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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

D. João III

As novas tecnologias são um encanto. Aderi ao Kindle, aos livros eletrónicos, comprei alguns de forma ultrarrápida e adquiri muitos de forma gratuita. Destes últimos destaco “Noites de Insomnia offerecidas a quem não póde dormir” de Camilo Castello Branco, autor que já não lia há muito tempo. O livro, de 1874, tem a ortografia própria da época, facto que só por si me fez recordar a sua substituição por formas mais modernas. Será que na altura houve quem se insurgisse contra o novo acordo?
Li as curtas crónicas, mas houve uma, D. João III, a quem Camilo apoda, erradamente, de “O Príncipe Perfeito”, em que é feita a descrição dos últimos dias de vida, da morte e do funeral do rei com base na transcrição de “Trabalhos de Jesus” de frei Tomé de Jesus, que andou em Alcácer-Quibir com o D. Sebastião, tendo sido ferido, feito prisioneiro e recusado o resgate. Numa das passagens, tirando as três longas horas em que esteve a confessar-se, antes de morrer, sinal de que deveria ter muitos pecados, frei Tomé de Jesus, ao amortalhá-lo, confessa que “quando o descobrimos estava mais feio, e mais preto do rosto, e mãos, o mais sujo, e o mais nojento, e em fim o mais mortal e terreno, que eu vi outro, e eu tive aquelle pelo mór espectaculo...”. Camilo, na parte final escreve: “Está visto que o principe perfeito (novamente o erro do cognome), flagello dos israelitas, morreu bastante fedorento, revessando postema esverdinhada e envolto em uma camisa chagada e esqualida, que fez engulhos ao bom do frade”. Não poupa críticas quanto à raiva que D. João III tinha contra os judeus, “diabetes que se dessedentava em sangue”. Não sei se queimou trinta mil inocentes, como ele afirma, mas seja como for foi um perseguidor implacável de judeus.
Ao ler este texto, lembrei-me de imediato da estátua do rei, que está no pátio dos Gerais, como testemunho da instalação definitiva da Universidade em Coimbra. Mas há mais. Há alguns anos, recebi um telefonema de Jerusalém, de um colega israelita que queria vir a Portugal com a nora e o neto, e que apreciaria muito visitar a Universidade. Coloquei-me de imediato à sua disposição, e, no dia aprazado, levei-o a ver a cidade. Fiz, como é natural, o percurso turístico, tendo ficado satisfeitos, exceto quando lhes mostrei o museu dedicado à arte sacra. Aqui, a senhora manifestou um profundo incómodo e pediu-me se poderíamos abandonar o local, porque não conseguia compreender como era possível adorar alguém pregado na cruz. Fiquei surpreso e perguntei-lhe: - Compreendo, mas não consegue visualizar ao menos algum sentido estético? Olhou-me com olhos expressivos e tristes, dizendo que não conseguia ver beleza na dor, na tortura. Saímos de imediato, cogitando com os meus botões que já tinha metido a pata na poça. Eram judeus! Tinha-os convidado para almoçar, e fomos até ao Buçaco, pensando como iria responder às perguntas sobre a gastronomia da região. Omiti, deliberadamente, o leitão da Bairrada, e disse umas tretas quaisquer focando mais a doçaria portuguesa.
Enquanto estávamos no pátio, que acharam formidável, olharam para o D. João III e perguntaram-me quem era e o que tinha feito. Expliquei-lhes algumas coisas, mas omiti o seu “frenesim que rebentava em raivas contra os judeus”. Encantados, tirámos várias fotos sempre com o “feio” por detrás. Só espero que não se tenham lembrado de saber quem foi o tal D. João III, porque, quanto à obra de Camilo, que poderia denunciar a situação, não terão, com toda a certeza, tido acesso. Espero eu, porque se souberem, decerto, já terão feito em mil bocados as fotografias do rei “piedoso”, que de piedoso não tinha nada e de “perfeito” muito menos.

2 comentários:

Suzana Toscano disse...

Então agora já não vai procurar preciosidades nos alfarrabistas? Mas esta estreia electrónica, pelo menos, n´~ao nos priva das suas descobertas. Lá se trocou o cognome, coitado do D. João II, a ver a sua pricipesca perfeição confundida com a desapiedade do homónimo real...E realmente é muito complicado "censurar" as nossas referências, já me aconteceu uma coisa parecida quando falava de Portugal a um árabe e contei a conquista do território por D. Afonso Henriques!

Bartolomeu disse...

Por acaso, discordo das opiniões do Senhor Professor Massano Cardoso e da Senhora Doutora Suzana Toscano.
Na minha optica, a história é para ser contada sem desvios, nem contornos, no mínimo, estaremos a assumir a realidade de uma época, mas que hoje somos um povo civilizado, que soube evoluir desses régios tempos e que tem todo o gosto em confraternizar com os povos que perseguiu.
Mudam-se os tempos... mudam-se as vontades!
;)))