O nosso quotidiano é feito de múltiplos sentimentos e emoções, desde que nos levantamos até que a noite nos adormece, expressão de muitas coisas boas e de outras menos boas que acontecem, de grandes e pequenas conquistas e vitórias que nos alegram o coração, de alegrias e satisfações que nos animam, também de tristezas e desilusões que às vezes nos desalentam para avançar para o momento seguinte, de grandes e pequenas descobertas que nos confirmam ou não a razão, de contrariedades que testam a nossa paciência e tolerância, de notícias mais ou menos previsíveis e de imprevistos que desafiam a nossa bagagem de resposta e capacidade de improviso e de muitas outras...
Estas experimentações reflectem-se em diferentes estados de espírito que no final do dia, no final da semana ou no final de um qualquer tempo nos levam àqueles balanços do tipo "Hoje o dia correu-me muito bem...", "Hoje foi um daqueles dias em que não devia ter saído de casa...", "Esta semana foi de loucos..." ou "Isto assim não pode continuar..." ou, ainda, "A vida está-me a correr muito bem...".
Esta variedade de sentimentos e emoções contribui, em princípio, para a formação e para o ajustamento de um satisfatório grau de confiança em nós próprios e nos outros, que nos permite ter o controlo do meio envolvente com que nos relacionamos e assegurar um nível de bem estar interior e exterior indispensáveis à nossa estabilidade emocional.
É neste normal decorrer da vida que a liberdade, a esperança, a paz e a alegria pessoal – que queremos para a nossa a vida e para a vida daqueles que nos são queridos e que nos estão mais próximos – passam em muito pela nossa capacidade de perdoar. Trata-se do perdão enquanto vontade de deixar para trás um passado mais ou menos doloroso, de deixar de encontrar valor na raiva, no desprezo ou na censura, de abandonar o desejo de ajustar contas com alguém ou de magoar, de esquecer ou desvalorizar comportamentos ou atitudes que nos decepcionaram ou chocaram a nossa sensibilidade ou nos marcaram pela dor causada. Estamos perante situações que abalam a confiança e o bem estar interior de que cuidamos com tanto empenho.
A maior ou menor importância que a pessoa envolvida representa no nosso bem estar ou a sua proximidade à nossa vida determina naturalmente a maior ou menor facilidade de perdoar. Esta é uma dimensão que temos que respeitar, que pode determinar uma certa incapacidade de perdoar, mas que até deverá reforçar a vontade de o fazer.
Mas a verdade é que nós próprios ao perdoarmos acabamos por nos sentir melhor, pelo simples facto de que a compaixão, a bondade, o carinho e o amor estão sempre presentes no nosso coração, independentemente de como o mundo nos possa parecer no momento. Faz sentido falar de perdão quando a ofensa é praticada por alguém que nos está mais próximo, seja a pessoa amada, seja um familiar, seja um amigo, seja um colega de trabalho ou seja um sócio. Mas por isso mesmo, o perdão ganha, nestas circunstâncias, mais importância. Citando La Rochefoucauld "Perdoamos na medida em que amamos".
Se é verdade que à medida que crescemos nos vamos tornando cada vez mais exigentes e selectivos, também não é menos verdade que a nossa capacidade para perdoar vai melhorando, porque somos mais capazes de amar, relativizar e desvalorizar.
Perdoar, é mesmo algo que justifica pararmos um bocadinho para pensar...
7 comentários:
"Estas experimentações reflectem-se em diferentes estados de espírito"
Sempre que leio um texto publicado, a minha atenção concentra-se numa frase. Nem sempre é a que sintetisa o pensamento de quem escrve. Por vezes é aquela sobre a qual tenho opinião, por vezes é aquela sobre a qual desejo tecer opinião, por vezes é somente a mais "equilibrada no contexto da ideia expressa. Este fragmeno de frase, que assinalei, inclui uma compoenete que me é especialmente grata... os "estados de espírito".
Estes, que em minha opinião, sofrem a influência de tudo o que nos rodeia, seja físico ou espiritual, ditam peremptóriamente a relação com quem nos rodeia, assim como conosco próprios.
No romance de Saramago, a passarola do padre Bartolomeu (bolas!... denunciei-me :))era "movida" a vontades. Naquele romance, o padre ordenou a Blimunda que capturasse num recipiente as vontades daqueles que devido à peste que assolava Lisboa, partiam, para o tal assento etéreo, cantado por Luis V.C. Mas... Bartolomeu, ádquiriu na Holanda estes conhecimentos alquímicos. Ora bem, chegámos ao ponto fulcral da questão :) "Alquimia"! Esta ciência (se o Prof. Massano lê isto, brinda-me com uma cachaçada, de certezinha), esta ciência, liga o físico ao espíritual, numa dimensão dificilmente apreendida por quem trilha os caminhos, de olhar exclusivamente voltado para o material, para o ciêntífico, para o espiritual ou para o físico.
Quando se perdoa algo a alguem, penso eu, estamos acima de tudo a tentar perdoar-nos por algo em que participámos e que sentimos dentro de nós não estar de acordo com o equilíbrio universal. Algo de intuítivo nos impele a que restabeleçamos esse equilíbrio. É bom, muito bom sentirmo-nos capazes de restabelecer esse equilíbrio, independentemente de lhe chamarmos perdoar, reconciliar, restabelecer, seja o que for. É esse sentimento que nos faz crescer individualmente, garantindo-nos a estabilidade emocional necessária para enfrentar sem medos o inesperado do dia a dia.
Agradço-lhe Margarida de novo, a sua humildade e o seu desejo de partilha.
Caro Bartolomeu
Não lhe dou cachaçada nenhuma! Eu até aprecio o seu pensamento e análise...
Foi brincadeira Sr. Professor :)
Apesar de valorizar a cachaçada oportuna, dada por quem tem a autoridade necessária para o fazer, sobretudo que saiba revestir essa cachaçada do necessário bom senso e do imprescindível e fraterno abraço.
Quantas vezes sinto que seria bom ter alguém que me aplicasse a cachaçada rectificadora ...
Caro Bartolomeu
A necessidade de estarmos bem connosco próprios, de nos sentirmos equilibrados interiormente e no relacionamento com os outros, leva-nos, como diz, a procurar o reequilibrio. É algo que tem muito que ver com os afectos, que queremos dar mas que também queremos receber, que não queremos perder. Perdoar - "reconciliar" ou "restabelecer" - é um processo que nos faz sentir melhor. A bondade, o carinho e o amor que habitam no nosso coração impelem-nos â reconciliação.
"...o equilíbrio universal. Algo de intuítivo nos impele a que restabeleçamos esse equilíbrio"diz Bartolomeu. Difícil tarefa, a de procurar o equilíbrio universal,deve ser por isso que é tão difícil perdoar, no sentidomais exigente da palavra. Não se trata de esquecer, ou de aprender a viver com algo que nos ofendeu, desiludiu ou magoou profundamente, essa é a parte mais fácil e, de certo modo, já traz algum desse equilíbrio, pelo menos o aparente. Perdoar é apagar o ressentimento do nosso coração, é aceitar de novo quem causou o dano, sem reservas,com a inocência de quem não espera que se repita. Ora, isso tem que ser bilateral, o perdão tem que ser entendido pelo ofensor, se não o tal equilíbrio não se restabelece. Quando assim não acontece, perdoar é eliminar a reacção, é conseguir não desejar mal, não querer a desforra, enfim, é uma pacificação interna, um domínio do próprio instinto, mas o mal fica feito à mesma, está lá a quebrar confiança, a ditar o afastamento. Isso é perdoar ou é só esquecer?
São imensas as dúvidas de existência que a Drª Suzana, muito pertinentemente aqui coloca. Pertinentes ainda porque são comuns à generalidade dos seres humanos. Pois é... a faculdade de raciocínio tambem tem contras, um deles é a necessidade permanente de julgar as nossas e as atitudes alheias. Eu peço desculpa por insistir em trocar a palavra "perdoar", por "entender".
Na origem da maior parte das quezílias que provocam os desentendimentos, que por sua vez originam a magnânima atitude do perdão, estão invariávelmente situações de mal-entendido. E "perdoar", volto a pedir desculpa pela insistência, mas parece-me que é uma palavra cujo conteúdo ultrapassa a nossa dimensão humana e espiritual. Pessoalmente sou apologista do entendimento pelo diálogo, no momento em que os desentendimentos se ocorrem e, correndo sempre o risco de poder ser tido como teimoso, não "desgrudo" sem esclarecer as situações, mesmo que o resultado não seja o desejado.
Suzana
Também estive a meditar sobre a sua reflexão, muito bem sentida...
De facto perdoar não é um simples - aparentemente simples - acto de esquecer ou de aprender a viver com algo que nos ofendeu ou magoou. Na vontade de perdoar está a libertação de ressentimentos perturbadores de um bem estar interior e de um bem estar, porventura, com o mundo, mas que implica que a outra parte comungue desse gesto, no sentido de, pelo menos, se auto-retratar relativamente ao seu comportamento ofensivo e sentir satisfação e gratidão no gesto de conciliação e confiança.
Concordo que "se o mal fica feito à mesma" então não há verdadeiramente um perdão.
Eliminar reacções negativas ou de defesa, não querer mal, evitar, são também atitudes positivas mas que podem não ser suficientes para remover ressentimentos!
Estamos cheios de ressentimentos provocados por desentendimentos, que em boa verdade seriam quase naturalmente ultrapassados ou esclarecidos se as pessoas contassem sempre com uma margem ("folga") para perdoar e tolerar!
Caro Bartolomeu
Meditei também sobre a sua "insistência".
Tem razão quando aponta que "Na origem da maior parte das quezílias que provocam os desentendimentos, que por sua vez originam a magnânima atitude do perdão, estão invariavelmente situações de mal-entendido".
Não me parece que haja qualquer troca entre o significado das palavras "perdão" e "entender". Revejo-me no seu "entendimento".
Quando há desentendimentos que não se esclarecem pode haver ressentimentos. Chegados a este ponto, depois de passado um tempo normal para o seu esclarecimento (claro que nunca é tarde para esclarecer!), cai-se num tempo de desilusão. E depois, vem o esquecimento ou o perdão...
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