Confesso que não me faltam histórias. São tantas
que era capaz de passar o que me resta de vida a contá-las. Todas diferentes, e
cada uma com o seu encanto. Encanto que tanto pode transformar-se num amplexo
de alegria, num momento de tristeza, numa admiração do eterno, ou provocar um
breve momento de reflexão.
Quando o vi pela primeira vez senti que era
diferente. Educado, culto e aristocrata
no mais amplo sentido da palavra. A conversa desviou-se da rotina da consulta.
Rapidamente senti que era um ser diferente. Só. Quem vive na solidão da vida é
sempre diferente. Nunca o questionei a esse propósito. Não tinha esse direito. Há coisas
que devem ser respeitadas. Eu respeito-as como se entrasse num templo dedicado
a qualquer deus, não por acreditar neles, mas porque acredito na dor e no amor
de qualquer ser humano. O ritual da consulta tinha de ser respeitado. Fiquei
preocupado. A situação era muito preocupante. Falo daquilo a que se
convencionou chamar fatores de risco cardiovascular. Olhei-o. Questionei se
sabia o risco que estava a correr. Não disse nada, apenas sorriu.
Expliquei-lhe, “catedraticamente”, a situação e a urgência em ser tratado.
Quando dei por mim, já tinha escrito uma carta ao colega de serviço nas
urgências para “aliviar” de imediato a situação. Algo muito preocupante.
Dissertei como mandam as regras sobre o assunto e expliquei-lhe a minha
angústia. Sorriu. Sorria sempre com o máximo de delicadeza. – Vai agora às
urgências. O senhor corre risco muito elevado de sofrer um acidente
cardiovascular. Falei sempre num tom
baixo, profissional, acrescido da minha posição, que não era estranha ao
senhor. Reforcei as minhas opiniões. Fiquei na dúvida se iria acatar ou não as
minhas orientações. Quis acreditar que sim, mas, mesmo assim, agendei nova
consulta ao fim de alguns meses, mais para saber se as “coisas” estavam ou não
a ser controladas. Sorria agradavelmente e comportava-se com a mestria inerente
a um verdadeiro aristocrata. Passado o tempo previsto apareceu. Fiz o
interrogatório que deveria fazer e fiquei surpreendido com o facto da situação
estar praticamente na mesma. – O senhor não está a ser tratado? – Não, senhor
doutor. – Não me diga. Estou preocupado. O senhor tem que se tratar
imediatamente. Olhei-o e pensei: - O melhor é medicá-lo e pedir ao médico de
família para o acompanhar. Nova carta, nova orientação e nova explicação aliada
à “velha” preocupação. Sempre delicado, deu-me a sensação de que iria cumprir
com as determinações. Gostei daquele sorriso e a forma de estar.
No momento do exame de rotina fiquei convencido de
que estava tudo controlado. Conversa de nível superior acompanhada de um
sorriso que catalogo de encantador. Abri a boca de surpresa. Estava tudo na
mesma. Perguntei-lhe se estava a ser tratado. – Não, senhor doutor. – Não?! Ó
meu Deus. Mas porquê? Perguntei. Ofereceu-me o seu belo sorriso embrulhado numa
encantadora conversa. Comecei a tremer e, até, a gaguejar, o que não é meu
hábito. – Mas tem que se tratar. Tem que se tratar. Se fizer o que eu lhe estou
a dizer poderá viver sem problemas e durante muito tempo. Olhei-o cheio de
angústia e tive como resposta um belo sorriso. – Senhor doutor, não vale a pena
incomodar-se comigo. – Como? Interpelei-o. – Senhor doutor, eu não quero ser
tratado. – Como? A minha angústia ia subindo de intensidade acompanhada de uma
estranha e profunda dor. O trabalhador, culto, educado e aristocrata,
apercebeu-se da minha perturbação. – Senhor doutor, eu sei o risco que corro e
agradeço-lhe do fundo do meu coração a sua preocupação, mas não quero ser
tratado. Não fique triste e nem aborrecido. Deixe-me viver a vida como eu
quero. O raio daquele sorriso, meigo, delicado, simples e muito vivo, perturbou-me.
Pela primeira vez na minha vida, tinha à minha frente alguém a consolar-me.
Quando saiu fui até à porta. Vi-o a atravessar o longo pátio. Pensei: - Não sei
porquê, mas julgo ser a última vez que o vejo.
Hoje, comunicaram-me que teve morte súbita. O
Senhor da Boa Morte premiou-o, e roubou-me um dos mais belos e aristocráticos
sorrisos que vi até hoje.
Sinto que sei quais foram razões, mas não as quero
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