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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Infâmia

Vi-a uma vez num espetáculo no teatro Gil Vicente. Não me foi difícil aperceber que deveria sofrer de uma patologia cardíaca grave. O seu aspeto assim o denunciava. A cianose era evidente; testemunha de uma situação clínica que lhe deve provocar sofrimento e ansiedade. Sorria e comunicava com prazer, prova do seu amor pela vida. Respeito as pessoas, mas quando vejo certos comportamentos sinto algo difícil de explicar. Tento colocar-me nessas situações mas não consigo vislumbrar coragem para as enfrentar. Despertam-me um enorme e profundo respeito. Ajudam-me a compreender melhor a minha vida e a de outros. Sem essas pessoas nunca seria capaz de conseguir encontrar significado e valor da própria vida. São os meus professores e filósofos favoritos. Não precisam de escrever, de dissertar ou de ensinar. Basta olhá-los e ver as faces mais belas da vida, onde a vontade de viver e a lição da força de almas de anjos alcançam o acme da nobreza da existência humana. 
A natureza humana é complexa, oscila entre e solidariedade total e uma descriminação impossível de classificar. Respeito a solidariedade e abomino o desprezo com que alguns seres humanos tratam os seus iguais. Não admito certas atitudes porque é a negação do conceito que tenho de Humanidade. Há pessoas que não fazem parte deste coletivo, pertencem, quanto muito, a uma forma de "humanidade" com "h" minúsculo. Nunca irão saborear o prazer do que é estar num patamar mais elevado em que o respeito, a admiração e o amor pelo próximo constituem uma tríade dourada que nos ajuda a compreender melhor o conceito do divino, seja o que for, mas que, com toda a certeza, é o melhor antídoto para qualquer tipo de dor.
Expulsaram-na de um espaço onde pensava poder encontrar alguma fruição, aproximando-se daqueles a quem a natureza poupou ao sofrimento. Um direito, e até um dever, além de um exemplo a seguir por outros, que em circunstâncias análogas querem pertencer também ao mundo. Olharam para a sua fácies e interpretaram a cianose como se fosse uma manifestação de alguém que se mete no álcool. Um erro crasso. A ignorância voa mais livre do que qualquer águia, só que esta sabe o que é ser nobre no seu reino. Muitos seres humanos não são nobres, nem tão pouco conseguem entender o seu conceito. Mesquinhos, maus, pobres e incapazes de compreender ou tentar saber a realidade dos fenómenos que os cercam, destroem num ápice qualquer alma desejosa de viver. Matam almas e desprezam os mais elementares direitos. São seres humanos? São, mas são deficientes, não obstante a aparente normalidade morfológica que o tempo e a doença acabarão por destruir com mais ou menos violência.  
Apetecia-me convidar os protagonistas da infâmia de que foi vítima a doente sofredora de uma síndrome pouco frequente a entrar num cemitério de uma cidade próxima. Depois, ao sair, deviam ler o que está escrito no pórtico, "Mors ultima ratio” (A morte é a razão final de tudo). Espero que nessa altura tenham, mesmo que por breves instantes, a perceção de que não são diferentes daqueles que julgavam ser inferiores ou desprezíveis. É o meu maior desejo.

3 comentários:

Suzana Toscano disse...

É sempre muito fácil julgar os outros pela aparência, quantas injustiças se cometem com este impulso que tão facilmente agrega as pessoas?

Bartolomeu disse...

Para a Senhora do relato, e muitos mais, não será o fim da vida, o pior estágio das suas existências, mas sim, o espaço de tempo que medeia desde o nascimento até à morte.
Tal como um rio, que desde a nascente até à foz, é obrigado a embater contra rochedos, a despenhar-se de altas penedias, a afundar-se em vales tenebrosos e só depois de vencer todas essas dificuldades, pode finalmente espraiar-se num vasto mar ou num plácido lago.

MM disse...

Prof Massano sempre atento às "desgracas" do ser humano e a nao esquecer a visita ao cemiterio de Aveiro...