Já lá fui muitas vezes. Curioso. O tempo obriga-me, sem saber, a ir aos mesmo sítios, uma, duas, três, eu sei lá quantas vezes. Para quê? Para poder saborear belas emoções. Esta é uma delas.
Fui até Gouveia. Andei, passeei, espreitei e acabei por ir ao museu Abel Manta. Em boa hora o fiz. Deliciei-me com os quadros de tão grande e expressivo pintor e ainda desfrutei de um ambiente simpático, lúdico e culto no meio de uma pequena cidade do interior onde estavam expostas obras de muitos artistas portugueses. Sem o tempo a martirizar-me, e sem preocupações de maior a desviar-me a atenção e o gosto pela reflexão, e com uma vontade imensa de beber tão criativa expressão artística, passei um bom momento naquele palácio. Aprendi muito. Ao terminar a visita entrei numa pequena sala onde vi um belo quadro intitulado "O Joia", que me fez lembrar de imediato uma personagem da minha terra, o Zé Sancho. Na mesa estavam, entre muitos cartazes e cópias de pinturas, uma descrição do quadro.
Li: "Um homem olha-nos de frente. A cabeça verga com o peso do saco que carrega às costas. Agarra-o com as duas mãos. Na direita, ainda consegue levar um chapéu.
Veste casaco cinzento esburacado e camisa desabotoada. Um cordão faz de cinto, que mal prende as calças rasgadas. Trás nos pés umas velhas botas castanhas.
Atrás dele está uma carroça puxada por um burro.
Mal se veem, no dia cinzento.
Devia estar frio. Que lhe parece?"
Havia muitas parecenças entre o "Joia" e o Zé Sancho. Ambos carregavam sacos, usavam calças velhas, chapéu, e um cordão para as apertar. O Zé Sancho era muito forte, tão forte que metia um saco de farinha debaixo de cada braço e, com a pirisca no canto da boca a arder e a fumegar, subia com uma facilidade surpreendente a inclinada rampa para espanto dos outros trabalhadores que com muita dificuldade transportavam um no lombo. Uma força descomunal. E quando se pretendia testar a sua força era capaz de mostrar que ainda conseguia levar um terceiro às costas. Trabalhava descalço ou usava umas socas de madeira. Nunca largava os cigarros kentucky, um verdadeiro mata-ratos que o pessoal jovem abominava. Quando lhe dávamos cigarros com filtro, ou mais "sofisticados", dizia que aquilo não era tabaco e retirava de imediato o filtro. Não era homem de muitas falas, o que estava correto, pois nele conversar variava na razão inversa da força.
Tornou-se numa figura popular. Um mouro de trabalho que nunca se queixava. Guardava o dia do senhor. Num desses dias, estava no largo do Balcão com os meus amigos, vi aproximar-se o Zé Sancho. Começaram a meter-se com ele, perguntando-lhe se vinha da missa. Respondeu à maneira, um zunzum que não percebi. Não entendi se queria mandar alguém a outro lado. Eu nunca o vi na missa, pensei, mas como poderia ver se, também, não punha lá os cotos?
Para onde vais Zé?
- À fazenda.
- À fazenda?!
- Sim.
- Onde fica? Explicou-me e vi que ainda tinha de andar um bom bocado.
- É longe!
- Não.
- Vais trabalhar na terra ao domingo? Olha que isso é pecado.
- Não vou trabalhar.
- Não vais?
- Não.
- Então, o que é que vais fazer?
- Estrume.
- Estrume?! Como? E o Zé Sancho, na sua forma linguística básica e popular, disse sem rodeios o verbo que impera em muitos meios.
- Oh diabo! Mas por que razão fazes isso?
- Para poupar. Tenho que aproveitar para fazer estrume. Não posso desperdiçar.
- Mas ó Zé, tu consegues aguentar até à fazenda?
- Consigo pois.
- Mas é tão longe!
- Não faz mal. Virou-me as costas, com a pirisca a arder no canto da boca do lado esquerdo, e, no seu andar tipo Charlot com as velhas socas, lá foi pela avenida cumprir o ato ecológico de adubar com a sua natureza a terra que lhe dava de comer. O primeiro ecologista que conheci.
O quadro de Abel Manta teve o condão de me recordar este episódio e uma personagem que me marcou na infância e adolescência. Estou convicto de que se o grande pintor tivesse conhecido o Zé Sancho seria capaz de o registar com a mesma nobreza e elegância como fez em relação ao "O Joia". Afinal, eu também conheci uma joia.
Sem comentários:
Enviar um comentário