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terça-feira, 6 de março de 2007

“Ai que eu vou morrer!”

Hoje, li um resumo sobre o papel dos suplementos vitamínicos que me fez recuar muitos anos e recordar o comportamento de um tio. Antes de contar as suas histórias, convém afirmar que o uso de suplementos vitamínicos é um “perigo” já que aumenta a mortalidade. A análise de 68 estudos clínicos, envolvendo mais de 250.000 pessoas, demonstrou um risco acrescido, nada discipiendo, ao ponto do autor concluir pela total ausência de benefícios por parte dos suplementos. Claro que os produtores vieram a terreiro, afirmando que as pessoas morrem mais, não por causa das vitaminas, mas, por serem mais doentes. O autor do trabalho retorquiu, afirmando que setenta por cento eram pessoas saudáveis. Aliás, esta técnica não é nova. Recordo que a indústria do tabaco afirmou durante muito tempo (nem sei se ainda continua) que não havia provas científicas dos malefícios do tabaco, porque nunca tinha sido feito um estudo experimental sobre a matéria. Ou seja, obrigar pessoas a fumar versus não fumadores, como se fosse uma experiência animal! De facto nunca foi realizado, nem será, como é óbvio.
Voltando ao meu tio, recordo uma pessoa magra, com fácies esquálida, usando uns óculos com lentes rectangulares, e muito grossas, voz metálica e ar aristocrático. Quando ia a sua casa, em Lisboa, tinha de ter maneiras, cuidado com a linguagem, sentar com aprumo à mesa, olhando ao redor para saber quando poderia começar a comer. Duas coisas me chamavam sempre a atenção: o ritual de esmigalhar as pedrinhas de sal com a faca, colocando um montinho à frente dos pratos, junto dos talheres de sobremesa, e, depois, com uma minúscula colher de café, ia retirando pequenas quantidades, introduzindo-as na boca; e as cápsulas e drageias de várias cores, no lado direito, em fila indiana. À medida que comia, retirava uma, depois outra e ainda outra e outra. Não percebia bem aquilo tudo. Mas à medida que ia crescendo comecei a verificar que só “sabia” falar de doenças, perguntando se lá pela terra fulano ou sicrano ainda eram vivos. O pior é que não sabia quem eram as tais pessoas, mas como insistia, de vez em quando dizia que achava que o dito tinha morrido. Era um tormento quando lhe dizia isso. Ficava em pulgas e muito admirado dizendo: - O quê! O F. já morreu? Não me digas, ai que a seguir sou eu! E zás, lá enfiava mais uma drageia. Acabei, com o tempo, e à medida que ia crescendo, por verificar que se tratava de um genuíno hipocondríaco com crises de agorafobia. Tinha que aguentar, pachorrentamente, palestras sobre as virtudes das suas vitaminas que mamava a um ritmo avassalador com o objectivo de prolongar a vida e evitar as doenças. Quando entrei para a Faculdade de Medicina é que as coisas se complicaram, e logo no primeiro ano, pensando que já dominava a ciência hipocrática, fazia perguntas e mais perguntas verdadeiramente embaraçadoras, ficando impaciente com as minhas pobres e estúpidas respostas. Lá ia fazendo das tripas conhecimentos compatíveis com o conteúdo das mesmas! E engolia as respostas com uma sofreguidão semelhante às múltiplas e coloridas vitaminas. Então, quando cheguei ao quinto ano deveria pensar que era o mais ilustre e experimentado médico deste mundo. Com a mania de que deveria ter um aneurisma, levou-me, um dia em que tive de ir à capital, a passear pelos arredores de Lisboa, num passeio que poderia ter sido muito agradável, já que desconhecia aquela zona. Para um agorafóbico, retirar o carro da garagem e fazer uma viagem destas é obra. Lembro-me dos lugares por onde passei, dos quais destaco Colares, Sintra e outras localidades. Durante todo o périplo o “chato” do tio bombardeou-me com tantas e tantas perguntas, às quais tinha que responder como se fosse um experimentado cirurgião cardiotorácico. Mas as vitaminas e as suas virtudes vinham sempre ao de cima como se fosse panaceia para todos os males, e para provar lá ia retirando uma atrás de outra, enfiando-as pela goela abaixo. A sua fezada levou-o inclusive a obter uma representação qualquer em que não faltava a geleia real.
Se na altura soubesse destes efeitos, era capaz de lhe atormentar a paciência dizendo: - Oh tio! Então não é que se concluiu que os suplementos vitamínicos encurtam a vida?! Claro que dizer isto no meio da serra não seria uma boa ideia. Estou mesmo a vê-lo, com ar meio esgazeado, travar bruscamente o carro, soltar o seu riso característico, e dizendo : - Ai que eu vou morrer!! Por acaso ainda viveu mais alguns anos, mas se soubesse deste estudo era capaz de ter ido mesmo mais cedo, “provando” que as vitaminas encurtam a existência...

9 comentários:

BigX disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
BigX disse...

Ó caro Dr. Massano Cardoso, não me diga que vou ter de interromper o suplemento que me fornece uma dose reforçada de vitamina C durante 10 horas e que adquiro regularmente no LIDL a um preço verdadeiramente aliciante... :)

Massano Cardoso disse...

Ah! Ah! Ah! Gostei sobretudo do preço... Com que então anda a comprar vitamina C ao preço da chuva!

BigX disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
BigX disse...

É verdade! E pela expressão da senhora da caixa, devem fazer um efeito surpreendente...
Contudo não precisa de me dizer mais nada... vão do scanner directamente prá reciclagem :)

http://sdnshots.blogspot.com

Suzana Toscano disse...

caro Prof,não sei se esta magnífica prosa é para nos convencer a deixar de tomar vitaminas a torto e a direito ou para nos provar que o nosso corpo resiste a muita coisa...Afinal com que idade morreu o tio? E o factor psicológico, o facto de estar convencido de que tomava a poção mágica, não conta? Assim o meu amigo deixa-nos sem "muletas", veja lá como o Zorbian já desistiu da vitamina C? É bom que se mantenha agasalhado!

Massano Cardoso disse...

Caro Zorbian

Agora percebo porque é que anda a comprar cápsulas de Vitamina C + Zinco! A moça de amarelo (http://sdnshots.blogspot.com) a olhar daquela maneira é muito sugestivo. Só não percebo porque é não abrange o período das dez até ao meio dia, ou será que é até à meia-noite?

Massano Cardoso disse...

Cara Suzana

Podia ter vivido muitos mais anos se não fosse o tabaquito. Foi a causa da sua morte. Quando era pequeno não me recordo de o ver sem estar a fumar, mesmo a comer, e de noite dormia aos "soluços" entre "dois cigarros"! E ainda queria que as vitaminas fizessem efeito!

Suzana Toscano disse...

Está bem, Porf, está bem. Já vi que não vale a pena tomar vitaminas...