“O Diário de Rutka Laskier” descreve o seu dia a dia numa cidade polaca de Janeiro a Abril daquele ano. Foram várias as passagens que me tocaram e não resisto a focar duas delas. Numa, questiona a sua própria fé ao afirmar, a propósito do curso dos acontecimentos da sua cidade: “Como irá ser isto? Meu Deus! Oh Rutka, já deves ter endoidecido, porque já estás a chamar por Deus, como se Ele existisse. Este niquinho de fé que costumava ter já se quebrou completamente. Se Deus existisse, Ele não teria seguramente permitido...” A outra foi durante a Aktion que teve lugar em 12 de Agosto de 1942, em que foram deportados inúmeros judeus para os campos de concentração. Nesse dia conseguiu escapar, fugindo a um destacamento para trabalhar e, no regresso a casa, atordoada com a “cerimónia”, descreve a seguinte atrocidade: “Vi como um soldado arrancou um bebé, que tinha somente uns meses de idade, dos braços da mãe, antes de esmagar a cabeça contra um poste eléctrico. O cérebro do bebé explodiu contra a madeira. A mãe ficou louca. Escrevo isto como se não fosse nada, como se tivesse habituada aos horrores da guerra, e ainda sou jovem, tenho catorze anos e ainda vi pouco nesta vida e já sou tão indiferente”.
Este livro deixa marcas e revela uma dos milhares de facetas ligadas ao nazismo e ao Holocausto, marca negra, mas muito negra da espécie humana.
Ao mesmo tempo que lia este pequenino livro, fui confrontado com uma posição que considero injusta. Alguns criacionistas, através do documentário “Expelled”, criticam a evolução como fonte de muitas doenças da sociedade chegando a afirmar que a mesma “leva ao ateísmo que por sua vez leva ao eugenismo, este ao nazismo e por fim ao Holocausto”. O que está em causa na afirmação é muito grave, porque não se pode imputar à evolução os males do nazismo! É preciso repudiar posições daquele género que em nada contribuem para a harmonia civilizacional. O objectivo é óbvio, tentar que o “desígnio inteligente” tenha o estatuto de ciência a par da teoria da evolução e que sejam ensinadas em paralelo, nem que para isso comecem a invocar perseguições ou movimentos conspirativos. Não é justo, nem pode haver comparações possíveis. Os crentes têm toda a legitimidade em acreditar nas diferentes criações do homem e do mundo (e são tantas!), mas não podem exigir colocar-se em pé de igualdade com as teorias que respeitam as regras científicas.
Ao ler a obra de António José Saraiva, “A Inquisição Portuguesa”, que consegui obter num alfarrabista, é fácil de concluir que as atrocidades cometidas, em nome de Deus, durante séculos não foram consequências da teoria da evolução. E já havia o conceito de “limpeza de sangue”, apenas para quem não descendesse de mouro, judeu ou condenado pela Inquisição! E ser condenado por esta era a coisa mais fácil do mundo. Mesmo fora dos seus temíveis cárceres, o medo produzido pela terrível instituição contaminava a atmosfera como sendo o mais perigoso poluente, e que está bem patenteada na seguinte citação de António Ferreira:
“A medo vivo, a medo escrevo e falo,
Hei medo do que falo comigo;
Mas inda a medo cuido, a medo cedo”
A falta de tolerância é um mal muito perigoso que nos nossos dias continua a revestir-se de particular acutilância. Claro que houve sempre humanistas cultivadores do respeito pelas culturas e religiões. A este propósito, a vida do humanista e teólogo flamengo, Nicolau Crenaldo, que chegou a viver e a leccionar em Portugal, na altura do reinado de D. João III, é aliciante, conforme tive oportunidade de ler no livro “Perro Cristão Entre Muçulmanos” de Joris Tulkens. Crenaldo é um exemplo de tolerância e de respeito na procura da verdade, numa época em que a Inquisição tinha garras bem afiadas. Amante das línguas, latim, grego e hebraico, acabou por perseguir até à exaustão o arábico e as suas filosofias, sempre na busca da compreensão. Desconhece-se como morreu, mas provavelmente deverá ter sentido na carne, e na alma, o ferrete da intolerância reinante...
Este livro deixa marcas e revela uma dos milhares de facetas ligadas ao nazismo e ao Holocausto, marca negra, mas muito negra da espécie humana.
Ao mesmo tempo que lia este pequenino livro, fui confrontado com uma posição que considero injusta. Alguns criacionistas, através do documentário “Expelled”, criticam a evolução como fonte de muitas doenças da sociedade chegando a afirmar que a mesma “leva ao ateísmo que por sua vez leva ao eugenismo, este ao nazismo e por fim ao Holocausto”. O que está em causa na afirmação é muito grave, porque não se pode imputar à evolução os males do nazismo! É preciso repudiar posições daquele género que em nada contribuem para a harmonia civilizacional. O objectivo é óbvio, tentar que o “desígnio inteligente” tenha o estatuto de ciência a par da teoria da evolução e que sejam ensinadas em paralelo, nem que para isso comecem a invocar perseguições ou movimentos conspirativos. Não é justo, nem pode haver comparações possíveis. Os crentes têm toda a legitimidade em acreditar nas diferentes criações do homem e do mundo (e são tantas!), mas não podem exigir colocar-se em pé de igualdade com as teorias que respeitam as regras científicas.
Ao ler a obra de António José Saraiva, “A Inquisição Portuguesa”, que consegui obter num alfarrabista, é fácil de concluir que as atrocidades cometidas, em nome de Deus, durante séculos não foram consequências da teoria da evolução. E já havia o conceito de “limpeza de sangue”, apenas para quem não descendesse de mouro, judeu ou condenado pela Inquisição! E ser condenado por esta era a coisa mais fácil do mundo. Mesmo fora dos seus temíveis cárceres, o medo produzido pela terrível instituição contaminava a atmosfera como sendo o mais perigoso poluente, e que está bem patenteada na seguinte citação de António Ferreira:
“A medo vivo, a medo escrevo e falo,
Hei medo do que falo comigo;
Mas inda a medo cuido, a medo cedo”
A falta de tolerância é um mal muito perigoso que nos nossos dias continua a revestir-se de particular acutilância. Claro que houve sempre humanistas cultivadores do respeito pelas culturas e religiões. A este propósito, a vida do humanista e teólogo flamengo, Nicolau Crenaldo, que chegou a viver e a leccionar em Portugal, na altura do reinado de D. João III, é aliciante, conforme tive oportunidade de ler no livro “Perro Cristão Entre Muçulmanos” de Joris Tulkens. Crenaldo é um exemplo de tolerância e de respeito na procura da verdade, numa época em que a Inquisição tinha garras bem afiadas. Amante das línguas, latim, grego e hebraico, acabou por perseguir até à exaustão o arábico e as suas filosofias, sempre na busca da compreensão. Desconhece-se como morreu, mas provavelmente deverá ter sentido na carne, e na alma, o ferrete da intolerância reinante...
3 comentários:
Meu Caro Amigo,
Este seu post trouxe-me à memória recordações antigas...
From the "Knowledge or Certainty", an episode from the 1973 BBC series "The Ascent of Man", transcribed by Evan Hunt:
"The Principle of Uncertainty is a bad name. In science--or outside of it--we are not uncertain; our knowledge is merely confined, within a certain tolerance. We should call it the Principle of Tolerance. And I propose that name in two senses: First, in the engineering sense--science has progressed, step by step, the most successful enterprise in the ascent of man, because it has understood that the exchange of information between man and nature, and man and man, can only take place with a certain tolerance.
But second, I also use the word, passionately, about the real world. All knowledge--all information between human beings--can only be exchanged within a play of tolerance. And that is true whether the exchange is in science, or in literature, or in religion, or in politics, or in *any* form of thought that aspires to dogma. It's a major tragedy of my lifetime and yours that scientists were refining, to the most exquisite precision, the Principle of Tolerance--and turning their backs on the fact that all around them, tolerance was crashing to the ground beyond repair.
The Principle of Uncertainty or, in my phrase, the Principle of Tolerance, fixed once for all the realization that all knowledge is limited. It is an irony of history that at the very time when this was being worked out there should rise, under Hitler in Germany and other tyrants elsewhere, a counter-conception: a principle of monstrous certainty. When the future looks back on the 1930s it will think of them as a crucial confrontation of culture as I have been expounding it, the ascent of man, against the throwback to the despots' belief that they have absolute certainty.
It is said that science will dehumanize people and turn them into numbers. That is false: tragically false. Look for yourself. This is the concentration camp and crematorium at Auschwitz. *This* is where people were turned into numbers. Into this pond were flushed the ashes of four million people. And that was not done by gas. It was done by arrogance. It was done by dogma. It was done by ignorance. When people believe that they have absolute knowledge, with no test in reality--this is how they behave. This is what men do when they aspire to the knowledge of gods.
Science is a very human form of knowledge. We are always at the brink of the known; we always feel forward for what is to be hoped. Every judgment in science stands on the edge or error, and is personal. Science is a tribute to what we *can* know although we are fallible. In the end, the words were said by Oliver Cromwell: "I beseech you, in the bowels of Christ: Think it possible you may be mistaken."
We have to cure ourselves of the itch for absolute knowledge and power. We have to close the distance between the push-button order and the human act. We have to *touch people*."
e depois
http://www.youtube.com/watch?v=8mIfatdNqBA
Obrigado,
Paulo.
PS: Um humilde tributo no centenário do nascimento de Jacob Bronowski.
Admiro, desde há muitos anos, Jacob Bronowski. Penso que fez a seguinte afirmação: "Toda a informação é imperfeita e temos que a tratar com humildade. Esta é a condição humana e também a mensagem". Por isso devemos ter cuidado em não ser intolerantes, porque podemos perder informação preciosa, mas, também não devemos ser demasiado tolerantes, porque podemos correr o risco de sermos vítimas de informação falsa. Só a posteriori é que podemos medir o nosso grau de tolerância. Um bom princípio que, infelizmente, é esquecido ou ignorado por muitos....
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