No meio de tantos relatórios sobre tudo e mais alguma coisa, vi uma notícia no Le Monde do dia 23 que me chamou a atenção e que vem muito a propósito do sempre aceso debate nacional sobre liberalismo e o papel do Estado.
Uma Comissão criada em 2006 com o apoio do Banco Mundial, presidida pelo Prémio Nobel americano Michael Spencer, liberal ortodoxo, e composta por mais 20 personalidades de relevo mundial – Comissão sobre o Crescimento e Desenvolvimento – publicou um relatório que considera que é necessário um novo consenso para "tornar a mundialização menos selvagem", pondo em causa as políticas de desenvolvimento adoptadas no séc. XX na sequência do chamado “Consenso de Washington”. Este, elaborado pelo economista Jonh Williamson no fim dos anos 80, preconizou a redução dos défices, dos impostos e da despesa pública e a aceleração das privatizações e da desregulamentação.
Um olhar profundo sobre o resultado dessas políticas e a análise dos fenómenos de crescimento persistente de países como o Brasil, a Indonésia, a Malásia, Malta, Singapura ou a Tailândia, põem em dúvida o sucesso de pressupostos quer de forma de governos, quer de algumas receitas económicas até agora consideradas intocáveis.
Chegam agora à conclusão de que o Consenso de Washington “não teve em conta as consequências sociais das políticas que defendia, conduziu à insegurança económica e pôs as populações contra as reformas” consideradas necessárias no mundo global.
O relatório da comissão é peremptório: “A ortodoxia tem limites e, se houvesse uma receita infalível, já a teríamos descoberto”. E qual é a principal constatação? Pois bem. É a de que “o crescimento indispensável para fazer recuar a pobreza e assegurar um desenvolvimento sustentado reclama um Estado forte”.
E que entendem eles por um Estado forte? De facto, a associação entre o crescimento saudável e o papel do Estado deixa por uma vez o estribilho do apagamento a eito dos sectores públicos versus o sector privado, antes evidenciam que tem que haver um “planeamento a longo prazo que permita funcionários melhor pagos e uma administração “competente, credível e motivada”. Diz mesmo mais, diz que os “investimentos públicos em infraestruturas, educação e saúde, longe de impedir o investimento privado, o estimulam”.
O relatório, no breve resumo que pude ler no jornal, parece muito preocupado com a revolta das populações perante o crescente desemprego, a falta de apoios na adaptação a novas formas de trabalho e – last but not the least – deixa de considerar relevante a forma de governo que garanta o crescimento. Ou seja, o segredo do sucesso já não depende dos regimes democráticos que o ocidente arvora como condição…
As receitas milagrosas parecem, assim, estar no banco dos réus. É tão errado combater o desemprego com o aumento desmesurado do emprego público, como é errado cortar investimentos na saúde e na educação em nome de um liberalismo como profissão de fé. É errado controlar os preços para controlar a inflação, como é errado reduzir a análise do progresso a números e mais números, sem olhar a qualidade.
O que esta Comissão vem dizer é, afinal, de uma sensatez desarmante: é que não há fatos-pronto-a-vestir que sirvam a todos os países, uma vez que as realidades sociais não se compadecem com teorias cegas. E que a mesma receita, aplicada sem olhar a isso, como fez o Banco Mundial no século passado em muitos países, não só não provoca o crescimento como pode dar origem a graves problemas sociais.
Este relatório é um grande sinal de alarme e um toque de finados ao liberalismo economicista do fim do séc. XX. É que os povos querem é viver melhor, não estão muito interessados em saber quem é que segue de perto as teorias que estão mais em voga…
Uma Comissão criada em 2006 com o apoio do Banco Mundial, presidida pelo Prémio Nobel americano Michael Spencer, liberal ortodoxo, e composta por mais 20 personalidades de relevo mundial – Comissão sobre o Crescimento e Desenvolvimento – publicou um relatório que considera que é necessário um novo consenso para "tornar a mundialização menos selvagem", pondo em causa as políticas de desenvolvimento adoptadas no séc. XX na sequência do chamado “Consenso de Washington”. Este, elaborado pelo economista Jonh Williamson no fim dos anos 80, preconizou a redução dos défices, dos impostos e da despesa pública e a aceleração das privatizações e da desregulamentação.
Um olhar profundo sobre o resultado dessas políticas e a análise dos fenómenos de crescimento persistente de países como o Brasil, a Indonésia, a Malásia, Malta, Singapura ou a Tailândia, põem em dúvida o sucesso de pressupostos quer de forma de governos, quer de algumas receitas económicas até agora consideradas intocáveis.
Chegam agora à conclusão de que o Consenso de Washington “não teve em conta as consequências sociais das políticas que defendia, conduziu à insegurança económica e pôs as populações contra as reformas” consideradas necessárias no mundo global.
O relatório da comissão é peremptório: “A ortodoxia tem limites e, se houvesse uma receita infalível, já a teríamos descoberto”. E qual é a principal constatação? Pois bem. É a de que “o crescimento indispensável para fazer recuar a pobreza e assegurar um desenvolvimento sustentado reclama um Estado forte”.
E que entendem eles por um Estado forte? De facto, a associação entre o crescimento saudável e o papel do Estado deixa por uma vez o estribilho do apagamento a eito dos sectores públicos versus o sector privado, antes evidenciam que tem que haver um “planeamento a longo prazo que permita funcionários melhor pagos e uma administração “competente, credível e motivada”. Diz mesmo mais, diz que os “investimentos públicos em infraestruturas, educação e saúde, longe de impedir o investimento privado, o estimulam”.
O relatório, no breve resumo que pude ler no jornal, parece muito preocupado com a revolta das populações perante o crescente desemprego, a falta de apoios na adaptação a novas formas de trabalho e – last but not the least – deixa de considerar relevante a forma de governo que garanta o crescimento. Ou seja, o segredo do sucesso já não depende dos regimes democráticos que o ocidente arvora como condição…
As receitas milagrosas parecem, assim, estar no banco dos réus. É tão errado combater o desemprego com o aumento desmesurado do emprego público, como é errado cortar investimentos na saúde e na educação em nome de um liberalismo como profissão de fé. É errado controlar os preços para controlar a inflação, como é errado reduzir a análise do progresso a números e mais números, sem olhar a qualidade.
O que esta Comissão vem dizer é, afinal, de uma sensatez desarmante: é que não há fatos-pronto-a-vestir que sirvam a todos os países, uma vez que as realidades sociais não se compadecem com teorias cegas. E que a mesma receita, aplicada sem olhar a isso, como fez o Banco Mundial no século passado em muitos países, não só não provoca o crescimento como pode dar origem a graves problemas sociais.
Este relatório é um grande sinal de alarme e um toque de finados ao liberalismo economicista do fim do séc. XX. É que os povos querem é viver melhor, não estão muito interessados em saber quem é que segue de perto as teorias que estão mais em voga…
8 comentários:
Caríssima Doutora Suzana, neste contexto, confrontam-se dois princípios, ou ideologias que, não sendo necessáriamente antagónicas, também não se completam. Ortodoxia e desenvolvimento sustentado. Pois se por um lado, a primeira assenta no princípio da irredutibilidade da certeza, a segunda reclama espírito de risco e capacidade de visionar e programar o futuro.
Após a segunda guerra mundial, devido aos progressos industrais e tecnológicos, as sociedades orientaram as suas espectativas no sentido do mega-progresso, toda a gente se convenceu de que o aumento da riqueza não pode ter limites. Efectivamente a qualidade de vida nos paises mais desenvolvidos, aumentou imensamente. Porém e em contraste, naqueles países que por diferentes condições não acompanharam essa "evoloção" existem as piores condições de vida deste planeta.
É esta diferença que nos constrange e que inconscientemente nos impele a desejar mais qualidade de vida, mais possessão, mais haver. Ha algo de irracional que nos leva a crer que se possuírmos ilimitadamente, nada de mal nos poderá atingir. Quando este sentimento se torna colectivo, perde-se por completo a consciência daquilo que são os limites, não os da ortodoxia, como refere o texto, mas os do desenvolvimento sustentado.
Em minha opinião, tem de acontecer o inimaginável: a bem ou a mal, as sociedades vão ter de parar a ânsia do desenvolvimento desenfreado e de correr à conquista daquilo que ainda não possui e depois de possuír, desejar que algo de novo se descubra, para possuir tambem. A felicidade e a completude do ser humano não podem assentar ou estar dependentes de um progresso que tem a competitividade cada dia mais agressiva, entre sociedades como pedra de toque, mas sim e sobretudo na interacção, na troca de conhecimentos e na valorização da pessoa humana.
Em "Globalization and its discontents", Joseph E. Stiglitz (2002), Nobel da Economia em 2001, que foi presidente do Conselho de Assessores Económicos na Administração Clinton e vice-presidente do Banco Mundial, e que continua a ser um destacado e interveniente académico, já referia de forma muito crítica a actuação do FMI e do Banco Mundial em muitas economias onde intervieram.
Em 2006 Stiglitz publicou "Making Globalization Work" mas esta sua obra já não mereceu o acolhimento que foi dado à primeira.
O que confirma que é fácil o consenso na crítica e muito difícil nas propostas alternativas.
Propostas alternativas a que os críticos geralmente tendem a escapar-se refugiando-se em discursos redondos ou tão gerais que qualquer bem intencionado subscreve.
A fractura de opiniões a que estamos a assistir no PSD é muito exemplificativa (mas também muito salutar)do confronto entre as teses de uma social democracia tardia e de um liberalismo cada vez mais assumido.
Entre M Ferreira Leite e P Passos Coelho, creio, vai uma distância que é dificilmente superável sem que uma vitória eleitoral nas legislativas a esconda de novo. Mas essa vitória, que é possível, é pouco provável.
Também concordo que "É tão errado combater o desemprego com o aumento desmesurado do emprego público, como é errado cortar investimentos na saúde e na educação em nome de um liberalismo como profissão de fé. É errado controlar os preços para controlar a inflação, como é errado reduzir a análise do progresso a números e mais números, sem olhar a qualidade."
Que é errado, há muita gente que está de acordo.
O problema é concordar com o sítio do ponto certo.
Mas é essa a discussão que vale a pena. Mesmo que da discussão nasçam dois partidos.
Caro Bartolomeu,belo comentário, acho que a quadratura do círculo está mesmo aí, como compatibilizar o crescimento e a valorização da pessoa humana, sem perder nem uma nem outra.
Caro Rui Fonseca, não têm que nascer dois partidos, em qualquer partido importante há clivagens mais ou menos acentuadas que depois ditaram as políticas dominantes. O problema partidário só surge quando aparecem os que acham que têm a verdade toda, perseguem e anulam os que arrisquem uma opinião diferente e acabam a ditar sentenças sozinhos até que deixem o palco. Isso acontece em todos os partidos, repito, nuns menos democráticos dá origem a dissidências em escala,no que está no poder fala-se em surdina crescente e as feridas abertas surgirão a evidência quando passarem à oposição, noutro dá ranger de dentes até que surja um líder que saiba aproveitar o contributo útil de cada um em vez de se perder em discussões estéreis.
Cara Suzana toscano,
"Por uma globalização menos selvagem", quer dizer, o que está em causa não é a selvajaria da “globalização” mas o seu grau, o grau dessa selvajaria.
A pergunta urge. Que benefícios trouxe, traz para a humanidade a “globalização? Segundo um Relatório da UE a parcela de riqueza produzida que é destinada aos salários é actualmente a mais baixa desde, pelo menos, 1960 (o primeiro ano com dados conhecidos). Em contrapartida, a riqueza que se traduz em lucros, que remuneram os detentores do capital, é cada vez mais alta.
Em Portugal, 5% da população arrecadava em 1974, cerca de 12% da riqueza produzida, hoje arrecada cerca de 20%.
Falemos claro, quando se diz “globalização” selvagem, quer dizer-se, capitalismo selvagem ou, melhor ainda, imperialismo selvagem.
Não é novidade nenhuma para ninguém, pelo menos desde há dois séculos, que os resultados do imperialismo só poderiam ser aqueles a que assistimos. A democracia neoliberal, forma politica estrutural que melhor serve os objectivos do imperialismo, não poderiam dar outro resultado.
Claro que face ao agravamento social, como madalenas arrependidas, os seus próprios autores, vêm agora com lágrimas de crocodilo, manifestar preocupações sobre os resultados das sementes que espalharam.
Não podemos fugir ao desenvolvimento capitalista nem à democracia politica formal. Podemos sim imprimir à democracia um modelo Social Democrata que regule o capitalismo imperialista e inverta este ciclo de distribuição da riqueza e desenvolvimento.
635 MILLION FEWER CHINESE POOR SINCE 1981
http://www.johannorberg.net/?page=displayblog&month=5&year=2008#2725
Como alguém escrevia há tempos, se o Washington Consensus é um consenso, o que seria um Washington Confusion?
Cara Susana Toscano, não sei se leu o editorial do JMF no Público passado sábado. Se não leu, aconselho. Especialmente o último parágrafo.
cumprimentos
Caro Ruy "odemos sim imprimir à democracia um modelo Social Democrata que regule o capitalismo imperialista e inverta este ciclo de distribuição da riqueza e desenvolvimento", isso é fácil de dizer, mas como transpor esse desejo para a realidade da acção política? Creio que é esse precisamente o pomo da discórdia ou, melhor, a fonte das dúvidas...
Caro Helder, fui ver, deve ser o de sábado, sobre Lucas Pires e o facto de PP e Manuel Alegre andarem a pedir a intervenção do Estado no preço dos combustíveis, mas todo o artigo é muito interessante.Obrigada.
Cara Suzana Toscano,
A tarefa não será fácil, seguramente. Uma tal mudança só será possível com a ruptura do actual sistema político. Não será do PSD ou do PS que nascerão forças capazes de uma tal mudança ou mesmo de qualquer outro partido do nosso espectro político. Veja-se agora o caso da disputa de liderança do PSD, em que todos os candidatos se apresentam com políticas neoliberais e se tentam credibilizar na afirmação dessas políticas.
Com o continuado agravamento futuro das condições sociais surgirão seguramente novas forças politicas tendo como ideologia uma verdadeira alternativa Social Democrata na base do que antes afirmei. E não apenas em Portugal, onde a crise atinge maiores proporções mercê da corrupção política em que vivemos, mas por essa Europa fora. Levará algum tempo até que o descontentamento se generalize e ganhe uma nova dimensão política capaz de forjar uma nova formação política que objective verdadeiras alternativas.
Caro Ruy,
todos os partidos que estão fora do poder, o PS francês, o PP espanhol, o PSD, estão em graves crises internas para reformulação das ideologias ou para encontrar, dentro das ideologias que sempre professaram, um discurso capaz de voltar a estimular as pessoas e a ganharem novo ânimo. Não vejo que se resolva com novos partidos, o problema será sempre o mesmo, as teorias liberais, a social democracia, o socialismo mutante, tudo isso está a atravessar uma fase de grande cepticismo por parte das populações. São períodos de balanço crítico mas também oportunidades de fortalecimento das formações partidárias que se instalaram demasiadamente nos protagonismos pessoais...
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