(...) Importante seria que a desalavancagem da sociedade portuguesa não se centrasse numa abordagem exclusivamente financeira dos problemas e que os portugueses assumissem a necessidade e o benefício de reorientarem princípios e valores, comportamentos e hábitos, ambições e vontades na condução das suas vidas, incorporando esta mudança nas suas decisões e escolhas, com reflexos na vida colectiva, seja nas famílias, nas empresas ou nos serviços públicos. Um novo paradigma impõe-se, com cidadãos mais conscientes e responsáveis na alavancagem de comportamentos e atitudes que alterem o padrão de sociedade que temos vindo a construir. As crises sucessivas em que Portugal tem estado mergulhado, agora mais evidentes com a crise internacional, foram alimentadas por políticas que transmitiram sinais errados aos cidadãos, levando ao estabelecimento de uma cultura assente no facilitismo, sem restrições na forma de obter o valor máximo do sucesso individual e no encosto a um Estado paternalista, inibidor da livre iniciativa das pessoas.
E o Estado que não é rigoroso e exigente, que gere mal a coisa pública, que se impõe (ou não impõe) pela sua falta de autoridade que lhe advém da incompetência e do fracasso das suas funções, que tem de si próprio uma visão omnipresente e que sufoca a sociedade civil terá que rever os princípios e valores em que assenta a sua intervenção. Cidadãos mais conscientes e responsáveis exigirão do Estado a alteração destes comportamentos.
Se recuarmos à origem do elevado peso da dívida nacional no PIB, constatamos que a facilidade do acesso ao crédito, orientada por uma aspiração de ascender a um melhor nível de vida ou a uma vida melhor, perfeitamente legítima e atendível, fortemente expressa numa componente material sem a necessária sustentabilidade económica, facilitou a adopção de escolhas preferenciais pelo risco não calculado em lugar da prudência, pelo consumo em lugar da poupança, pelo lucro rápido em lugar do investimento e pela normalização em lugar do mérito. Esta mentalidade encontra-se enraizada nas gerações mais novas, que foram educadas por uma escola e um sistema de ensino que premiou a acessibilidade, sem cuidar da qualidade, onde o facilitismo e a indisciplina têm sido os campeões.
Mas não podemos ignorar que esta mentalidade e os benefícios ilusórios que gerou, agora trazidos à superfície pela crise, deixaram de fora uma parte da população portuguesa que, por circunstâncias e consequências várias, foi marginalizada da alavancagem financeira, excluída da socialização daqueles benefícios e remetida para a sua condição de pobreza e/ou privação de bens essenciais da qual nunca saiu ou, se saiu, a ela regressou. É uma parte significativa da população, cerca de 20% dos portugueses, aos quais se juntam agora os “novos” pobres, também conhecidos pela pobreza “envergonhada”, vítimas da crise e oriundos da sociedade que foi apanhada pela fúria do consumo.
Uma parte significativa das pessoas pobres pertencem às gerações mais velhas - muitas delas idosas e com estatuto de pensionista - está fora da vida activa e, também, excluída da participação da vida comunitária, num total desaproveitamento do seu saber e da sua formação cívica, com claro desperdício pela sua importante reserva de princípios e valores que agora precisamos de recuperar para fazer a mudança acima referida.
O aumento das desigualdades e o agravamento das disparidades sociais são o reflexo da negação pela sociedade e pelo Estado de princípios e valores essenciais ao bem-estar social e ao progresso colectivo.
Mas as dificuldades só se ultrapassam fazendo por isso, corrigindo os problemas e os erros que estiveram ou estão na sua origem e adoptando novas estratégias e reorientando comportamentos e escolhas. Mas é seguro que nem um caminho nem outro terão sucesso se as pessoas não tomarem consciência da realidade e não formarem uma vontade sobre como fazer para o futuro. Por necessidade imediata, as famílias serão, de um modo geral, obrigadas a redimensionar os seus estilos de vida e a alterar as suas prioridades, aspectos que se farão sentir pelas limitações financeiras impostas por reduções nos rendimentos disponíveis e pela insegurança face ao futuro, como é o caso da eventualidade do desemprego. Mas as famílias não estão ainda consciencializadas para o encolhimento do “Estado Social”, em particular no que se refere à redução das pensões que afectará as gerações mais novas e à imprevisibilidade de um conjunto de serviços ou cuidados, designadamente de saúde, continuarem a ser assegurados pelos dinheiros públicos.
Aos poderes políticos compete fazer a sua parte, falando a verdade sobre a crise e sobre o futuro, porque é esta, e não outra, a conveniência colectiva que se impõe. Há muito trabalho a fazer neste domínio, incluindo dar transparência e visibilidade à informação relevante para o conhecimento da verdade.
Sendo uma tarefa de toda a sociedade, é fundamental que a educação, numa concepção mais alargada de ética, cidadania e responsabilidade social e através dos vários núcleos em que a sociedade se encontra organizada – famílias, escolas, organizações – e dos vários canais de comunicação – comunicação social e redes sociais - ganhe um novo quadro de referência de princípios e valores que confira às pessoas confiança, autonomia e capacidade crítica.
De outra forma, continuaremos a perpetuar maus resultados no sucesso escolar, disfuncionalidades familiares e sociais, desmotivação e irresponsabilidade na assumpção de compromissos perante os outros e não sintonia entre cumprimento de deveres e obrigações e uso de direitos e benefícios. É importante que as famílias adeqúem o seu estilo de vida ao objectivo central do investimento na educação e formação dos filhos, e conformem o seu nível de vida às reais possibilidades do seu rendimento disponível, não esquecendo que se o futuro é portador de esperança é, também, portador de incerteza e esta deve ser acautelada.
Perdemos demasiado tempo em reformas e contra-reformas da educação, sem que tenhamos atingido os níveis de formação e qualificação de que o País necessita para se desenvolver de forma sustentada, não apenas em termos de competências profissionais, mas também em termos de formação cívica. (...)
Parte do artigo que escrevi para a "Revista Aspectos" da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Francesa, Edição de Março, dedicada ao tema "A desalavancagem da Sociedade Europeia".
2 comentários:
Grande post, cara Dr. Margarida!
Excelente visão daquilo que somos e daquilo que deveremos querer ser no futuro.
Sou da mesma opinião, e creio que todos os que tiverem para Portugal um projecto que vise torna-lo próspero, só poderão concordar e projectar esta sua visão, nas áreas em que se acharem inceridos.
Por vezes, em conversa com amigos, oiço-os dizer, com ar de comisseração: Portugal nunca irá a lado nenhum, porque é um país muito pobre. Respondo sempre que o problema não reside na pobreza, mas sim mna mania das grandezas.
Conheço famílias que apesar de muito pobres, sabem gerir os magros recursos de que dispõem e ainda, fazê-los render.
Temos multiplos exemplos de empresários que começaram do nada, e hoje conhecem o sucesso. Muitos deles de origem bastante humilde, sem qualquer tipo de formação quer académica, como profissional, mas que progrediram, porque se nortearam num projecto e acreditaram na sua força de vontade e capacidade de trabalho.
Hoje, dado a "evolução" no mundo empresarial, o modelo do empresário self-made-man, talvez não encontre campo propício para florescer. Mas a verdade, é que a par dessas transformações, também foi dada mais importância à formação profissional. Ainda estamos longe da situação ideal de possuirmos um "parque humano" de mão-de-obra especializada, mas penso que temos todas as condições, sobretudo o capital humano, para o conseguirmos. E penso também que pode ser neste campo, que Portugal tenha uma forte argumento de recuperação, a par de uma política de desenvolvimento indústrial e de apoio à iniciativa privada de produção, com o apoio imprescindível do estabelecimento com os países membros, de acordos para exportação.
Se assim não for... não vejo forma de os meus bisnetos e trinetos, virem a satisfazer a dívida que será contraída por estes dias aos nossos resgatadores. Seiscentos mil milhões de euros? Irra!
Margarida, obrigada por partilhar aqui uma parte da sua intervenção, talvez à força de ouvirmos análises como a sua se vá conseguindo abrir caminho para uma sociedade melhor e mais equilibrada. No entanto, temos que reconhecer que era muito difícil, quando começou e se impôs o boom dos créditos baratos, resistir individualmente à tentação, de resto largamente aconselhada pelos bancos e com o exemplo do Estado. Talvez em colectivo, e com o colete de forças em que nos metemos, seja possível regressar à sensatez e aos valores quase perdidos.
Caro Bartolomeu, creio que saldámos há pouco tempo a última prestação da dívida constraida há um século! Devagarinho, mas chega-se lá, talvez os nossos bisnetos, com a nossa ajuda, claro, atnedendo à longevidade que nos prometem :)
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