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sábado, 15 de outubro de 2011

"Golpe de vista"

O que é que podem ter em comum uma carta de amor, uma prova de maratona e um plágio de um aluno do ensino superior? Respondo de imediato, "golpe de vista".
Ler cartas de amor não faz parte dos meus hábitos, mas não tenho culpa que algumas pessoas mais "descuidadas" permitam que os testemunhos da sua paixão acabem por cair entre papeladas e documentos diversos. Foi o que me aconteceu há tempos. Entrei numas "velharias" e deparei-me com um conjunto de postais e fotografias interessantes. Adquiri-os e, em casa, no meio daquele conjunto, saiu-me uma deliciosa prenda, uma carta de amor. Letra cuidada, escrita em 12 de dezembro de 1967, dirigida à amada, "gatinha carocha". Fiz algum esforço para encontrar o significado da associação entre "gatos e carochas", mas, prontamente, desisti, porque nestas coisas de amor, a lógica não funciona. De qualquer modo, reconheço que o rapaz tinha imaginação que não se limitava somente às formas de tratamento. Depois de relatos sobre as aulas, testes, frio e coisas miúdas fáceis de entender, o apolo pergunta à amada pelos exercícios. "Os teus exercícios correram bem? Não quero que te tornes numa menina exasperadamente trabalhadora, pois não vale a pena esforçares-te tanto. O que é preciso é calma e golpe de vista". Golpe de vista? Que belo conselho, e logo numa carta de amor! Não tenho dúvida que o seu autor deverá ter utilizado este princípio ao longo da vida. Julgo que este tipo de declaração é a melhor prova, já que foi proferida numa altura em que a alma está totalmente despida.
Abro o jornal e uma curta notícia chamou-me a atenção. Numa prova de maratona um atleta ficou em terceiro lugar, mas fez parte da prova de autocarro. O autocarro destinava-se a recolher as pessoas que assistiam à corrida. O atleta decidiu desistir e aproveitou a boleia, mas, ao fim de algum tempo, sentindo-se com forças, saiu e reiniciou a prova, conseguindo o terceiro lugar. Alguns colegas, não se tendo apercebido de terem sido ultrapassados, reclamaram. O herói “brônzeo” indignou-se com tamanha infâmia, mas não conseguiu levar avante a sua esperteza. Olhando bem, este atleta limitou-se a aplicar o princípio "golpe de vista".
O terceiro caso é paradigmático da falta de honestidade. Aluno do ensino superior, já licenciado, com vivência prática, utilizou um estudo publicado como sendo um dos trabalhos exigidos para ser avaliado numa disciplina. Trabalho muito bem feito, demasiado perfeito e profundo para a matéria em questão. Bastou copiar uma frase e o motor de busca fez o restante. Em 0,2 segundo foi identificado o original. Tudo igual, exceto nas referências bibliográficas, as quais ficaram muito reduzidas, presumo que, talvez, pelo trabalho que lhe dariam a copiar. Mais um caso de "golpe de vista".
Um jovem apaixonado a aconselhar que o mais importante é ter "golpe de vista", um atleta a usar o golpe de vista para aproveitar a boleia do autocarro e um profissional a apropriar-se do trabalho de terceiros, constituem três fotografias de falta de caráter que comprometem o crescimento da sociedade e que se multiplicam aos milhões por esse mundo fora. Importa, pois, estar atento, desenvolvendo mecanismos antigolpe de vista, abrindo bem o olho. Como é compreensível as cartas de amor são inacessíveis, mas um dia, mesmo passados quarenta e quatro anos, podem acabar por denunciar certas tendências. Quando o amor não consegue vencer o "golpe de vista"...

2 comentários:

MM disse...

De "golpes de vista" esta este pais cheio. E quando o sistema de justiça nao funciona, eh um mana para os chico-espertos...

Suzana Toscano disse...

É um problema cultural, talvez com origem (admito) na desconfiança que temos quanto à possibilidade de obtermos resultados justos.As leis são confusas, contorna-se a lei e, para o evitar, as leis tornam-se ainda mais confusas, permitindo que cresçam grupos inteiros de pessoas dedicadas a decifrá-las ou a contorná-las. Os impostos não são vistos como um retorno de benefícios à população, foge-se aos impostos. Os tribunais são lentos e incertos, usa-se isso para incumprir contratos, ou abusar das situações. Enfim, o "golpe de vista" é entre nós associado à capacidade de sobrevivência, por muitas "patines" de progresso económico e educativo que tenha havido. Noutros países, com outra cultura e outra confiança nas instituições, a chico espertice é tão mal vista que poucos se atrevem a tentar a sorte.