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segunda-feira, 20 de abril de 2009

“Morte medicamente assistida”

Começa, embora ainda um pouco timidamente, a falar-se da “morte medicamente assistida”. Quer queiramos quer não, vamos ser confrontados com esta realidade muito em breve, inclusive, já está a ser desenhado, nesta primeira fase, o denominado “testamento vital”, através do qual o titular estabelece o que pretende que lhe seja feito, ou não feito, em caso de situação clínica irreversível.
O debate ao redor da eutanásia irá ser muito intenso e problemático, com posições já perfeitamente descortináveis, a prever com base nalguns textos de opinião. Sinceramente é uma das áreas que mais me perturba. É certo que morrer com dignidade é um direito de qualquer um. O problema é saber o que se entende pela tal “dignidade”, que deve variar de pessoa para pessoa. Neste contexto, sou de opinião que deverá ser respeitado a vontade dos que, num determinado momento, não pretendam ser vítimas de medidas de sobrevivência a raiar o dito “encarniçamento terapêutico”. Neste ponto, não tenho qualquer dúvida, quer em termos pessoais, isto é, caso me encontre numa dessas tenebrosas e iníquas situações, ou caso me peçam para respeitar a ação da ceifeira da vida. Mas ter uma intervenção direta, ou seja, participação ativa no processo, julgo não ser capaz. Nunca ouvi, ao longo da minha vida, alguém a solicitar tal ato, dentro do contexto já referido, nem de perto nem de longe. Pelo contrário.
Já assisti a muitas mortes e nenhuma delas se acompanhou de apelo ao abreviamento.
Um dos passamentos ocorreu num dia marcado por um raro acontecimento astronómico, um eclipse parcial do Sol, que foi suficiente para provocar uma visível e estranha penumbra acinzentada. No velho hospital, o doente, deitado sob a longuíssima janela virada a poente, estava sôfrego de ar. As medidas terapêuticas não conseguiam acalmá-lo. Fumador de longa data, estava, desde há algum tempo, a afogar-se lentamente. Tinha consciência disso. Magro, de fácies esquálida e pele encarquilhada a ornamentar lábios e nariz violáceos, pedia-me desesperadamente ajuda através de uns olhos vivos e muito brilhantes, nos quais me pareceu ver-lhe a alma. Apercebi-me que a situação desta vez não era passível de controlo.
A meio da tarde, preocupado com o seu estado, acabei por ir vê-lo. Assim que me viu, os seus olhos vibraram e a respiração que já era mais do que ofegante ainda se acelerou mais. Aproximei-me. Sussurrou-me com extrema dificuldade: - Por favor, senhor doutor, ajude-me a respirar. Eu não consigo! Ajude-me. Não me deixe morrer! Ao mesmo tempo, a sua mão esquerda, fria, viscosa, decorada com longos dedos azulados, que mais pareciam baquetas prontas a tocar no tambor da morte, agarraram a minha mão. Não consegui dizer-lhe nada. Temendo que me ausentasse pediu, num tom quase que impercetível, para que não o abandonasse. Durante longos minutos, que não consigo contabilizar, estivemos a olhar um para o outro. Não consigo esquecer aquele olhar, tão ávido de vida quanto os pulmões estavam sequiosos de oxigénio. Passado algum tempo os olhos emudeceram e passou a respirar com tranquilidade. Entretanto, o Sol, que inundava a enfermaria através da longilínea janela, começou a acinzentar-se. Tinha iniciado o fenómeno que tanto queria seguir naquela tarde. Sai e fui para casa. Senti frio em pleno verão. Perturbado com o fenómeno da morte, virei ostensivamente as costas ao Sol...

1 comentário:

Suzana Toscano disse...

Caro Prof, acho que há coisas que só aprendemos com a experiência da vida, como tantas vezes aqui nos tem mostrado com a humildade de quem nunca se cansa de observar, meditar e aprender. Mas hoje confrontamo-nos pouco (felizmente?) com a morte, a maior parte das vezes nem conseguimos estar ao lado daqueles a quem queríamos dar a mão, mesmo que fosse para ver esse tal olhar suplicante e deseperado de quem se quer agarrar à vida. Em vez disso,ouvimos falar da morte na televisão, nas notícias, nas interpretações dos outros, nas histórias contadas, e imaginamo-nos naquela história, vemo-nos naquele filme e parece fácil dizer "se fosse eu, não queria". Mas não é fácil, seguramente, não sei o que será ter que decidir abreviar os últimos momentos, dos outros ou de si próprio, mas admito que haja situações deseperadas em que o instinto de sobrevivência cede ao desejo de descansar da luta pela vida. Em qualquer caso, não consigo sequer imaginar os termos em que uma lei qualquer possa desenhar estas situações.