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quinta-feira, 6 de outubro de 2011

"Thug passion"

Fico surpreendido quando vejo as carruagens dos comboios pintados de graffiti. Um ato de vandalismo que desfeia e perturba os passageiros, pelo menos a mim perturba. Interrogo-me sobre o que leva as pessoas a praticarem estes atos. Quem serão, o que é que pensam, por que razão fazem isto e, ao mesmo tempo que faço estas reflexões, não posso deixar de reparar nalguma arte e imaginação. Que pena! Poderiam dedicar-se a atividades artísticas em vez de andarem a delapidar o nosso património.
Tudo começou em Nova Iorque. Ao fim de algum tempo criminalizaram este comportamento e as coisas melhoraram significativamente. Entretanto, depois do natural atraso, este fenómeno chegou até nós e em força. Os comboios suburbanos e regionais, assim como o metro, passaram a andar pintados.
Esta pequena observação nasceu de uma conversa com um jovem depois de ter visto tatuado no tórax duas palavras escritas com letras góticas. - Ah, o senhor tem uma tatuagem - Uma? Várias. Quer ver? Mostrou-me uma na barriga da perna, uma sigla disfarçada com toques de movimento. - Não pode andar à mostra, porque seria identificado como um dos autores de muitos graffiti que eu e uns amigos pintámos em comboios e metro. Aqui, comecei a pensar que poderia saber um pouco mais sobre os "writers", é assim que se auto designam os autores deste tipo de graffiti, mas tinha de ter muito cuidado na abordagem. Consegui dar guita ao jovem que começou a debitar muitas coisas. Entretanto ia tentando descobrir o que estava escrito na parte lateral do tórax, mas ele disse-me logo que não poderia dizer o que estava ali escrito, impossível. - Ah! Esta parece um s, aquela um i, a que está no fim um n e a primeira é que me escapa, será um n? "Nassion", soletrei. - Ai que o doutor ainda vai descobrir, e rematou: "passion". - Passion! Disse, fingindo algum espanto. - O pior são as quatro de cima. - Essas não. Essas não posso e nem quero. Vi que o rapaz estava mesmo incomodado em poder revelar a palavra, mas eu, manhoso, atrevi-me a dizer: esta parece-me um h, esta talvez seja um u, mas as outras duas não consigo, embora pareçam ser um t e um g. Letras góticas são difíceis de ler, mas engordadas e alteradas da forma como estavam, tornava-se quase impossível em as decifrar. Foi então que, provavelmente como um gesto de admiração pelo meu esforço, me disse: - Que vergonha senhor doutor dizer esta palavra. Olhei-o, muito admirado, e fiquei arrependido de ter feito as observações que fiz. Decidi não dizer mais nada, quando ouvi "thug", "thug passion". Não entendi a primeira palavra, nem o seu significado, quando o jovem disse, baixinho, "thug", "uma espécie de malandro, compreende"? Associei a frase com a sua atividade de "writer", guardando para mais tarde um esclarecimento mais aprofundado do significado da frase.
O jovem, com trinta anos, ficou aliviado depois de ter denunciado a frase e começou a explicar as atividades do seu grupo, cinco indivíduos que, por mero desafio e ansiosos de experiências adrenalínicas, conseguiram fazer desenhos em comboios desde a estação do Oriente, indo até São Bento, Régua, Pocinho, pintando durante a noite as carruagens. Mas as que os excitavam mais eram as pinturas nas carruagens do metropolitano, sobretudo em estações onde outros grupos nunca tinham conseguido, caso da estação do metro do Oriente, da do Rato ou da Belavista, com postos policiais nas redondezas. Depois de realizarem os seus feitos durante a noite, telefonavam aos amigos e a apreciadores da arte para verem passar os comboios. - Mas que prazer tinham vocês com isso? - O senhor não imagina o prazer que nos dava ver andar as nossas mensagens. Muito prazer. Garanto-lhe que é viciante. Antevendo o que iria perguntar, respondeu à minha pergunta silenciosa: - Não é por motivos antissociais, não, é apenas pelo gozo de desafiar as autoridades, a segurança e ver andar os nossos graffiti provocando os outros grupos, nós éramos os melhores, os mais arrojados, os mais criativos. - Mas teve problemas com a polícia? - Muitas vezes. E contou-me algumas cenas passadas no tribunal, sobretudo a última, quando a polícia foi buscá-los a casa. O juiz perguntou-me se estava arrependido. Eu disse-lhe que sim que estava arrependido do "crime", mas não estava daquilo que desenhei. O juiz parece que não compreendeu e fomos condenados a pagar mais de seis mil euros, para limpar as carruagens. A conversa continuou a propósito deste assunto, em que fiquei a saber muito sobre graffitti, "writers", forma de entrar no metro à noite, e muito mais coisas, estas relacionadas com outras tatuagens, nomeadamente uma cruz na região cervicodorsal, uma história muito rica e um pouco dramática.
O rapaz está reabilitado, trabalha, tem mulher, tem um filho, é um ótimo profissional e quer apagar a tatuagem "thug passion" ou, então, arranjar forma de a alterar com uma imagem de modo a riscar definitivamente, porque quanto à tatuagem da alma essa já está apagada.

3 comentários:

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Depois de ler a sua descida ao mundo dos graffiti, fiquei a perceber melhor o que leva esses "artistas" a pintar de graffiti comboios e não só. É gente que gosta da adrenalina de fazer o que não deve ser feito. Puro vandalismo.
No outro dia vi um programa sobre os graffiti dos comboios da linha de Cascais. Entrevistaram alguns estrangeiros que tinham apanhado o comboio para fazer a viagem Lisboa - Cascais ou ao contrário, já não me lembro. Estavam muito surpreendidos e desgostosos, queriam ver a paisagem marítima mas não conseguiam porque as janelas estavam tapadas de graffiti.

Suzana Toscano disse...

Em Londres há uma visita guiada à "arte de rua", é incrível a criatividade e a beleza de muitas delas, incluindo grafittis. Por cá também há algumas bem bonitas, a esconder as paredes desoladas de abandono, é pena que nuito dessa arte não possa ser aproveitada para embelezar o que precisa em vez de agredir e estragar quando os artistas estão para aí virados. Há tempos falou-se em legalizar essa arte urbana, mas receio que isso venha acabar precisamente com o estímulo de que aqui fala o Massano Cardoso, um desafio à lei e às forças da ordem, o gozo de pisar o risco e ver quem consegue ir mais longe. Isso de pintar também as janelas dos comboios nunca tinha visto mas é intolerável, há um sentido impositivo que não condiz com os gestos que proclamam a liberdade e a irreverência.

Bartolomeu disse...

O Fado, a canção típica portuguesa, canta segundo a opinião dos entendidos, o sentir, a alma do povo Português.
Mas, esta canção conhece muitos e diferentes palcos; desde as tabernas nas vielas típicas e antigas da cidade, passando pelas sofisticadas casas de fado, até às praças de touros nas quintas dos aritoscratas Ribatejanos, o Fado canta-se em diferentes estilos. Desde os mais castiços aos mais ligeiros, os estilos de fado cantam os amores correspondidos, os traídos, as vinganças, as venturas e desventuras de gente trabalhadora, de vadios, de ladrões e assassinos... histórias da desgraçadinha, de faca e alguidar e de navalha na liga.
De todas as formas, é o fado cantado que tão bem caracteriza este povo que na sua diáspora percorreu todo o mundo e nele deixou as suas marcas... umas dignificantes... outras nem tanto, contudo, foi sempre uma "thug passion" que nos levou, mundo fora, convertendo, ensinando, construíndo, violando, escravisando, roubando, etc, etc, etc.
É, quem sabe, este, o nosso fado...
;))