Sábado, véspera do dia em que o diabo anda à solta, saímos com o objetivo de passar a tarde não muito longe. A pretexto de ir tomar um café, o que não é natural depois de ter tomado um ao almoço, rumei até uma localidade onde julgava estar a decorrer uma sessão de "pintura de rua". Instintivamente já estava a ver algumas obras e a pensar em adquirir uma caso fosse capaz de matar a sede de arte. No local não havia nada. Dei mais uma volta e não vislumbrei quaisquer movimentos. Também não bebi o café. Comecei a andar sem destino à espera de poder esbarrar em qualquer coisa que desse sentido à viagem. Nada. O vazio dos acontecimentos era substituído por paisagens mais do que conhecidas e pelos verdes silenciosos e vulgares. Quando vi a placa, não hesitei. No último momento guinei em direção a Tibaldinho. Já lá tinha estado mas não vislumbrei nenhum sítio onde pudesse ver os famosos bordados. Ao chegar à povoação o deserto humano impôs-se e só vi um trabalhador num telhado. Não parei para lhe perguntar onde é que se poderia ver e adquirir os bordados. Enveredei por uma ruela estreita, que a meio ainda se estreitava mais, e onde consegui vislumbrar uma tertúlia típica das aldeias. Quatro mulheres de um lado, sentadas em bancos e nas escadas e duas do outro lado. Aproximei-me, mas fiquei na dúvida se passaria no local. Viram-me, levantaram-se, exceto duas, e começaram a acenar-me para passar enquanto empurravam os bancos para trás. Disse-lhes que não, que ia recuar, mas insistiram tanto que lhes fiz a vontade. Lentamente cheguei ao estreitamento da ruela. Parei. Abri a janela e agradeci a gentileza. Aproveitei a ocasião para lhes perguntar onde é que podíamos ver os famosos bordados. A mais nova apontou para uma senhora de idade, vestida de preto, e que estava sentada nas escadas com a cabeça apoiada nas mãos. A minha tia faz bordados. Ai sim? Podemos vê-los? Claro. Olhe bom senhor, pode parar o carro ali em baixo, um pequeno cruzamento de duas estreitas vielas. Assim fiz. Saí do carro, não fechei nem as portas nem as janelas e cumprimentei um velho de olhar distante e agarrado a um longo bordão que estava sentado num banco de pedra. Boas-tardes! Disse-lhe. Levantou a mão direita, empurrou o chapéu roçado, e respondeu num tom triste e distante, boas-tardes. Subimos as escadas estreitas e curtas da habitação e entrámos numa pequena sala onde tive de encurvar a cabeça com medo de tocar no teto. Casa muito humilde, acanhada, escura, dando a entender a condição social da senhora. Pediu desculpa pela pobreza e pela forma como a irmã, a senhora que tremia por todos os lados, e que apresentava um discurso de perturbação mental evidente, que, entretanto, se tinha dirigido à minha mulher, dizendo-lhe que era muito bonita, e que queria comer. Estava com fome. Está sempre naquilo, não sei o que fazer, pede comida a todo o momento. Depois, retirou de uma gaveta, vários bordados. Um deles, o primeiro, maior e muito bonito ficou-nos debaixo dos olhos. Mostrou-nos outras obras mais pequenas ao mesmo tempo que se queixava do trabalho que lhe dava a fazer os bordados e da falta de compradores. Ninguém comprava nada, os tempos não estão para isso. O melhor é não fazer mais nenhum. Os que lhe restavam podiam ir para os bisnetos, uma satisfação evidente no meio daquela pobreza de Cristo. Fui eu que optei pelo primeiro, o mais dispendioso. O preço teve de ser feito em escudos. Depois traduzi para euros a pedido da velhinha. Entreguei-lhe as notas devidas as quais agarrou com sofreguidão na mão esquerda e, quando íamos a sair, fez algo que já não via há quase quarenta anos, quando um fotógrafo à la minute nos tirou um fotografia na serra da Boa Viagem, beijou a nota de Santo António e benzeu-se. A senhora dos bordados não beijou as notas, mas benzeu-se, com discrição, em frente a um quadro que retratava um Sagrado Coração de Jesus. Tive a perceção de ter ajudado a resolver algo que lhe estaria a atormentar o seu velho coração...
Ando por aí à espera de encontrar algo, e quase sempre encontro. Hoje encontrei, um belo bordado de Tibaldinho, que vai ser centro de uma mesa e centro de uma pequena história...
1 comentário:
Excelente, caro Professor. E obrigado pelos retratos humanos que nos trouxe.
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