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domingo, 6 de novembro de 2005

À caça?

Não é a primeira vez que se discute o internamento à força de doentes com tuberculose. Os que defendem esta medida argumentam com a necessidade de proteger os restantes cidadãos e evitar a morte dos doentes que recusam sujeitar-se à terapêutica, além de impedir resistências aos fármacos.
A postura dos juízes não é concordante. Umas vezes decidem nesse sentido, outras não.
Há mesmo uma corrente para alterar a Constituição de modo a permitir o tratamento compulsivo.
A legislação permite o internamento compulsivo no caso de certas doenças psiquiátricas e na lepra. Quanto à primeira é compreensível, ao passo que relativamente à segunda é discutível. Talvez o efeito histórico da mesma tenha sido determinante. Convém salientar que era a única doença em que um ser vivo era considerado como morto.
As razões que levam alguns doentes a não se submeterem à terapêutica antituberculosa têm a ver com certos fenómenos aos quais a sociedade não tem dado a atenção adequada. Assusta-me, sinceramente, a tomada de medidas deste jaez, as quais poderão ter reflexos a outros níveis. Concordo que constituem um risco para os restantes cidadãos, mas, é preciso muita cautela com as medidas a tomar.

Já agora, queria contar uma pequena história. Era miúdo, talvez com 6 ou 7 anos. Brincava no cais da estação do caminho-de-ferro, onde o meu pai trabalhava. Um dia, uma ambulância estacionou junto à parede do cais com a porta traseira muito juntinha da mesma. A ambulância vinha acompanhada de um jipe da GNR. Os guardas mais as duas pessoas de bata branca da ambulância, em amena cavaqueira, perguntaram onde podiam almoçar. Lá indiquei uma tasca da Estação. Curioso, fui espreitar se estava alguém dentro da ambulância. Fiquei chocado com os rostos deformados de duas pessoas que, sentadas, olharam para mim com uns olhos muito tristes. Então os outros foram almoçar e aqueles dois não! Fui ter com o meu pai perguntando, porque estavam duas pessoas presas no interior da ambulância e o que é se passava. Lá me explicou que eram leprosos e que iam para a leprosaria. Foi a primeira vez que ouvi a palavra. Mas o que mais me entristeceu foi ter-me dito que a GNR andava à caça dos leprosos pelas aldeias. À caça? Pai!

5 comentários:

josé disse...

A história que conta é arrepiante- a vários títulos.

Mas a legislação que permite os internamentos compulsivos, é a chamada Lei de Saúde Mental que é de 1998! Antes, havia uma lei velha e revelha que era fonte de vários problemas, mas resolvia um que a actual não resolve:Os toxicodependentes e os alcoólicos não se encontram abrangidos pelas respectivas disposições.
Ora, é sabido que muitos dos problemas de violência doméstica ocorrem com pessoas afectadas destes males. O alcoolismo, então, é causa directa de muitas agressões e violências.
E não há modo de lhe pôr cobro, a não ser pelo recurso às disposições penais de afastamento de residência.

Assim, repare-se na estrutura da actual lei ( resumida ao essencial):

Nos termos do art. 12.°, n.°1, da Lei n°36/98, de 24 de Julho (Lei da Saúde Mental), o portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento médico adequado.
Requisito essencial do internamento compulsivo é, assim, a recusa de submissão do portador de anomalia psíquica ao necessário tratamento médico.
Preceitua, por outro, o art. 8°, nº2, do referido diploma que o internamento compulsivo só pode ser determinado quando for a única forma de garantir a submissão a tratamento e finda logo que cessarem os fundamentos que lhe deram causa.
Desta norma resulta que o internamento compulsivo, enquanto restrição a direitos, liberdades e garantias fundamentais, se encontra submetido a um estrito princípio de necessidade (art.18.° da Constituição da República Portuguesa).

Massano Cardoso disse...

Esclarecimento muito útil e perfeitamente compreensível. Obrigado.

Suzana Toscano disse...

É uma questão muito difícil, esta do justo equilíbrio entre os direitos individuais e os interesses colectivos, que se colocam a propósito das doenças e das situações relacionadas com a segurança, em geral. A polémica sobre a limitação de direitos individuais a troco de prevenção de ataques terroristas, a questão da videovigilância por todos os lados, em sucessivos alargamentos do conceito de defesa das pessoas têm mostrado bem como é difícil marcar as fronteiras. Será que não é preferível corrermos alguns riscos e ter os nossos direitos individuais respeitados, a ter uma sociedade asséptica, onde tudo é controlado e eliminados todos os perigos possíveis, a troco de sermos uns autómatos? Os acontecimentos em França vão certamente trazer de novo este debate...

Suzana Toscano disse...

Excelente comentário, Jorge Lúcio, a questão do HIV ainda é mais dramática do que os casos da lepra e da tuberculose a que se referiu o Prof. Massano Cardoso porque inclui a vigilância de comportamentos sem que haja sinais exteriores que identifiquem o mal. Mas também é verdade que a educação para a responsabilidade social é quase uma quimera, haverá sempre os que não a aceitam ou que a queriam noutros termos, e os Governos democráticos têm a maior dificuldade em impôr regras que não suscitem tanta oposição que a seguir os tirem do poder. Só quando o mal se mete pelos olhos dentro é que reparamos que devíamos ter começado há muito tempo e depois, depressa e bem, não há quem...Talvez isto nos sirva de lição para rejeitar os que actuam em função do curto prazo,iludindo as pessoas com as facilidades para que "possam dormir descansadas".

Massano Cardoso disse...

Caro Jorge Lúcio

No caso de alguém ser portador de HIV e que sabe que está contaminado é de facto um crime a sua transmissão, já que se faz essencialmente, mas não exclusivamente, por via sexual. Mas, se um indivíduo portador de HIV não aceitar a terapêutica mais adequada e, consequentemente, sofra as consequências a curto prazo, ninguém vai obrigá-lo a uma terapêutica “compulsiva”. No caso de alguém infectado com tuberculose que não quer ser tratado como devemos agir? Obrigá-lo ao tratamento para evitar que morra? Obrigá-lo a tratamento para que não infecte outras pessoas? É delicado o tema. Não esqueçamos que a tuberculose já existia antes de haver humanos e que desempenhou um papel muito importante na evolução da nossa espécie. Concordo com a Suzana quando afirma “não é preferível corrermos alguns riscos e ter os nossos direitos individuais respeitados, a ter uma sociedade asséptica, onde tudo é controlado e eliminados todos os perigos possíveis, a troco de sermos uns autómatos?”