Recordo tê-la visto uma ou duas vezes, ou então foi um sonho. Não consigo descortinar. A terra era ocre, quente, silenciosa e cheia de pedras como se alguém as tivesse arremessado ao diabo. Uma zona aparentemente deliciosa, cheia de encanto e de mistério durante o dia, mas que à noite deveria ser de arrepiar.
Ao longe, uma estranha corcunda, que devia esconder algo, despertou-me a atenção. À medida que me aproximava, descortinei uma fenda vulvar. A curiosidade era imensa. À cautela, para não rolar na imensidão dos calhaus quentes e traiçoeiros, consegui, de súbito, olhar para o fundo do abismo anunciado pelas altas fragas graníticas que, arrogantemente, sobressaíam do outro lado. Do fundo, emergiam ruídos de águas revoltas e uma corrente de ar frio capaz de gelar a alma. O rio, que não conseguia ver, ao sentir-se estrangulado, gritava alto e com raiva espumosa. Quem diria que um rio calmo, alegre e quente, de repente, se transmutasse num ser furioso. Não há dúvidas, o diabo deveria morar para aquelas bandas. As águas bem tentavam expulsá-lo mas não conseguiam. Em contrapartida, sofria com dores e revolta aquele aperto, ansioso por chegar mais abaixo onde voltaria a relaxar, a rir-se e a espreguiçar-se de alívio após ter ultrapassado aquele tormentoso troço, longe de tudo e de todos.
Terra isolada e rebelde à fecundação. Desprovida praticamente de vegetação. Pontuavam apenas esparsas ervas ruins, que deviam ser mesmo ruins para poderem sobreviver naquela paisagem. Albergava, no entanto, sardões de dimensões razoáveis que encontravam refúgio nas pedras esquentadas e saboreavam o calor vital.
Houve quem a passasse a designar por terra dos sardões, seres curiosos, simultaneamente tímidos e agressivos, capazes, quando confrontados com ameaças, de as enfrentar abrindo a boca e sibilando de forma estranha e assustadora.
Ninguém, praticamente, se atrevia a ir aquele lugar. E quem tentasse depressa se arrependeria.
Em breve estabeleceu-se uma proibição, e quem a desafiasse corria o risco de saborear a desgraça e envenenar-se até à morte.
A presença de uma estranha figura, de idade indefinida, atarracada, tronco oval do qual se despegavam grossos e curtos braços cujas mãos mal alcançavam o umbigo, encimado por uma cabeça de lagarto da qual se destacava uma boca rasgada sem lábios, e permanentemente a sorrir, causava revolta e mal-estar nos breves e esporádicos encontros que quase sempre ocorriam a desoras e em locais mais isolados.
Quem era? Donde vinha? O que fazia? Ninguém sabia.
Com o tempo começaram a encher as gavetas dos medos e das inquietações. Tentaram adivinhar os seus propósitos, definir a paternidade, ajuizar sobre a sua origem, acabando por lhe fixar residência na terra dos sardões, a que não é alheio o frio que emanava de uns olhos pequenos capazes de brilhar sob o sol do meio-dia e um sorriso cínico.
Muitos começaram a atribuir as causas das suas maleitas aos encontros fortuitos e até à ingestão de alimentos e águas provenientes das suas terras e fontes suspeitas de terem sido empeçonhadas por tão estranha e sinistra criatura.
Contavam uns aos outros as histórias mais inverosímeis nos seus encontros e nas amenas, mas nada tranquilas, cavaqueiras em que o repouso imperava momentaneamente.
Um dia, um dos ouvintes, que já o tinha avistado, quando, inopinadamente, irrompeu num cruzamento, começou a sentir-se mal. Sentia que algo lhe devorava as entranhas. Deixou de comer. Enfraqueceu. A cada dia que passava aquele mexer contínuo desnutria-o e desvitalizava a alma.
Ensaiaram tudo. Mas nada. Dia a dia definhava, agoirando um fim próximo.
Apelaram à ajuda do médico que, rapidamente, se apercebeu do fenómeno em questão. Pensou em esclarecer o que estaria a acontecer, mas, conhecedor da forma de pensar e da força das crenças, sentiu-se derrotado, ab initio, na tentativa de curar por aquela via, a via da razão. Pensou, pensou e prometeu regressar com medicamentos capazes de expulsar todos aqueles vermes que o devoravam interiormente.
Passados alguns dias, municiado de larvas e alguns vermes, que entretanto tinha escondido num lenço, ministrou-lhe um poderoso emético capaz de expulsar as próprias tripas, quanto mais o seu conteúdo.
Durante o esforço, e face à profusão do vomitado, não lhe foi difícil lançar naquele esterco as larvas e os pequenos vermes que, ao serem alvo de admiração do médico, chamaram a atenção do paciente. Assim que pode verificar com os seus próprios olhos o conteúdo sentiu que tinha toda a razão quanto à causa do mal.
Daí em diante, e enquanto o diabo esfregou um olho, a recuperação fez-se integralmente.
Muitos outros casos ocorreram. Utilizando técnicas semelhantes, o médico lá ia conseguindo, com sucesso, resolver os males do povo.
Um dia o clínico adoeceu. Por acaso deveria ter sido o único que nunca viu a tal figura.
Sentia-se mal. Dores. Emagrecimento. Depauperação progressiva. Não lhe foi difícil fazer o seu próprio diagnóstico. Em breve deixou a existência.
Princípio do Verão. A noite estava quente. O velório acalmou-se durante aquele período em que as cigarras conseguem enlouquecer vivos e mortos. Houve um momento em que juraram ter ouvido sons estranhos como que a rastejar nas paredes vizinhas. O cansaço e o calor desmotivaram os presentes que acabaram por se ausentar incomodados pelo estranho rastejar.
De manhã, com a urna já fechada, o ritual da morte continuou.
Ao final da tarde, após a abertura da tampa no cemitério, e enquanto o coveiro se preparava para lançar a cal, acelerador da decomposição, um inesperado movimento na urna gelou os circunstantes. Foi então que um sardão de dimensões apreciáveis se pôs em fuga escalando a parede. Parou momentaneamente. Ao rodar a cabeça, para olhar os presentes, lançou-lhes o mais estranho e cruel sorriso que jamais viram. Desapareceu ato contínuo para nunca mais ser visto.
Há quem diga que continua a vaguear entre as pedras soltas e traiçoeiras naquele ermo de difícil acesso e infértil, onde ninguém tem coragem para ir... a não ser em sonhos.
Ao longe, uma estranha corcunda, que devia esconder algo, despertou-me a atenção. À medida que me aproximava, descortinei uma fenda vulvar. A curiosidade era imensa. À cautela, para não rolar na imensidão dos calhaus quentes e traiçoeiros, consegui, de súbito, olhar para o fundo do abismo anunciado pelas altas fragas graníticas que, arrogantemente, sobressaíam do outro lado. Do fundo, emergiam ruídos de águas revoltas e uma corrente de ar frio capaz de gelar a alma. O rio, que não conseguia ver, ao sentir-se estrangulado, gritava alto e com raiva espumosa. Quem diria que um rio calmo, alegre e quente, de repente, se transmutasse num ser furioso. Não há dúvidas, o diabo deveria morar para aquelas bandas. As águas bem tentavam expulsá-lo mas não conseguiam. Em contrapartida, sofria com dores e revolta aquele aperto, ansioso por chegar mais abaixo onde voltaria a relaxar, a rir-se e a espreguiçar-se de alívio após ter ultrapassado aquele tormentoso troço, longe de tudo e de todos.
Terra isolada e rebelde à fecundação. Desprovida praticamente de vegetação. Pontuavam apenas esparsas ervas ruins, que deviam ser mesmo ruins para poderem sobreviver naquela paisagem. Albergava, no entanto, sardões de dimensões razoáveis que encontravam refúgio nas pedras esquentadas e saboreavam o calor vital.
Houve quem a passasse a designar por terra dos sardões, seres curiosos, simultaneamente tímidos e agressivos, capazes, quando confrontados com ameaças, de as enfrentar abrindo a boca e sibilando de forma estranha e assustadora.
Ninguém, praticamente, se atrevia a ir aquele lugar. E quem tentasse depressa se arrependeria.
Em breve estabeleceu-se uma proibição, e quem a desafiasse corria o risco de saborear a desgraça e envenenar-se até à morte.
A presença de uma estranha figura, de idade indefinida, atarracada, tronco oval do qual se despegavam grossos e curtos braços cujas mãos mal alcançavam o umbigo, encimado por uma cabeça de lagarto da qual se destacava uma boca rasgada sem lábios, e permanentemente a sorrir, causava revolta e mal-estar nos breves e esporádicos encontros que quase sempre ocorriam a desoras e em locais mais isolados.
Quem era? Donde vinha? O que fazia? Ninguém sabia.
Com o tempo começaram a encher as gavetas dos medos e das inquietações. Tentaram adivinhar os seus propósitos, definir a paternidade, ajuizar sobre a sua origem, acabando por lhe fixar residência na terra dos sardões, a que não é alheio o frio que emanava de uns olhos pequenos capazes de brilhar sob o sol do meio-dia e um sorriso cínico.
Muitos começaram a atribuir as causas das suas maleitas aos encontros fortuitos e até à ingestão de alimentos e águas provenientes das suas terras e fontes suspeitas de terem sido empeçonhadas por tão estranha e sinistra criatura.
Contavam uns aos outros as histórias mais inverosímeis nos seus encontros e nas amenas, mas nada tranquilas, cavaqueiras em que o repouso imperava momentaneamente.
Um dia, um dos ouvintes, que já o tinha avistado, quando, inopinadamente, irrompeu num cruzamento, começou a sentir-se mal. Sentia que algo lhe devorava as entranhas. Deixou de comer. Enfraqueceu. A cada dia que passava aquele mexer contínuo desnutria-o e desvitalizava a alma.
Ensaiaram tudo. Mas nada. Dia a dia definhava, agoirando um fim próximo.
Apelaram à ajuda do médico que, rapidamente, se apercebeu do fenómeno em questão. Pensou em esclarecer o que estaria a acontecer, mas, conhecedor da forma de pensar e da força das crenças, sentiu-se derrotado, ab initio, na tentativa de curar por aquela via, a via da razão. Pensou, pensou e prometeu regressar com medicamentos capazes de expulsar todos aqueles vermes que o devoravam interiormente.
Passados alguns dias, municiado de larvas e alguns vermes, que entretanto tinha escondido num lenço, ministrou-lhe um poderoso emético capaz de expulsar as próprias tripas, quanto mais o seu conteúdo.
Durante o esforço, e face à profusão do vomitado, não lhe foi difícil lançar naquele esterco as larvas e os pequenos vermes que, ao serem alvo de admiração do médico, chamaram a atenção do paciente. Assim que pode verificar com os seus próprios olhos o conteúdo sentiu que tinha toda a razão quanto à causa do mal.
Daí em diante, e enquanto o diabo esfregou um olho, a recuperação fez-se integralmente.
Muitos outros casos ocorreram. Utilizando técnicas semelhantes, o médico lá ia conseguindo, com sucesso, resolver os males do povo.
Um dia o clínico adoeceu. Por acaso deveria ter sido o único que nunca viu a tal figura.
Sentia-se mal. Dores. Emagrecimento. Depauperação progressiva. Não lhe foi difícil fazer o seu próprio diagnóstico. Em breve deixou a existência.
Princípio do Verão. A noite estava quente. O velório acalmou-se durante aquele período em que as cigarras conseguem enlouquecer vivos e mortos. Houve um momento em que juraram ter ouvido sons estranhos como que a rastejar nas paredes vizinhas. O cansaço e o calor desmotivaram os presentes que acabaram por se ausentar incomodados pelo estranho rastejar.
De manhã, com a urna já fechada, o ritual da morte continuou.
Ao final da tarde, após a abertura da tampa no cemitério, e enquanto o coveiro se preparava para lançar a cal, acelerador da decomposição, um inesperado movimento na urna gelou os circunstantes. Foi então que um sardão de dimensões apreciáveis se pôs em fuga escalando a parede. Parou momentaneamente. Ao rodar a cabeça, para olhar os presentes, lançou-lhes o mais estranho e cruel sorriso que jamais viram. Desapareceu ato contínuo para nunca mais ser visto.
Há quem diga que continua a vaguear entre as pedras soltas e traiçoeiras naquele ermo de difícil acesso e infértil, onde ninguém tem coragem para ir... a não ser em sonhos.
1 comentário:
Espectacular...e arrepiante! O imaginário popular tem sempre algum fundo de verdade, seja pelo perigo dos locais, seja pela necessidade de esconjurar medos vagos, concentrando-os num ponto concreto. O médico teve a inteligência de perceber o fenómeno psicológico e, em vez de lutar contra essa "muleta", o que certamente reduziria a confiança das pessoas na sua intervenção, conseguiu conciliar a crença com a ciência mas realmente a vida é muito estranha, e o sardão subsistiu à sua morte! Há sempre sardões à solta por aí...
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