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domingo, 27 de fevereiro de 2011

Dignidade

Domingo de manhã. Levantei-me com duas horas de atraso face ao habitual. Um pequeno prazer que tem o condão de me convencer que consigo descansar. E eu acredito! Tudo feito de forma lenta. Um ritual de conveniência que ajuda imenso a dar sentido aos domingos. Fui até à livraria-café convicto de que só conseguiria comprar o jornal e, depois, lê-lo em qualquer outro sítio, mas não, havia lugares, e eu aproveitei.
Enquanto lia as notícias, passavam por mim muitas pessoas que eu não pude deixar analisar. Uma senhora, elegante, caminhava como se fosse uma pluma, de telemóvel ao ouvido, até que terminou a conversa com beijinhos, uma forma muito portuguesa. Tirou o casaco com alguma teatralidade, olhou para a banca dos livros e, em seguida, retirou um do escaparate. Nunca tinha visto um andar como aquele, sedutor, parecia um manequim em plena livraria. Cabelo dourado escuro a esconder ligeira perda da frescura da juventude, mas mesmo assim muito atraente. Mergulhei os olhos nas entrevistas e na miséria nacional, mas tive de interromper a leitura para me recordar de uma rapariga, a Rosarinho, que, em jovem, na minha terra, era uma criança de calções, treinava o andar, carregando listas telefónicas à cabeça, percorrendo um fio imaginário, a lembrar os artistas de circo, para obter aquele jeito de andar com o qual pretendia catrapiscar algum africanista. Mas esta não, nunca deverá ter necessitado de usar tal expediente. Sorri desta velha lembrança de mais de meio século. Entretanto, uma outra senhora com uma cara pouco simpática, demasiado magra, cheia de arestas e ângulos - parecia mais uma representação viva da arte cubista -, cabelo curto, negro de azeviche e empastado de brilhantina, de escuro e saia curta a mostrar o que não devia, e a nadar dentro de botas negras, pavoneava-se indiferente aos olhares. Outra, uma senhora, na casa dos trinta anos, vestida de vários tons de castanho e com cabelo castanho-escuro ondulante emanava simpatia a rodos. A sua mímica facial conseguia neutralizar o provérbio de que quem vê caras não vê corações. Era impossível que não tivesse um bom coração. Outras, mais vulgares e menos discretas, não conseguiram desviar-me a atenção, exceto uma senhora com quarenta e muitos ou cinquenta e poucos anos. Entrou direita e um pouco acelerada. Vestido simples, cheio de flores, chapéu à Zé do Boné, óculos de lentes castanhas e uma pequena bolsinha na mão esquerda. Olhei de relance para a sua face e chamou-me a atenção o bronze, sugestivo dos sem-abrigo, dos que sofrem, com as maçãs do rosto salientes e precedidas por escavações típicas de carência nutricional, doença crónica ou infecciosa prolongada. Os lábios mergulhavam no interior da boca, revelando falta dos incisivos. Comecei a conjeturar sobre o seu passado e o seu sofrimento, porque era uma amostra viva de dor e tormentos. Não quis continuar a pensar no caso e preferi ler mais umas notícias. Como se aproximava a hora de almoço, levantei-me e fiz o meu percurso rotineiro pelas salas, um hábito que me leva a ver se há novos livros. E havia, os funcionários mudam constantemente. Desta feira vi vários livros de Boris Vian, onde havia apenas um. Ri-me de alguns que li em tempos. O tipo era mesmo louco a escrever. Já tinha dado as costas a Vian, quando ouvi uma voz timbrada de tabaco e de sofrimento: - Desculpe. Pode ajudar-me? Antes de olhar pressenti que deveria ser a mulher bronze. Voltei-me e a senhora continuou: - Estou muito doente, muito doente. E mostra-me o braço direito como se fosse possível ver o que quer que fosse. Vi apenas uma fita de Nosso Senhor de Bonfim, azul. Olhei-a e as minhas primeiras impressões confirmaram-se. Calado, esperei que dissesse mais alguma coisa. – Podia ajudar-me a encontrar um livro policial? Eu vejo mal e estou muito doente. Fui às urgências na quarta-feira e meteram-me uma coisa no braço. E voltou a mostrá-lo, com algum cuidado, talvez querendo proteger-se. – Um livro policial? Bom, vamos ver. – Mas quero de um escritor norte-americano. – Aqui não há muitos livros policiais, mas ali, no canto, pode ser que se encontre algum. Desloquei-me e disse-lhe que havia alguns de Agatha Christie. – O senhor podia ver quanto é que custam? – Este custa 10,90 euros, este 12,60. – Mas eu não quero a Agata Christie. Quero um escritor norte-americano. – Olhe, está aqui um que parece ser interessante, “As Cinco Aventuras de Sherlock Holmes” e custa sete euros. Deve ter feito as contas e concluído que seria um preço razoável. – Está bem. Vou levá-lo. Também não adiantei que o autor não era norte-americano. Agradeceu com aquela voz metálica, profunda e gasta pelo sofrimento da existência e desejou-me boa-tarde. – Sabe, estou muito doente, e vou ler esta tarde o livro.
- Uma boa-tarde para si também!
Uma pequena história que não aprofundei, nem tinha que aprofundar, mas estou convicto do meu juízo, alguém a quem a vida foi madrasta, mas que consegue reunir algumas forças para manter a dignidade, dignidade reforçada esta tarde pela leitura de um livro policial, não de um autor norte-americano, também não importa, mas de um escritor médico que, à sua maneira irá aliviar o seu sofrimento, da alma e do corpo.
Uma lição de dignidade sabe sempre bem, venha de onde vier...

9 comentários:

Catarina disse...

Também gosto de observar as pessoas e imaginar como são ou deixam de ser, que pretendem com os seus maneirismos pouco naturais, os seus olhares, o tom da sua voz. Essa senhora do livro policial surpreendeu-me. Ainda pensei que devido à sua doença lhe fosse pedir dinheiro. E não. Manteve a sua dignidade. Se eu estivesse presente ter-lhe-ia indicado um romance policial de uma escritora americana, Donna Leon, que já vive há muitos anos em Veneza mas que ainda escreve em inglês. A melhor leitura para descontrair num ambiente veneziano! O caro prof. está sempre no local certo, na hora certa para ajudar alguém! Será a sua karma! : )

Massano Cardoso disse...

Estou convencido de que todos podemos "estar no local certo e à hora certa para ajudar alguém". É uma questão de estarmos atentos. Nós é que não nos apercebemos...

Massano Cardoso disse...

Catarina

Com o seu comentário já ganhei qualquer coisa. Não conhecia Donna Leon e agora "obrigou-me" a lê-la. E depois, depois logo se verá, até porque escreveu que a senhora vive em Veneza e de Veneza tenho algumas histórias! Quem sabe se não me vai despertar alguma? Nunca se sabe. Aqui está: "estar no local certo e à hora certa"...

Catarina disse...

Eu sabia, caro Prof, eu sabia que mais tarde ou mais cedo iria “aprender” algo comigo! : )))))

Massano Cardoso disse...

Eu gosto muito de aprender. Ai de mim se não aprender qualquer coisa em cada dia que passa...

Catarina disse...

Eu sei! : )

Suzana Toscano disse...

É mesmo um Karma! Há pessoas assim, que inspiram confiança a quem está a precisar de ajuda, deve haver uma forma secreta de comunicação que denuncia essa disposição para acolher.Veja lá se a senhora procurou a ajuda dessas loiras e morenas que passeavam no café livraria? Não, foi direitinha ter consigo, ela lá sabia, deve ter o instinto de sobrevivência tão treinado que capta logo o porto seguro! Uma bela história, como sempre.Um abraço!

jotaC disse...

Acho que é o "ar" de tranquilidade do caro Professor Massano Cardoso, bem como o seu poder de observação que atrai estas situações...

Inês Massano disse...

"...ela lá sabia, deve ter o instinto de sobrevivência tão treinado que capta logo o porto seguro! Uma bela história, como sempre."

Sim, sem dúvida um verdadeiro porto seguro, Dra. Suzana! Um beijinho.