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sexta-feira, 1 de junho de 2018

“LADRÕES E PIÕES”...


Diariamente sou confrontado com situações pouco ortodoxas. A senhora, um pouco triste, respondeu-me que o seu estabelecimento tinha sido alvo de atenção dos larápios. Não arrombaram a porta, abriram-na e levaram dois expositores, uma imitação de uma pistola antiga e o mealheiro da filha mais nova. Subitamente dei-me conta de que a espécie humana é a mais estranha de todas. Acredita em deuses, fabrica-os à sua imagem e semelhança, é capaz das coisas mais extraordinárias, desde a arte à ciência, vai até à Lua, e um dia qualquer até ao fim do mundo, descobre causas das doenças, consegue explicar muito do inexplicável, cria sinfonias, é autora das mais sinceras manifestações de amor e de solidariedade, mas também mata, provoca guerras e rouba como se fosse a coisa mais natural do mundo. E deve ser. A força da evolução humana reside precisamente na capacidade de matar e de fazer as maiores tropelias que causam desgosto e perturbação nos que entendem que a honestidade e a honra são os princípios de uma nova humanidade, que tarda em aparecer. Desconfio que nunca irá acontecer. Acreditamos que sim, ou melhor, fingimos, mas os seres humanos desonestos irão dominar sempre a realidade humana.
Um dia, devia andar na segunda classe, penso que por altura das férias da Páscoa, lembrei-me de ir ao tribunal. Ia a subir as escadas enfiado nos meus calções quando o meu avô me viu. - O que é que estás aqui a fazer? Perguntou muito admirado. - Vou fazer queixa ao senhor doutor juiz. - Vais o quê? - Vou dizer-lhe que me roubaram o meu pião de buxo, o que tinha uma ponta de prego. - Mas tu és doido? - Não. Não me disseste que é aqui que os homens de bem vêm queixar-se das injustiças? Puxou o chapéu para trás, afagou o bigode, um costume, silencioso, que tinha antes de tomar uma decisão, e depois disse: - Vou contigo. Subiu as escadas, deu-me a mão e entrámos no átrio um pouco escuro. Tirou o chapéu. Olhámos para o lado direito, onde era a sala de audiências, e através da porta semiaberta vi ao fundo, sentado na tribuna, o senhor doutor juiz com o seu ar austero. Nunca tive medo do senhor. Quando me cruzava com ele cumprimentava-o sempre: - Bom-dia, ou boa-tarde, senhor doutor juiz. Interrompia o passo e respondia: - Bom-dia, ou boa-tarde, menino. Mas o que eu achava mais importante era quando tirava o chapéu. Sentia que era importante. Um juiz tirava-me o chapéu quando o cumprimentava. Eu e o meu avô ficámos a olhar durante uns instantes para o julgamento que estava a decorrer. Foi então que me disse: - Estás a ver? O senhor doutor juiz está a fazer um julgamento e parece-me que vai demorar um pouco. O melhor é virmos noutra altura. Não achas? Fiquei a pensar durante alguns segundos. Concordei. Caso contrário iria perder a tarde e eu queria era jogar à bola com os meus amigos. Ao descermos a escadaria, o meu avô perguntou-me se não tinha outro pião. - Tenho, mas não é nada comparado com o outro. Quando o lançava escachava a cabeça dos piões dos meus colegas. Ficavam sem conserto. E quando ganhava ao jogo do pião, usava-o sempre para dar ferroadas. Os outros ficavam bonitos, ai ficavam!  E se perdia era ele que tinha de as receber, mas como era duro ficava na mesma. - Hum! Estou a ver. Vou ver se consigo arranjar-te outro, - Vais mesmo? - Vou, mas só se me prometeres que não vais incomodar o senhor doutor juiz. - Está bem. Não vou. Mas olha lá, explica-me uma coisa, porque é que as pessoas roubam coisas aos outros? Isso não é pecado? Parou, empurrou o chapéu para trás, afagou, em silêncio, o bigode com o indicador e o polegar, e disse: - Pois! Uma boa pergunta. Olha, não sei. Nunca roubei nada a ninguém. - Então, eu também nunca vou saber. - É melhor não. Vai brincar. Passados dois ou três dias, ofereceu-me um gordo e duro pião com um bico que prometia muitas vitórias. Como era especialista em lançar piões - foi ele que me ensinou -, fez das suas, atirou de frente, bico para cima, de costas, e fazia aquilo que mais adorava, apanhava-o à unha...

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