Neste post, Pinho Cardão caricaturou com precisão muitas das primeiras reações à detenção do sr. eng. José Sócrates.
Nos comentários ao post fui desafiado a dizer o que pensava. Creio que apelaram aos modestos conhecimentos do jurista sobre os "princípios-base em tempo de detenções".
Deixei passar uns dias até que a espuma pudesse assentar um pouco para admitir que posso ser lido sem a perturbação das paixões que Pinho Cardão tão bem caricaturou.
Aqui vão algumas notas ao correr das teclas. Não estritamente sobre os casos mais recentes e em especial sobre o caso do sr. eng. Sócrates, mas tomando-os como pretexto para discorrer topicamente sobre a justiça que temos, o ambiente onde com dificuldades se move e sobre a instrumentalização a que constantemente se vê sujeita:
(a) escrevi aqui, vezes sem conta, que o problema do nosso sistema de justiça não é tanto a falta, insuficiência ou imperfeição da lei, contrariando assim os discursos, que se foram tornando quase risíveis, proferidos nas rotineiras sessões solenes de abertura do ano judicial pelos mais destacados atores do sistema. Se há incoerências e dificuldades de aplicação da base normativa do sistema elas derivam sim das constantes alterações legislativas a compasso de cada clamor social, num aproveitamento populista dos sentimentos estimulados por uma opinião publicada quase sempre mais preocupada com a culpa, o castigo, do que com a prevenção ou a redenção.
(b) a melhoria da justiça depende sobretudo dos operadores - como se diz agora. Isto é, depende da qualidade, da boa formação académica, profissional, ética, de quem aplica a lei. Caso a caso, isto vai-se tornando claro. Sobretudo quando o País acorda para a realidade de uma condenação de 17 anos de prisão para punir o corruptor ativo do negócio da sucata, em flagrante contraste com a aparente benevolência com que os juízes tratam os mais hediondos crimes de sangue!
(c) ao invés do que tenho ouvido e lido por aí, a desconfiança do cidadão na justiça não encontra causa na intensidade fraca do indirizzo político. Isso são tretas de "advogados"-comentadores que nunca vestiram a toga ou de analistas que não sabem o que é e como funciona um tribunal. O princípio basilar da separação de poderes impõe ao governo, e especialmente ao ministro da justiça, um reduzido papel de intervenção, sob pena de a autonomia e independência das magistraturas passar ser uma falácia. Ministro/a da justiça que faça constantemente proclamações sobre a eficácia da justiça a propósito deste ou daquele caso concreto - sempre um caso mediatizado! -, contribui para a ideia de que as magistraturas, em especial a do ministério público, agem de acordo com opções de política criminal definidas segundo o princípio da oportunidade por quem, conjunturalmente, exerce o poder executivo, e não com a lei ou com a sua convicção perante factos que não admitem dúvida. Isto é o pior que pode acontecer para a credibilidade da justiça! Pior do que isto, só mesmo não o entender.
(d) muito me apraz registar que vai crescendo a consciência de que a justiça feita nos pasquins e nos espaços de verdadeiro realty show televisivo, conduz à justiça do pelourinho, capaz de destroçar vidas muito para lá da existência daquele que é, de preceito e sem possibilidade de defesa, condenado na praça pública antes sequer de ser formalmente acusado, muito menos julgado.
Muitos cidadãos antes do sr. eng. Sócrates foram vítimas de verdadeiros linchamentos mediáticos, sendo quase nenhuns os notáveis que se insurgiram contra a aniquilação brutal da dignidade de pessoas concretas, algumas das quais nem sequer chegaram a ser julgadas, tendo outras sido declaradas inocentes. Hoje são mais aquelas personalidades que já entendem que a absolvição nestes casos praticamente nada repõe pois o mal está feito e a reputação destruída. Ainda bem que são mais. Lamentável o hábito de se levantarem tão tarde.
(continuará…)
8 comentários:
Este caso, está a trazer à tona imagens e reações vindas dos vários quadrantes sociais.
Hoje, assistimos nos telejornais à imagem deplorável de um ex- PM e ex-PR à saída da "visita-surpresa" ao detido preventivamente, que tentava de uma forma que se percebia claramente não ser já a mesma; reflexo evidente da idade avançada.
Mas não classifico deplorável a imagem, a atitude, ou a demora de raciocínio para encontrar as respostas que se notavam desarticuladas. Deplorável foi a inssistência das questões que lhe foram postas, o desejo evidente e alarve dos jornalistas em "sacar" respostas "bombásticas" ao questionado. Deplorável falta de ética, deplorável oportunismo e até um certo ar de gozo perante a notória deterioração das capacidades de raciocínio, contenção e articulação de uma pessoa que, melhor ou peor, desempenhou em momentos económicos, sociais e políticos difíceis, cargos da mais alta responsabilidade.
Jornalismo no seu pior.
Caro Ferreira de Almeida:
Excelente reflexão de cidadania.
De facto, os autos de fé não acabaram, nem mudaram de natureza, apresentam-se apenas de uma nova forma.
Talvez pior ainda, porque já não é preciso o povo deslocar-se a S. Domingos para ver a procissão e injuriar os condenados, porque a procissão é levada a casa; como bem diz, a justiça é "feita nos pasquins e nos espaços de verdadeiro realty show televisivo"...", onde são promovidos "verdadeiros linchamentos mediáticos, sendo quase nenhuns os notáveis que se insurgiram contra a aniquilação brutal da dignidade de pessoas concretas, algumas das quais nem sequer chegaram a ser julgadas, tendo outras sido declaradas inocentes".
Ou melhor, insurgem-se quando se trata dos amigos.
O julgamento mediático assumiu foros tais que, das afirmações ao longo de horas produzidas, se poderia concluir que a justiça dos tribunais deveria estar ao serviço do tempo mediático, que é este que marca o interesse dos cidadãos, melhor, dos ouvintes ou dos telespectadores.
Porque na hierarquia dos direitos, o direito abstracto à informação, não importando qual ela seja, se sobrepõe a todos os outros, e o poder soberano dos tribunais se deve submeter ao quarto poder da comunicação social, uma subversão que vai fazendo escola. E que cria produto para todos os pasquins deste mundo.
Parabéns pelo seu depoimento, Ferreira de Almeida.
Este caso é a confirmação de um segundo PREC, não é?
É impossível agir sobre a comunicação social em termos regulamentares, esta faz aquilo que o público (o verdadeiro dono disto tudo) quer. E era "devido" ao público um julgamento sobre a falência do estado que ele sustenta e a forma como se trafulhavam as contas públicas. Que seria um julgamento completamente diferente. Agora temos alguém a ser acusado de algo com o público a quere-lo culpado por qualquer coisa, um pouco à semelhança de Al Capone e a fraude fiscal, e ninguém vai aceitar que seja dado como inocente.
2010 pôs uma segunda revolução em curso, não sei se o estado português lhe vai sobreviver (acho que não), mas devemos esperar mais coisas deste tipo, incluindo o questionar da justiça, do edifício legal português no seu todo e na justificação de ter uma existência própria. Um pouco como o caro JMFA faz neste post.
Há um hiato enorme entre o país e o estado para resolver e vai haver muitas mais "contas para ajustar" com o passado no sentido de que esta resolução não acabe em separação. Acho que isto não vai ficar por aqui e como todos os "processos revolucionários em curso", não vai ser bonito..
Mais importante que o julgamento
Que o estado da Nação,do governo
É assinalarmos que neste momento
Faz anos o nosso Amigo fraterno.
Parabéns meu Amigo Cruz
Por mais este aniversário
Que tenha muitos anos de truz
Sempre fiel ao breviário!
;) ;) ;)
Obrigado, caro Bartolomeu!
Então que conte muitos e muitos, caro João. Em boa forma, sempre em boa harmonia com a física e o físico, e também com a esgrima. E deixe lá a agremiação vermelha que só lhe dá desgostos...
Abraço
Bom, mesmo que à boleia da poesia do Bartolomeu e a coberto de tema como o que dá mote ao post, aqui vão também os meus parabéns, João Cruz. Ao menos com esta justiça não quero faltar.
Obrigado a ambos. Caro Pinho Cardão, relativamente à nação encarnada, é para ver como eu sou religioso. Caro JMFA, não pode faltar com a outra também. Senão, onde é que nós vamos beber o aquele conhecimento abstracto sobre o direito que não se encontra em lado nenhum?
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