordo ter dito que as pessoas mais felizes deste mundo eram os loucos. Sim. Os loucos são felizes. Eu bem tento, mas ainda não consegui.
Um abraço embrulhado num suave e amoroso sorriso.
Tão bom recordar aquela viagem...
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