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Este Orçamento marca a diferença em relação a quatro anos de conflito com o Estado de direito e de ruptura social. Prova, no plano interno e no europeu, que é possível uma estratégia baseada no cumprimento da Constituição, na recuperação de rendimentos, num quadro de cumprimento da dimensão de Portugal na União Europeia. Mas é um Orçamento que permite demonstrar que, no plano interno, é possível um Governo em que é discutido o ritmo de cumprimento do seu programa eleitoral e o ritmo do cumprimento dos acordos políticos que o sustentam. Isso permite acabar com a querela constitucional".
Eduardo Cabrita, ministro adjunto do PM em entrevista ao Económico.
Pondo à margem as profissões de fé que povoam o discurso e as proclamações plenas de tocante generosidade, mas risíveis - como a da estratégia "num quadro de cumprimento da dimensão de Portugal na União Europeia" (?!) -, neste excerto da entrevista revelam-se os muitos equívocos de um ministro que, faço-lhe esta justiça, interpreta fielmente o que vai na alma de quem governa e dos que politicamente suportam quem governa.
Primeiro equívoco: "este orçamento", se é alternativa a algo, é-o, desde logo, e contrariamente ao que o ministro diz (i) ao programa eleitoral do PS e aos cenários macroeconómicos em que se apoiou, (ii) ao ideário da frente de apoio parlamentar à esquerda e (iii) ao programa do governo. Não há mal na aproximação sucessiva a medidas realistas quando os primeiros ensaios se revelam desastrados, bem pelo contrário. Só que os episódios com a elaboração "(d)este orçamento" desde a sua primeva versão, mostram que o governo não possui qualquer solução redentora, qualquer alternativa estruturada que não seja uma estratégia dirigida à destruição de algumas das medidas de consolidação do governo que o antecedeu. Mesmo descontada a extensa errata à versão do OE apresentada no parlamento, rigoroso é dizer-se que "este orçamento" é alternativa, certamente, ao programa dos partidos à sua direita, mas é-o também às políticas orçamentais com que os partidos que apoiam o governo se apresentaram a sufrágio e às que enformavam o projeto que levou a Bruxelas.
Segundo equívoco: não existiu, no passado recente, qualquer querela constitucional com o sentido que, creio, o senhor ministro quer imprimir. Dá muito jeito à situação extrair dos pronunciamentos pretéritos do Tribunal Constitucional sobre as medidas do governo do PSD/CDS, a conclusão de que existe uma Constituição de esquerda boa e uma Constituição de direita má. Mas não há. Existe uma Constituição que, como texto jurídico que é, está sujeita a interpretações obviamente influenciadas pelas convicções dos juízes constitucionais quando julgam com base em princípios que admitem diversas leituras e precipitações, como aliás recentemente se viu com a questão das subvenções vitalícias dos políticos. Se é a isto que o ministro Eduardo Cabrita se quer referir quando diz que este governo pôs fim à "querela constitucional", então o equívoco é preocupante uma vez que este tipo de querelas é essencial ao constitucionalismo democrático. É assim que se mantém viva e efetiva uma constituição numa democracia. Só em relação às constituições semânticas dos regimes autoritários é que não existem querelas, prevalece sempre a interpretação oficial.
Terceiro equívoco: decorrente do anterior, roça o nível do anedótico dizer-se que "este orçamento" "prova, no plano interno e no europeu, que é possível uma estratégia baseada no cumprimento da Constituição", como se fosse possível outra qualquer estratégia que não a de acerto com os momentos essenciais do nosso sistema de valores, ajustável, como em qualquer parte do planeta, às condições concretas, designadamente à disponibilidade de recursos.
Aliás, se este governo e esta maioria de suporte parlamentar durarem mais alguns meses, verão, como é normal, escrutinados os seus atos pelos tribunais, v.g., pelo Tribunal Constitucional, sendo a coisa mais natural do mundo que os juízes entendam que alguns deles não são conformes a princípios e regras da Constituição. Se assim vier a ser, isso não pode ser considerado, "no plano interno e no europeu", um golpe fatal na estratégia da atual maioria. Significará, como significou com o governo e a maioria antecedentes, que o governo e o parlamento têm de encontrar medidas alinhadas com o projeto político da maioria que respeitem a Constituição. Tão só.
Derradeiro equívoco: um orçamento de Estado, "este orçamento" ou qualquer outro, não prova o sucesso ou o insucesso de qualquer projeto político. Um orçamento é uma previsão de receitas a cobrar e despesas a efetuar pelas diferentes administrações públicas, que, se tem efeitos sobre a economia, é influenciado sobremaneira pelo comportamento da economia real de um País. A volubilidade do nosso é agravada pela exposição ao exterior e pela variação de fatores indomináveis (por exemplo, a cotação nos mercados de matérias primas, entre elas o petróleo) e pela dependência de ajudas externas para manter o nível de vida geral de quem aqui vive. Percebo que é duro constatá-lo, mas é a realidade impiedosa. Por isso, a prova da razão política deste governo não está neste orçamento. Estará na execução deste orçamento, isto é, no grau de alinhamento das previsões de hoje com a realidade dos números que verificaremos daqui a um ano.