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quarta-feira, 29 de abril de 2009

“Desviados”!

A tentativa de interpretar as causas das doenças numa base moralista não é de hoje. Constitui um perigo que não se restringe à própria medicina ou saúde, alastrando-se a todas as outras áreas. É óbvio, é mais do que evidente, que grande parte das doenças que nos afligem é devida ao nosso comportamento. Mas a afirmação, segunda a qual muitas das doenças são devidas a “desvios do comportamento”, levanta algumas interrogações e, até, perplexidade, traduzindo, obviamente, um pensamento doutrinário-filosófico que se assume como o “melhor” de todos.
Li numa crónica que “muitas doenças, sejam quais forem as causas, tais como o alcoolismo, a droga e a sida, são devidas a desvios do comportamento”. Claro que o comportamento está presente, tanto nestas como em muitas outras. O que me chamou a atenção foi a palavra “desvio”. Desvio de quê? Tem que haver algo que seja considerado “normal”. E aqui coloca-se a questão: - O que é que deve ser considerado como normal em matéria de comportamento? E quando é que o comportamento deverá ser considerado como desviante? Onde e quem é que estabelece a fronteira do “normal” e do “desvio” propriamente dito? Sinceramente, não consigo delinear as fronteiras. O que eu consigo detetar é que se pretende imputar ou até demonizar certas condutas numa base doutrinária-filosófica.
Os milhões de casos de sida e de portadores de vírus VIH por esse mundo fora, face à tal doutrina, são exemplos de “desvios de comportamento”! Os milhões de casos de alcoolismo por esse mundo fora são devidos a “desvios de comportamento”! Os milhões de casos de toxicodependência por esse mundo fora são devidos a “desvios de comportamento! Logo, se se portarem bem não irão beber a ponto de se tornarem alcoólicos; não irão consumir drogas a ponto de se tornarem toxicodependentes e não irão fornicar a ponto de se tornarem sidófilos. Pronto já está! Medidas simples, baseadas em “leis” morais construídas pelos homens e para os homens com o beneplácito e bênção de entidades superiores. No entanto, esquecem-se que os tais “desvios comportamentais” resultam em muitos casos de uma interação biológica-cultural que contribuiu, e muito, para a evolução da nossa espécie. As grandes conquistas da espécie humana devem-se, também, e talvez de forma predominante, a comportamentos ancestrais que hoje, com a introdução natural e expectável de regras sociais, são considerados como “desviantes”. Como impregnam a nossa essência enquanto espécie, é muito provável que não consigamos faze-los desaparecer e, quem sabe, se num futuro próximo – caso de graves cataclismos -, não possam constituir uma mais-valia, uma espécie de motor de sobrevivência?
A apetência para drogas, para o consumo do álcool e para outros comportamentos de risco está associada a fatores biológicos. Nalguns casos, os “tresmalhados” parecem ser mais afoitos, mais criativos, mais “loucos”, correndo muitos riscos, factos que poderão ter tido vantagem seletiva no passado. Se começarmos a enveredar pela moralização da doença, então é de esperar que o diabético e o obeso sejam considerados como “desviantes” de um comportamento alimentar saudável, um hipertenso seja visto como um desviado comportamental em termos de consumo de sal, um mulher com cancro do colo do útero como uma promíscua ou alvo de promiscuidade masculina, e um fumador como um pecador, entre muitos outros exemplos. Ao menos, os que andam por aí a propagar as suas opiniões acerca das causas das doenças, poderiam ser mais conclusivos ficando-se pelo pensamento agostiniano que diz que “todas as doenças são devidas aos demónios”. Assim sempre se podia transferir as causas para um outro nível. Mas não, querem transformar muitos seres humanos em “demóniozinhos”. Espero que os profissionais de saúde não sejam contaminados por este tipo de “vírus moralista”. Compete-nos, acima de tudo, respeitar as pessoas e evitar quaisquer juízos de valor sobre os seus comportamentos, pelo menos evitando chamar-lhes “desviados”, embora reconheça que há muito por fazer em matéria de prevenção. Os comportamentos deverão ser adaptados às novas realidades, mas sem lhes imputar quaisquer conceções moralistas.

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