Na vertente vertiginosa típica da idade que se escoa sem sentido, faço todos os possíveis para preencher curtos espaços de vida ainda disponíveis.
Apontei para o interior. Tentei ir aos locais que já tinha visitado há alguns anos. Acredito que tenho memória de andorinha. Consigo descobrir onde nasceram os meus pensamentos e como qualquer sítio serve de maternidade não é difícil encontrar o que quero. Enveredei pela “portados quinhentistas” e os meus passos fluíram em sintonia com as minhas lembranças. Uma porta, uma alminha, duas janelas geminadas, muralhas descaracterizadas, vazios silenciosos, portas de outrora, até que cheguei à velha praça que estava em obras. Uma senhora, magra, de cabelo branco e curto, saia longa, carteira simples a tiracolo, aproximou-se. Com um doce sorriso informou-nos que se fôssemos por aquela rua, enquanto apontava para a mesma, podíamos ver a estátua de Amato Lusitano. A sua simpatia transparecia necessidade de falar, nem que fosse por breves momentos. – Sabe? Amato Lusitano foi um grande médico. Nasceu aqui, em Castelo Branco. Foi médico do papa Júlio III e nunca abdicou da sua religião. Chegou a dizer ao papa que tratava judeus, cristãos e muçulmanos da mesma maneira. A descrição histórica continuou com entusiasmo, dizendo que a estátua foi inaugurada nos quinhentos anos do seu nascimento (2011). Até vieram espanhóis! Sabe que Amato Lusitano teve um sobrinho neto que foi médico de Catarina de Médicis? Morreram ambos quando iam a caminho da Holanda. A conversa fluía de forma unidirecional. Estive atento e nunca deixei transparecer os meus conhecimentos sobre tão insigne médico e pensador. – Se quiserem podem ir por aquela rua, e à frente, na terceira encruzilhada, do lado esquerdo, é a rua onde nasceu Filipe Montalto. Era a judiaria. Olhe que ele conseguiu um feito notável, o papa autorizou-o a praticar livremente a religião judaica. Sem isso não aceitaria ser médico de Catarina. Entretanto, o sol ia iluminando a sua face enrugada mas feliz por encontrar quem a ouvisse. – Sabem onde está a estátua de Amato Lusitano? – Sei. Eu conheço o local. – Ah! Conhece? Então, pronto. Desejo-vos um agradável passeio. Boa tarde. – Boa tarde e muito obrigado pela sua atenção.
Calcorreámos aqueles espaços sem dizer nada, até que ao chegar, disse: - Ainda bem que não disse à senhora que era médico e que conhecia relativamente bem a vida e a obra do senhor. – Fizeste bem. Foi tão simpática. Ficou muito feliz por poder falar sobre o assunto. – Pois foi. Sabes? Ainda estive tentado a contar um ou outro caso clínico que tradicionalmente é imputado ao Amato. - Como? – Dizem, esta coisa de ler é mesmo assim, já não me recordo onde, que descreveu um caso interessante ocorrido aqui em Castelo Branco. Um senhor, presumo que se chamava Silva, morreu de rotura da veia cava. – E depois? – Bom. Parece que tinha uma mulher “muito encorpada” e que estando por cima naquilo a que ele chamou “noite conjugal” deu cabo do Silva. – Coitado do Silva! – Imagina se eu tivesse contado este episódio à senhora. – Tu és mesmo doido. Doido varrido. Fiz de conta que não ouvi, porque o sino da sé tocava desenfreadamente. Ao desviar a conversa, perguntou-me: - Será casamento? – Hoje? Dia de Corpo de Deus? Não. Talvez uma procissão. Fomos ver e era mesmo. A segunda no mesmo dia.
2 comentários:
Sr. Professor, é sempre com enorme e grato prazer que leio os seus escritos. Ainda bem que voltou.
Já tinha saudades.
Obrigado. Um abraço.
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