Hoje uma pessoa amiga apareceu com uns lindos sapatos cor de rosa, de salto alto, muito elegantes. Fiquei a olhar pasmada, porque me lembraram imediatamente os sapatos que marcaram a minha entrada na adolescência, aquela fronteira indefinida em que os outros ainda nos olham como crianças mas em que nós já não queremos essa pele e ensaiamos as primeiras incursões, tímidas, no misterioso e fascinante mundo dos adultos.
Devo dizer que a minha aparência não ajudava a grandes voos, porque era pequena e tinha um ar tímido e infantil, sofria mesmo aquela humilhação de me darem sempre menos idade do que a que realmente tinha.
Teria treze ou catorze anos e tinha também uma tia-madrinha que adorava fazer-me as vontades sempre que a ia visitar. Íamos primeiro à missa e depois passeávamos pelas montras até encontrarmos qualquer coisa que eu cobiçasse e, claro, que as minhas irmãs ainda não tivessem, isso era parte essencial do prazer de chegar a casa e exibir a minha vantagem, que depois negociava longamente para efeitos de justa partilha.
Naquela Páscoa, a minha madrinha, que não me via desde o Natal, referiu com surpresa como eu estava crescida, uma rapariga, dizia ela, e reparei com alguma vaidade que o olhar era aprovador. Quando fomos à peregrinação pelas lojas ela passou sem parar pelas montras do costume e dirigiu-se logo à rua das sapatarias, mas não entrámos na das crianças, fomos a outra que eu não conhecia.
- Hoje vou oferecer-te uns sapatos, podes escolher os que gostares mais, não tens festas das amigas? Pois vais escolher uns sapatos para ires às festas, já estás na idade de começar a dançar!
Devo dizer que na altura ter uns sapatos novos, para mais de festas, não era banalidade nenhuma. Eu fiquei paralisada de emoção, a pensar nos sapatos que a minha irmã mais velha já usava, ela era alta e grande, era gira, e com os saltos que já usava levava-me enorme vantagem, apesar da pouca diferença de idades.
Nesse dia levámos muito tempo a escolher. A minha tia inclinava-se para uns sapatinhos pretos, ou azuis, mas eu não me decidia. Até que me caíram os olhos nuns fantásticos sapatos de camurça cor de rosa, num tom pálido mas nítido, com um salto de três dedos bem medidos e um lindo laço a encobrir a frente. Tinham acabado de chegar à loja, iam pô-los na montra quando eu fiquei muda e fixa a olhá-los, e tanto bastou para ser compreendida.
- Já vi que são esses que queres. Vais ter que te habituar a usar saltos assim de repente, mas são bem bonitos, vais fazer um sucesso! – disse a fada madrinha, cuja voz me pareceu então uma melodia celeste.
Levei-os na caixa como quem leva um tesouro e nem os mostrei lá em casa nesse dia, levantei-me de noite várias vezes para os calçar em frente do espelho, a treinar os primeiros passos, não fosse cair em público e ofuscar o êxito com que esperava esmagar as manas todas.
A minha irmã reagiu como eu previa, por sorte ser pequena implica ter um pé equivalente e os sapatos só me cabiam a mim, mas a minha mãe não achou graça nenhuma, declarou logo ali que aquilo não era próprio, mas que ideia a da minha tia, era só o que faltava uma miúda usar aqueles sapatos!
E lá se foi a minha auto confiança recém nascida, naquela altura ainda se fazia o que as mães mandavam, e os meus lindos sapatos ficaram em casa à espera que eu crescesse. Mas quando, finalmente, fui considerada apta, já eles tinham passado de moda, e que me lembre nunca cheguei a levá-los à rua. Devo dizer, em nome da justiça, que todas as minhas amigas os viram e experimentaram, afinal os sapatos fizeram muitas festas sozinhos!, e serviram para treinos e passos de dança no recato do quarto, com muitas risadas à mistura.
Guardei-os muitos anos e desconfio que foram oferecidos discretamente a uma empregada nova que entrou lá para casa e que não seria muito mais velha do que eu quando recebi aquele tesouro… Bom proveito lhe tivessem feito, por mim, diverti-me imenso com aqueles lindos sapatos cor de rosa!
Devo dizer que a minha aparência não ajudava a grandes voos, porque era pequena e tinha um ar tímido e infantil, sofria mesmo aquela humilhação de me darem sempre menos idade do que a que realmente tinha.
Teria treze ou catorze anos e tinha também uma tia-madrinha que adorava fazer-me as vontades sempre que a ia visitar. Íamos primeiro à missa e depois passeávamos pelas montras até encontrarmos qualquer coisa que eu cobiçasse e, claro, que as minhas irmãs ainda não tivessem, isso era parte essencial do prazer de chegar a casa e exibir a minha vantagem, que depois negociava longamente para efeitos de justa partilha.
Naquela Páscoa, a minha madrinha, que não me via desde o Natal, referiu com surpresa como eu estava crescida, uma rapariga, dizia ela, e reparei com alguma vaidade que o olhar era aprovador. Quando fomos à peregrinação pelas lojas ela passou sem parar pelas montras do costume e dirigiu-se logo à rua das sapatarias, mas não entrámos na das crianças, fomos a outra que eu não conhecia.
- Hoje vou oferecer-te uns sapatos, podes escolher os que gostares mais, não tens festas das amigas? Pois vais escolher uns sapatos para ires às festas, já estás na idade de começar a dançar!
Devo dizer que na altura ter uns sapatos novos, para mais de festas, não era banalidade nenhuma. Eu fiquei paralisada de emoção, a pensar nos sapatos que a minha irmã mais velha já usava, ela era alta e grande, era gira, e com os saltos que já usava levava-me enorme vantagem, apesar da pouca diferença de idades.
Nesse dia levámos muito tempo a escolher. A minha tia inclinava-se para uns sapatinhos pretos, ou azuis, mas eu não me decidia. Até que me caíram os olhos nuns fantásticos sapatos de camurça cor de rosa, num tom pálido mas nítido, com um salto de três dedos bem medidos e um lindo laço a encobrir a frente. Tinham acabado de chegar à loja, iam pô-los na montra quando eu fiquei muda e fixa a olhá-los, e tanto bastou para ser compreendida.
- Já vi que são esses que queres. Vais ter que te habituar a usar saltos assim de repente, mas são bem bonitos, vais fazer um sucesso! – disse a fada madrinha, cuja voz me pareceu então uma melodia celeste.
Levei-os na caixa como quem leva um tesouro e nem os mostrei lá em casa nesse dia, levantei-me de noite várias vezes para os calçar em frente do espelho, a treinar os primeiros passos, não fosse cair em público e ofuscar o êxito com que esperava esmagar as manas todas.
A minha irmã reagiu como eu previa, por sorte ser pequena implica ter um pé equivalente e os sapatos só me cabiam a mim, mas a minha mãe não achou graça nenhuma, declarou logo ali que aquilo não era próprio, mas que ideia a da minha tia, era só o que faltava uma miúda usar aqueles sapatos!
E lá se foi a minha auto confiança recém nascida, naquela altura ainda se fazia o que as mães mandavam, e os meus lindos sapatos ficaram em casa à espera que eu crescesse. Mas quando, finalmente, fui considerada apta, já eles tinham passado de moda, e que me lembre nunca cheguei a levá-los à rua. Devo dizer, em nome da justiça, que todas as minhas amigas os viram e experimentaram, afinal os sapatos fizeram muitas festas sozinhos!, e serviram para treinos e passos de dança no recato do quarto, com muitas risadas à mistura.
Guardei-os muitos anos e desconfio que foram oferecidos discretamente a uma empregada nova que entrou lá para casa e que não seria muito mais velha do que eu quando recebi aquele tesouro… Bom proveito lhe tivessem feito, por mim, diverti-me imenso com aqueles lindos sapatos cor de rosa!
7 comentários:
Cara Dra. Suzana Toscano:
Não foi assim num passado tão distante, pois, nota-se jovialidade na necessidade de trocar esta “confidência” . :)
Um interessante texto, cara Drª. Suzana e, estimulante, porque me conduz à reflexão, aliás como são em regra os assuntos que nos traz.
Este, especialmente, porque nos desvenda algo que pretence à esfera da sua intimidade, o que, só por si é demonstrativo do carinho que dedica aos seus leitores.
Que aquilo que vou escrever a seguir, não seja intrepretado como crítica é tudo aquilo que desejo.
Agradeço sempre muito à «Divina Providência» pelo facto de me ter feito nasceer homem.
Eu sei, eu sei, ha tambem homens que dedicam muita atenção ao que vestem, às cores, modelos, marcas, etc. Tambem a falta desse... gosto eu agradeço.
Não, vou ser mais claro. Não me incomoda rigorosamente nada que tanto homens como mulheres tenham paciência para percorrer durante horas as montras de lojas. Eu é que nesse campo sou muito mais básico, entendo a necessidade de cobrir o corpo para o proteger de agressões externas, como sejam as climáticas e até... vamos lá... dos olhares estranhos.
Esta questão, que tem a ver com a observação das regras de moral e bons costumes, é algo que tambem me intriga, na medida em que o "pervaricador" é aquele que não cobre o corpo e nunca o que se sente ofendido com a nudez alheia, porque decidiu observa-la.
Regras de uma sociedade moralmente desiquilibrada, que exige ser respeitada pela aparência, sem cuidar da essência.
Sabe? Estou a imaginá-la com os sapatos cor-de-rosa, a rodopiar e a olhar para eles com um sorriso simultaneamente feliz e vaidoso. Imagem encantadora...
Através destas histórias, guardadas e nunca reveladas, ficamos a conhecer muito, mas muito do que é a essência e o encanto de um ser humano.
Ao imaginá-la de lindos sapatos cor-de-rosa, feliz e orgulhosa por uma maturidade que os outros não queriam ainda perceber, não pude deixar de lembrar da cena de que fui protagonista e que, supostamente, me transformou num adulto. Tinha 17 anos e queria assistir no velho Condes a um filme que estava classificado para 18. A diferença não era muita mas fazia toda a diferença. Tinha uma cara juvenil e a barba não tinha a consistência que me faria de mim um homem.
Então, agarrei-me – literalmente - àquilo que me iria dar a auto-estima que necessitava – o chapéu-de-chuva do meu pai. E com aquele apetrecho, tão, tão … simples, acabei por passar pelo porteiro com uma confiança que não admitia qualquer suspeita. E entrei feliz, “voando” de contentamento por poder, enfim, assistir a uma sessão para adultos.
Como a compreendo!
Olá Suzana! Me chamo Katia e entrei pela primeira vez no blog e emocionei-me com seu texto... também tive uns sapatos assim! Na verdade umas sandálias de verniz rosa! RSS Hoje imagino que talvez fossem um pouquinho chamativas mas eu amei-as muito! Obrigada por provocar essa recordação!
Caro jotac, parece que foi ontem!...
Caro Bartolomeu, o gru em que isso acontece é muito variável de países para páises, na Índia, por exemplo, pode ter a certeza que ninguém repara em como vai, embora talvez reparem nos que querem provocar escândalo. Em Londres também tenho um pouco a sensação de que cada um veste-se como quer, a variedade e os estilos são tantos que é dífícel desenhar o padrão "certo", mas é claro que dentro de cada grupo se reconhecem. De qualquer modo, a nossa cultura de raíz cristã diz que o pecador é quem tenta e não o que é tentado...
Caro massano, se procurar bem, também deve ter havido uns sapatos cor de rosa aí em casa :)e vai haver outros!
Caro demascarenhas, para os rapazes ainda era pior não entrarem no cinema do que para as meninas, lembro-me do nervoso com que os meus amigos tentavam "passar" e do que se gabavam a seguir quando tinham êxito, a contar os filmes "proibidos". Mas as coisas hoje não são assim tão diferentes, só que é para entrar nas discotecas aos 10 anos!
Cara apelido indisponível, bem vinda ao 4r, aqui há reflexões, opiniões e emoções e gostamos de quem nos acompanhe!
Suzana,
obrigada pela acolhida. Já resolvi o probleminha do apelido indisponível, desculpe-me por isso.
Um abraço.
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