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quinta-feira, 21 de abril de 2011

"A alma está no cérebro"

Ao fim de um longo dia de trabalho, pintado de cinzento e muito húmido, senti algo parecido como uma certa raiva a invadir-me. Liguei o rádio. Sintonizei algumas estações e parei numa quando ouvi o entrevistador a falar de Eduardo Punset. Lembrei-me de “A Viagem à Felicidade”, um livro fabuloso que li no ano passado. Como tinha ainda cerca de meia hora de caminho, e receoso de não ouvir toda a conversa, abrandei, cumprindo os limites de velocidade, e passei a ouvir uma voz pausada, propositadamente, suave e rica de ensinamentos. O entrevistador ia alimentando inteligentemente a conversa, substituindo, pontualmente, em português, algumas palavras tipicamente castelhanas que poderiam interromper a compreensão do seu pensamento. Gosto imenso de ouvir um autor depois de o ter lido e não consigo resistir de o ler quando o ouço. Uma combinação perfeita, ouvir e ler um pensador. Punset falou de muitas coisas complexas conferindo-lhes uma simplicidade comovente. A sua capacidade excecional para explicar certos fenómenos ou dar-lhes um significado provocou-me satisfação intelectual, quase que diria de felicidade. A raiva desapareceu como por encanto. Ao falar do seu livro, “A alma está no cérebro”, considerou que ambos são a mesma coisa, sendo assim, disse o interlocutor, então, os animais, também têm alma. Daqui começou a explicar que os monos, macacos, interrompeu o português, são capazes de mudar de opinião quando as circunstâncias o exigem, atitude que os humanos não apreciam muito bem, entre eles, claro está, e que estão na base de muitos conflitos e incompreensões. Os humanos são muito refratários a mudar de opinião e quando ouvem algo que não querem ouvir, não ouvem, as suas opiniões têm de predominar. São muito conservadores, não gostam que os “obriguem” a aceitar novas ideias. Explicou as bases neurológicas e comportamentais do fenómeno. Esta ideia já a tinha abordado há algum tempo a propósito dos debates em que muitas pessoas quando entram com ideias formadas e cristalizadas saem com elas reforçadas, recusando-se a integrar novos conceitos que possam por em causa os seus preconceitos. Uma forma de manter a tal coerência que, na perspetiva humana, é sinal de idoneidade e integridade. Os macacos não entendem assim, e ainda bem.
Recordo um debate em que um dos ouvintes me interpelou afirmando que havia uma contradição entre o que teria dito uns tempos antes a um jornal e as minhas palavras na ocasião. Curioso foi o facto de levar consigo apontamentos ou, até, mesmo a página do diário. Tive de lhe explicar que não havia qualquer contradição e, mesmo que houvesse, não havia qualquer problema, porque os únicos que não entram em contradição são aqueles que não pensam. Na altura não tinha ouvido o comentário de Punset, porque se o tivesse ter-lhe-ia dito que os macacos, afinal, conseguem ser mais espertos que muitos humanos.
Passados uns dias a publicação de alguns comentários num jornal associados a uma carta, que, devido ao conteúdo e forma, não deverá ter tido honra de publicação, mas se tivesse tido até seria um bom exemplo de elegia à estupidez, levam-me a pensar qual a vantagem em debater certos assuntos, sobretudo, quando os que aparecem estão muito mais preocupados com os seus problemas, o que aparentemente até é compreensível, mas só conseguem ouvir o que querem reforçando estereótipos cristalizados. Quanto ao resto, inovação, soluções ou mudanças não admitem porque os seus circuitos neuronais da compreensão estão irremediavelmente bloqueados. O que fazer? Pensei. Debater com macacos? Já não digo nada, às tantas até era capaz de ser mais agradável, e não é porque não conseguem falar...

2 comentários:

MariaCalado disse...

Perfeitamente de acordo. Por isso prefiro mil vezes as crianças... e há quem não entenda.
Talvez seja só cansaço, um imenso cansaço...
yet,
há adultos que são crianças.
E a esses há que reconhece-los e amá-los.
Curiosamente, algumas, repito, algumas, pessoas mais velhas são como crianças. Talvez por isso se entendam tão bem com elas.
Os avôs têm sempre uma ligação especial com os netos...

Bartolomeu disse...

No grande teatro da vida, vamos todos representando o papel que nos cabe, guiados pelas "deixas" dos actores, que conosco vão contracenando.
Constatamos com frequência, que apesar de a peça se encontrar (definitivamente) escrita ha muito tempo, o guião altera-se e ajusta-se a cada passo.
Alguns actores, mais aptos ao improviso, representam sob qualquer condição. Outros, de formação mais dramática e séria, assentam no pragmatismo a representação dos papeis que lhes cabem. Outros... comediantes, sátiros, servem-se das próprias fragilidades, para representar as fragilidades alheias.
São paradoxos, Senhor.
;)
É muito difícil encontrar situações onde alguém não nos crie alguma espécie de inconveniente.
;)