A Quaresma era sempre uma época difícil quando visitávamos os meus avós. Já contei aqui que do lado paterno eram católicos fervorosos e do lado materno eram republicanos anti clericais, sobretudo a minha avó, que classificava sumariamente de “patranhas” os rituais de jejum e abstinência.
Mas isso não nos dispensava de ir visitá-los nos feriados, domingos e Festas e,se no Natal a diferença era sobretudo na ausência de enfeites e símbolos na casa de uns, enquanto na dos outros o Presépio ocupava todo o tampo da secretária no escritório do meu avô, na Quaresma já as diferenças eram bem profundas. Logo a começar no comportamento, porque em casa de uns eram dias normais, de janelas abertas para entrar a luz e correrias pelo corredor comprido, na casa dos outros, mesmo em frente na rua, as salas ficavam na penumbra, o suficiente para não ter que se acender as luzes. Além disso na Semana da Paixão tínhamos que ir com roupas escuras, em sinal de luto por Jesus Cristo, e o meu avô paterno, que adorava ópera, tinha a telefonia silenciosa, era proibido correr, falar alto ou cantar. O lanche era frugal, sem o maravilhoso arroz doce com desenhos de canela ou a geleia com crosta de açucar cristalizado, que estalava quando enterrávamos a colher. Para entretar os netos sem fugir à solenidade da época, o meu avô sentava todos no chão e ia buscar a máquina de projectar os filmes Pathé Baby, umas bobinas pequenas, em metal preto, que guardava numa caixa de lata. Havia muitos filmes de fábulas, - a mais popular era o Lobo e a Cegonha, com a história em verso, “Em trincadeiral função/certo lobo glutão/ tão lambonamente comeu/que por pouco a vida não perdeu”, diziam as legendas, que ele lia sempre em voz alta, - mas na Quaresma ele só deixava ver A Vida de Cristo.Encaixava a primeira bobina no meio da máquina, atrás do vidro, puxava-se uma ponta do filme enrolado e ia-se prendendo laboriosamente até se entalar na patilha junto à manivela. A luz acendia e o meu avô começava a rodar o manípulo até aparecerem as primeiras imagens, depois de uns riscos pretos e o título em letras antigas. O primeiro era As Doze Tribos de Judá e havia mais 8 filmes, o que nós gostávamos mais era o que tinha as sete pragas do Egipto, e aí ele abrandava a velocidade da manivela, para se verem os gafanhotos. A debandada dos netos mais rebeldes dava-se por alturas da negação de Pedro, quando o galo cantava três vezes, empoleirado num muro em ruínas e Pedro se afastava a arrepelar os cabelos compridos, envergonhado da sua cobardia. Só os mais velhos é que viam até ao fim as Estações do Calvário, que ocupavam dois filmes, sabíamos de cor a cena de Simão Cireneu a ajudar a transportar a cruz, o momento em que Verónica limpa o suor e sangue do condenado e a cara dEle fica estampada no pano, José de Arimateia era o rico bondoso que, com um amigo, teve a coragem de dar sepultura a Jesus.
O meu avô contava a história sempre com emoção, como se fosse a primeira vez que via os filmes e cada cena o surpreendesse pela crueldade dos homens e pela força de Cristo.
É impossível não me lembrar desses dias da Quaresma, hoje só povoados de ovos coloridos e coelhinhos de chocolate, do mesmo modo que me lembro das deliciosas empadas de galinha que, ao almoço em casa da outra avó, desafiavam abertamente o jejum obrigatório imposto pelos católicos...
Mas isso não nos dispensava de ir visitá-los nos feriados, domingos e Festas e,se no Natal a diferença era sobretudo na ausência de enfeites e símbolos na casa de uns, enquanto na dos outros o Presépio ocupava todo o tampo da secretária no escritório do meu avô, na Quaresma já as diferenças eram bem profundas. Logo a começar no comportamento, porque em casa de uns eram dias normais, de janelas abertas para entrar a luz e correrias pelo corredor comprido, na casa dos outros, mesmo em frente na rua, as salas ficavam na penumbra, o suficiente para não ter que se acender as luzes. Além disso na Semana da Paixão tínhamos que ir com roupas escuras, em sinal de luto por Jesus Cristo, e o meu avô paterno, que adorava ópera, tinha a telefonia silenciosa, era proibido correr, falar alto ou cantar. O lanche era frugal, sem o maravilhoso arroz doce com desenhos de canela ou a geleia com crosta de açucar cristalizado, que estalava quando enterrávamos a colher. Para entretar os netos sem fugir à solenidade da época, o meu avô sentava todos no chão e ia buscar a máquina de projectar os filmes Pathé Baby, umas bobinas pequenas, em metal preto, que guardava numa caixa de lata. Havia muitos filmes de fábulas, - a mais popular era o Lobo e a Cegonha, com a história em verso, “Em trincadeiral função/certo lobo glutão/ tão lambonamente comeu/que por pouco a vida não perdeu”, diziam as legendas, que ele lia sempre em voz alta, - mas na Quaresma ele só deixava ver A Vida de Cristo.Encaixava a primeira bobina no meio da máquina, atrás do vidro, puxava-se uma ponta do filme enrolado e ia-se prendendo laboriosamente até se entalar na patilha junto à manivela. A luz acendia e o meu avô começava a rodar o manípulo até aparecerem as primeiras imagens, depois de uns riscos pretos e o título em letras antigas. O primeiro era As Doze Tribos de Judá e havia mais 8 filmes, o que nós gostávamos mais era o que tinha as sete pragas do Egipto, e aí ele abrandava a velocidade da manivela, para se verem os gafanhotos. A debandada dos netos mais rebeldes dava-se por alturas da negação de Pedro, quando o galo cantava três vezes, empoleirado num muro em ruínas e Pedro se afastava a arrepelar os cabelos compridos, envergonhado da sua cobardia. Só os mais velhos é que viam até ao fim as Estações do Calvário, que ocupavam dois filmes, sabíamos de cor a cena de Simão Cireneu a ajudar a transportar a cruz, o momento em que Verónica limpa o suor e sangue do condenado e a cara dEle fica estampada no pano, José de Arimateia era o rico bondoso que, com um amigo, teve a coragem de dar sepultura a Jesus.
O meu avô contava a história sempre com emoção, como se fosse a primeira vez que via os filmes e cada cena o surpreendesse pela crueldade dos homens e pela força de Cristo.
É impossível não me lembrar desses dias da Quaresma, hoje só povoados de ovos coloridos e coelhinhos de chocolate, do mesmo modo que me lembro das deliciosas empadas de galinha que, ao almoço em casa da outra avó, desafiavam abertamente o jejum obrigatório imposto pelos católicos...
Boa Páscoa a todos!
4 comentários:
Uma Santa Páscoa, Suzana.
Como é possível não apreciar uns ovos tão decorativos? São bonitos em qualquer época do ano. E quando as empadas de galinha são caseiras, confeccionadas pelas nossas Avós, com a massa a estalar, quem é capaz de lhes resistir?
A virtude está no meio, na ponderação, em sabermos viver as nossas convicções com vontade, desejo e moderação e com a serenidade suficiente para não embarcarmos em "tradições" sensacionalistas!
Senti o cheiro a canela, a colher a partir a superfície vidrada do doce e o silêncio que era imposto na altura.
Afinal quem é que sabe contar belas histórias? A Suzana, claro!
Ia hoje de manhã pacatamente a conduzir pelas estradas bordejadas de vinhas, batatais e pomares aqui do meu sítio, enquanto que, de indicador direito em riste ia pressionando a tecla do auto-rádio que tem inscrito "search" na esperança de sintonizar uma música que me soasse de acordo com o bocólico da paisagem. Eis senão, quando "poiso" num posto onde se desenvolvia uma conversa arrastada, pseudo-intelctual entre o professor Júlio Machado Vaz e uma jornalista que não "topei" o nome. Ia de novo pressionar a tecla, mas suspendi o movimento, esperei que o senhor professor terminasse o raciocínio que começara a desenvolver a propósito de algo que não apanhei de início. Dizia ele que a geração actual do pessoal que anda na casa dos cinquentas, se designa pela geração dos "sandwich"... hã!?
Mas depois explicou-se, dizendo que é uma geração que se encontra entalada entre a obrigação de amparar os pais, já bastante idosos e os filhos, que por diversos motivos deles tambem dependem.
Uns avós...católicos fervorosos do lado paterno e do lado materno, republicanos anti clericais...dois extremos que culminaram numa adorável neta-exímia-contadora-de-histórias.
Sempre achei que de contar uma história, qualquer um é capaz, agora... conseguir prender a atenção do leitor à narrativa... bom cara amiga, esse é um dom que raros possuem. Um dom que a meu ver, nasce de uma sensibilidade que faz parte do "pacote" original, não é um extra.
Mas, voltando à história do professor "Murcon", que designa a minha geração de "sandwich", que me parece mais de "entalados" apesar de o significado das palavras ser idêntico. Ainda fui uns kilómetros a reflectir sobre a metáfora e lá acabei por formular a minha teoria pessoal, sem desprimor obviamente pela do catedrático. A meu ver tem tudo a ver com o número "5", ou seja o número da década de nascensa, ou, número do meio. Recorredo à numerologia e partindo da soma dos números que compõem o ano de 1955, obtemos o resultado 2, que corresponde à característica de uma pessoa muito amorosa e compreensiva, a pessoa de personalidade 2 adora dar atenção aos outros.
Ora aí está, os da geração de "50" encontram-seirremediávelmente "entalados" entre o profano e o religioso, entre os pais e os filhos, entre o céu e a terra.
Margarida,os tempos mudam, e ainda bem, e hoje a Páscoa é muitas vezes reduzida aos ovos coloridos, tão bonitos e que também são uma bela forma de manifestar aos outros que nos lembrámos deles. Mas faz falta um avô que transmita aos mais novos o sentido da época,para que também eles possam reflectir e conhecer esta parte da História. Mesmo que as oiçãm enquanto almoçam um bom petisco!
Caro Massano Cardoso, uma pessoa lê os seus textos e ficamos inspirados para desfiar também as nossas memórias!
Caro bartolomeu, concordo com essa ideia da geração sanduiche, já a tinha ouvido há tempos mas o enquadramento que faz do número 50 parece-me mesmo muito interessante, já que temos este destino ao menos que os deuses nos tenham dotado de características que nos permitam levá-lo com alegria e afecto. Afinal,se eles precisam de nós, o melhor é que possam contar connosco!
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