Tnha uns dez anos e fiz parte do grupo da Visita Pascal na minha aldeia beirã. Em dia de gloriosa primavera, o Sr. Abade, devidamente paramentado, um mordomo com a cruz, outro com a caldeirinha da água benta, outro com a campainha e o homem do cesto dos ovos, calcorreavam a freguesia, povo a povo, caminho a caminho, casa a casa, da mais rica à mais pobre, da mais isolada do monte à mais central, junto à fonte ou à igreja. Para além de me ter sido distribuída a campainha, que anunciava a visita, também me coube o pelouro de tesoureiro, guardando, numa bolsa a tiracolo, os envelopes das ofertas ao Sr. Abade feitas em dinheiro pelas casas mais abastadas. Os mais pobres presenteavam o Sr. Abade geralmente com ovos, que o membro hierarquicamente mais baixo da comitiva zelosamente transferia para o cesto que transportava, a um sinal discreto do Sr. Abade.
A profusão das flores da primavera e o perfume das glicínias junto aos muros apareciam realçadas pelo sol brilhante da estação e davam um ar de incontida festa, que mais se acentuava à vista do tapete forrado a rosmaninho, junto às portas. E as escadas, decoradas a alfazema e a alecrim, anunciavam a alegria da visita. As casas, sujeitas à lavagem anual, mostravam o ar limpo e fresco do chão esfregado com sabão amarelo.
Na melhor sala da casa juntava-se a família: pais, filhos, avós e netos.
Boa Páscoa, Boa Páscoa, saudemos o Senhor que nos vem visitar, dizia o Sr. Abade. As pessoas ajoelhavam e a cruz passava de boca em boca para o beijo pascal. Por vezes o crucifixo era mesmo beijocado com grande profusão e intensidade, nada escapando, desde a cara, aos joelhos e aos pés de Jesus Cristo. Nos casos mais extremos, o mordomo tirava um pano branco do bolso e limpava o crucifixo para a próxima devoção.
Mesmo as casas mais humildes, em cima de uma mesa mais ou menos tosca, tinham sempre uma cruz, um folar, uma garrafa de vinho e ovos. Vai alguma coisa, Sr. Abade? Não, que temos caminho a andar. E tem aí os seus filhos; olhe que eles estão com apetite!... Ao sinal do Abade, o homem do cesto retirava ou não os ovos da oferta pelo serviço religioso. Como nem sempre os ovos passavam da mesa para o cesto, eu pensava como o Sr. Abade devia ser sábio e ter o especial dom de levar só os frescos, deixando na casa os que lhe pareciam mais retardados…Cheio o cesto, ficava à guarda de um paroquiano, que emprestava outro para as colheitas seguintes.
As casas mais ricas caprichavam na oferta. Na melhor toalha de linho, sempre o folar, mas uma profusão de bolos e doces e vinho fino, para acompanhar. Mas aí não havia ovos. Normalmente, um envelope com dinheiro. Que nem sempre eu era autorizado a recolher. Ia então pensando que estranho critério teria o Sr. Abade em mandar recolher uns e outros não. Talvez pretendesse apenas os mais recheados…Mas esse critério esbarrava no facto de os envelopes escolhidos serem dos menos abastados dos abastados, sendo poupados os dos mais ricos, com algum desgosto da minha parte...
Nessas casas, o grupo detinha-se. Vamos lá fazer as honras da casa, dizia o Abade!... E então alguns dos mordomos tiravam a barriga de miséria, dado que os pitéus expostos e o vinho do porto não eram manjar habituado a passar por aquelas gargantas.
O que mais me custava era acompanhar o Sr. Abade à cama dos doentes. E se recebiam o Sr. Abade com queixumes, despediam-se, parecia-me, mais reconfortados.
Por vezes, o homem da cruz não queria entrar numa ou noutra casa, sem eu saber bem porquê. E cochichava com o Sr. Abade. Que lhe dava ordem de entrar. Ao que eu me sujeito, ter que levar a cruz a gente amancebada…recalcitrava o homem, e tom baixo, mas de modo a eu poder ouvir.
A Páscoa era um dia festivo. Os tempos mudam e fica a nostalgia.
A profusão das flores da primavera e o perfume das glicínias junto aos muros apareciam realçadas pelo sol brilhante da estação e davam um ar de incontida festa, que mais se acentuava à vista do tapete forrado a rosmaninho, junto às portas. E as escadas, decoradas a alfazema e a alecrim, anunciavam a alegria da visita. As casas, sujeitas à lavagem anual, mostravam o ar limpo e fresco do chão esfregado com sabão amarelo.
Na melhor sala da casa juntava-se a família: pais, filhos, avós e netos.
Boa Páscoa, Boa Páscoa, saudemos o Senhor que nos vem visitar, dizia o Sr. Abade. As pessoas ajoelhavam e a cruz passava de boca em boca para o beijo pascal. Por vezes o crucifixo era mesmo beijocado com grande profusão e intensidade, nada escapando, desde a cara, aos joelhos e aos pés de Jesus Cristo. Nos casos mais extremos, o mordomo tirava um pano branco do bolso e limpava o crucifixo para a próxima devoção.
Mesmo as casas mais humildes, em cima de uma mesa mais ou menos tosca, tinham sempre uma cruz, um folar, uma garrafa de vinho e ovos. Vai alguma coisa, Sr. Abade? Não, que temos caminho a andar. E tem aí os seus filhos; olhe que eles estão com apetite!... Ao sinal do Abade, o homem do cesto retirava ou não os ovos da oferta pelo serviço religioso. Como nem sempre os ovos passavam da mesa para o cesto, eu pensava como o Sr. Abade devia ser sábio e ter o especial dom de levar só os frescos, deixando na casa os que lhe pareciam mais retardados…Cheio o cesto, ficava à guarda de um paroquiano, que emprestava outro para as colheitas seguintes.
As casas mais ricas caprichavam na oferta. Na melhor toalha de linho, sempre o folar, mas uma profusão de bolos e doces e vinho fino, para acompanhar. Mas aí não havia ovos. Normalmente, um envelope com dinheiro. Que nem sempre eu era autorizado a recolher. Ia então pensando que estranho critério teria o Sr. Abade em mandar recolher uns e outros não. Talvez pretendesse apenas os mais recheados…Mas esse critério esbarrava no facto de os envelopes escolhidos serem dos menos abastados dos abastados, sendo poupados os dos mais ricos, com algum desgosto da minha parte...
Nessas casas, o grupo detinha-se. Vamos lá fazer as honras da casa, dizia o Abade!... E então alguns dos mordomos tiravam a barriga de miséria, dado que os pitéus expostos e o vinho do porto não eram manjar habituado a passar por aquelas gargantas.
O que mais me custava era acompanhar o Sr. Abade à cama dos doentes. E se recebiam o Sr. Abade com queixumes, despediam-se, parecia-me, mais reconfortados.
Por vezes, o homem da cruz não queria entrar numa ou noutra casa, sem eu saber bem porquê. E cochichava com o Sr. Abade. Que lhe dava ordem de entrar. Ao que eu me sujeito, ter que levar a cruz a gente amancebada…recalcitrava o homem, e tom baixo, mas de modo a eu poder ouvir.
A Páscoa era um dia festivo. Os tempos mudam e fica a nostalgia.
Hoje, na minha terra, continua a haver visita pascal, mas sem o Senhor Abade. Saem diversas cruzes para despachar serviço e tudo acabar mais depressa, logo da parte da manhã. As pessoas têm outras coisas que fazer!...
Já não é o mesmo, dizem!...É verdade. Mas coisas melhores virão, diz-nos a esperança!...
Já não é o mesmo, dizem!...É verdade. Mas coisas melhores virão, diz-nos a esperança!...
Nesta boa esperança, uma Páscoa festiva e excelente para todos!...
4 comentários:
Que excelente retrato. Senti aí um pouco das visitas pascais envolvidas nos odores da primavera misturados com o cheirinho do cabrito a assar pelo meio da manhã.
Recordar é mesmo viver...
Eu a falar das coisas espirituais, e o amigo Ferreira de Almeida a lembrar o cabrito?
Mas tem toda a razão: haverá coisa que afague mais o espírito do que esse manjar à moda de Lamego?
É que, meu caro Amigo, para elevar o espírito nada melhor que esse odor e sabor tão temporais... ;)
Ate me parecia estar na minha aldeia beira ha uns bons anos atraz!
Bem haja por fazer recordar-me esses tempos!
Espero que tenham tido umas excelentes festas pascais.
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