Ao envelhecer as recordações afundam-se no poço da memória. Olho e não encontro o que desejo.
Em pequeno era um bebedor de histórias. Recordo-me de uma em que o menino viu refletida no fundo do poço a imagem da Lua. Quis ir buscá-la, mas foi travado a tempo. Aprendeu a lição de que não se pode agarrar o que não existe, apenas contemplar. Contemplar é suficiente para compreender o sentido e a beleza das coisas, porque há coisas em que não se pode tocar. São assim as recordações, imagens de luas refletidas no fundo dos poços.
No livro Victoria, obra de um dos meus autores preferidos, vi, subitamente, imagens no fundo do poço das recordações. Hamsun descreve o salvamento de uma jovem que tinha caído da barcaça perto do porto. O herói acabou por ser vitoriado por todos os que assistiram e pela sua inatingível amada. A sensação de prazer aqueceu-o durante algum tempo em que esteve sentado na pedra, à entrada da caverna, até que a humidade da roupa o obrigou a mudar-se. Tudo se esfria, até a glória.
Foi então que me vi no rio, onde, nos fins de tardes de verão, com o sol meio esquinado, fazia o meu treino para aprender a nadar. Liberto dos momentos de mais calor, e sem mais ninguém, entrava na água e dirigia-me para uma pequena rocha, que servia de poltrona, submersa. Tinha de ir de lado, porque à frente havia um poço, bastava dar dois a três passos para ficar com o nariz dentro de água, o que me assustava. Já dava umas braçadas, mas apenas nos locais onde tinha pé. Conhecia muito bem os locais onde podia andar à vontade e os outros em que para os vencer teria de nadar. Nadava muito mal e sempre que a água entrava no nariz entrava em pânico. Depressa aprendi que nadando de costas não tinha esse problema, apesar de a água entrar nos ouvidos, mas por esse lado sabia que não morria afogado. A primeira vez que consegui atravessar o rio – que naquele local era muito estreito – deu-me uma grande satisfação. Coloquei os pés na poltrona subaquática e dei um tremendo impulso que quase que me levou até ao meio. Depois com uma dezena de braçadas, e sempre de costas, alcancei a margem. Só parei quando senti o rabiosque a raspar a margem lodosa e cheia de ervas. Descansava um pouco e retornava até chegar ao sítio de partida. Um dia, vi um rapaz, mais velho, meio destrambelhado, com gestos desajeitados e vestido com calções de jogador de futebol, atados na cinta com um cordão, a tomar banho esfregando-se com sabão. No sítio onde estava, a água batia-lhe um pouco acima do joelho, até que começou a aproximar-se lentamente da minha poltrona onde se sentou, continuando a ensaboar-se. Irra! O gajo roubou-me o lugar e agora não posso dar o meu impulso. Mas o rapaz não deveria saber que, se andasse três passos em frente, cairia num poço. Dito e feito, começou a andar e, subitamente, só via os braços a estrebuchar com a cabeça dentro de água. Pensei, porque era mais velho, que deveria saber nadar. Só quando comecei a ver as ondas de sabão a propagarem-se até ao meio do rio é que me apercebi que estava em dificuldade. E agora? O que é que vou fazer, eu que mal sei nadar? Aproximei-me lateralmente da rocha submersa sem problemas, passei para a frente, onde sabia que tinha pé, agarrei-me com a mão esquerda ao penedo e com a direita consegui apanhar a mão do rapaz, puxando-o com toda a força para junto de mim. Abriu a boca e deitou húmidos urros assustadores, com o cabelo preto todo penteado para a testa, mal se vendo os olhos, e sem um único sinal de sabão. Perguntei-lhe: - Olha lá, tu és doido ou quê? Tu sabes nadar? – Não! Não sei. – Não sabes? És uma grande besta. Berrei-lhe muito nervoso. Vai-te embora, vai-te embora desgraçado, antes que fiques aqui. E continuei a berrar e a chamar-lhe nomes até não poder mais. Meio atolambado, passou, mais em baixo, o rio a vau. Vi que enfiava a blusa e as calças e só descansei quando já subia a encosta em direção à vila. Mais tarde, soube que fazia parte do grupo de tolos, que todas as vilas e as aldeias tinham. Fraco de cabeça, como era o resto da família, a começar pela mãe, tinha a particularidade de andar sempre com uma revista ou um livro velho debaixo do braço. Muitos anos depois, aparecia-me à porta a pedir emprestados 25 tostões, ou cinco escudos, para poder tomar um café, porque ainda não tinha recebido a pensão. Esteja descansado senhor doutor, assim que receber eu pago! Mas, como era fraco de cabeça, esquecia-se ou fingia que se esquecia.
Muitas foram as peripécias que protagonizou, sozinho ou com outros tolos lá do burgo. Numa altura sofreu um desastre, foi atropelado, e andou mal durante muito tempo. Mais tarde, acabou por ser morto por um automóvel. Um distraído compulsivo que nunca mediu o perigo, nem podia medir, graças a desmioleira congénita. Fica o registo de um ar intelectual numa fácies de tolo, a revista ou um livro velho sempre debaixo do braço, o andar bamboleante e uma alcunha apropriada, “O silêncio”.
Em pequeno era um bebedor de histórias. Recordo-me de uma em que o menino viu refletida no fundo do poço a imagem da Lua. Quis ir buscá-la, mas foi travado a tempo. Aprendeu a lição de que não se pode agarrar o que não existe, apenas contemplar. Contemplar é suficiente para compreender o sentido e a beleza das coisas, porque há coisas em que não se pode tocar. São assim as recordações, imagens de luas refletidas no fundo dos poços.
No livro Victoria, obra de um dos meus autores preferidos, vi, subitamente, imagens no fundo do poço das recordações. Hamsun descreve o salvamento de uma jovem que tinha caído da barcaça perto do porto. O herói acabou por ser vitoriado por todos os que assistiram e pela sua inatingível amada. A sensação de prazer aqueceu-o durante algum tempo em que esteve sentado na pedra, à entrada da caverna, até que a humidade da roupa o obrigou a mudar-se. Tudo se esfria, até a glória.
Foi então que me vi no rio, onde, nos fins de tardes de verão, com o sol meio esquinado, fazia o meu treino para aprender a nadar. Liberto dos momentos de mais calor, e sem mais ninguém, entrava na água e dirigia-me para uma pequena rocha, que servia de poltrona, submersa. Tinha de ir de lado, porque à frente havia um poço, bastava dar dois a três passos para ficar com o nariz dentro de água, o que me assustava. Já dava umas braçadas, mas apenas nos locais onde tinha pé. Conhecia muito bem os locais onde podia andar à vontade e os outros em que para os vencer teria de nadar. Nadava muito mal e sempre que a água entrava no nariz entrava em pânico. Depressa aprendi que nadando de costas não tinha esse problema, apesar de a água entrar nos ouvidos, mas por esse lado sabia que não morria afogado. A primeira vez que consegui atravessar o rio – que naquele local era muito estreito – deu-me uma grande satisfação. Coloquei os pés na poltrona subaquática e dei um tremendo impulso que quase que me levou até ao meio. Depois com uma dezena de braçadas, e sempre de costas, alcancei a margem. Só parei quando senti o rabiosque a raspar a margem lodosa e cheia de ervas. Descansava um pouco e retornava até chegar ao sítio de partida. Um dia, vi um rapaz, mais velho, meio destrambelhado, com gestos desajeitados e vestido com calções de jogador de futebol, atados na cinta com um cordão, a tomar banho esfregando-se com sabão. No sítio onde estava, a água batia-lhe um pouco acima do joelho, até que começou a aproximar-se lentamente da minha poltrona onde se sentou, continuando a ensaboar-se. Irra! O gajo roubou-me o lugar e agora não posso dar o meu impulso. Mas o rapaz não deveria saber que, se andasse três passos em frente, cairia num poço. Dito e feito, começou a andar e, subitamente, só via os braços a estrebuchar com a cabeça dentro de água. Pensei, porque era mais velho, que deveria saber nadar. Só quando comecei a ver as ondas de sabão a propagarem-se até ao meio do rio é que me apercebi que estava em dificuldade. E agora? O que é que vou fazer, eu que mal sei nadar? Aproximei-me lateralmente da rocha submersa sem problemas, passei para a frente, onde sabia que tinha pé, agarrei-me com a mão esquerda ao penedo e com a direita consegui apanhar a mão do rapaz, puxando-o com toda a força para junto de mim. Abriu a boca e deitou húmidos urros assustadores, com o cabelo preto todo penteado para a testa, mal se vendo os olhos, e sem um único sinal de sabão. Perguntei-lhe: - Olha lá, tu és doido ou quê? Tu sabes nadar? – Não! Não sei. – Não sabes? És uma grande besta. Berrei-lhe muito nervoso. Vai-te embora, vai-te embora desgraçado, antes que fiques aqui. E continuei a berrar e a chamar-lhe nomes até não poder mais. Meio atolambado, passou, mais em baixo, o rio a vau. Vi que enfiava a blusa e as calças e só descansei quando já subia a encosta em direção à vila. Mais tarde, soube que fazia parte do grupo de tolos, que todas as vilas e as aldeias tinham. Fraco de cabeça, como era o resto da família, a começar pela mãe, tinha a particularidade de andar sempre com uma revista ou um livro velho debaixo do braço. Muitos anos depois, aparecia-me à porta a pedir emprestados 25 tostões, ou cinco escudos, para poder tomar um café, porque ainda não tinha recebido a pensão. Esteja descansado senhor doutor, assim que receber eu pago! Mas, como era fraco de cabeça, esquecia-se ou fingia que se esquecia.
Muitas foram as peripécias que protagonizou, sozinho ou com outros tolos lá do burgo. Numa altura sofreu um desastre, foi atropelado, e andou mal durante muito tempo. Mais tarde, acabou por ser morto por um automóvel. Um distraído compulsivo que nunca mediu o perigo, nem podia medir, graças a desmioleira congénita. Fica o registo de um ar intelectual numa fácies de tolo, a revista ou um livro velho sempre debaixo do braço, o andar bamboleante e uma alcunha apropriada, “O silêncio”.
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