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sábado, 25 de outubro de 2008

“Matar o tempo”...

Tempo. A verdadeira dimensão que nos faz sentir pequeninos. Fonte de ansiedade e de medo, poço de saudades, altar de alegrias, pão da tristeza e sol da esperança. Tudo depende do tempo. O tempo comanda as vidas de uma forma penosamente lenta na infância e na juventude, lesto na vida adulta e veloz como uma lebre na velhice como que a fazer troça. E, um dia, misteriosamente, acena-nos com despeito, remetendo-nos para um estranho silêncio.
Ao ler “A Filha de Homero”, de Robert Graves, tropecei numa página em que se destacava uma pergunta que me incomodou: “Quanto tempo dura um dia quando se está morto?”. Interrompi a leitura e reflecti durante alguns segundos sobre o sentido e significado desta interrogação. A resposta surgiu instintivamente: “Dura uma eternidade”.
A eternidade vive-se, afinal, num curto período de vinte e quatro horas, mas é preciso estar morto. O tempo mata-nos, oferecendo, em troca a eternidade silenciosa.
Ao longo da nossa existência é muito comum ouvir a expressão “matar o tempo” ou faço isto ou aquilo “para matar o tempo”. Matar o tempo como se fosse possível matá-lo!
Baudelaire, no seu poema “Quarto Duplo” ( O Spleen de Paris), classifica-o de velho hediondo acompanhado do “seu cortejo demoníaco de Lembranças, Mágoas, Espasmos, Medos, Angústias, Pesadelos, Iras e Nevroses”. Cada segundo que passa martiriza-nos solenemente dizendo: “Eu sou a Vida, a insuportável, a implacável Vida”. Para este autor maldito, o tempo empurra-o “como se fosse um boi, com o seu duplo aguilhão. Arre, burro! Sua, escravo! Vive, danado! Mas Baudelaire tinha os seus períodos depressivos, esquecendo-se dos belos e deliciosos momentos que o embriagavam de forma ímpar.
Hoje, verifico que muitas pessoas passam grande parte da sua existência a “matar o tempo”, à espera de serem mergulhados na eternidade silenciosa. Exemplos? Horas a fio sentados perante televisores desmiolados, dias sucessivos num marasmo paralisante, segundos, minutos e horas esvaziados de sentido. O que fazer? Agarrar o tempo, mesmo que se escape como água entre os dedos; viver o tempo com desejo a recordar as pulsões sexuais da juventude, saborear o tempo como se tratasse da mais concupiscente iguaria; partilhar o tempo como um gesto da mais profunda generosidade; dar cor e sons ao tempo, transformando-o em obras de arte; cativar e enjaular o tempo num poema ou num escrito; domesticar o tempo acalmando os que sofrem e parir novos tempos alimentando novas esperanças são motivos mais do que suficientes para aturá-lo!
Quantas horas, minutos e segundos são desperdiçados, senão, mesmo desprezados? Com eles poderíamos construir uma nova “eternidade”, a nossa, humana, mais completa e mais feliz, uma “eternidade viva” capaz de fazer inveja à “eternidade silenciosa” dos deuses.
Quando passo parte dos meus tempos a “saborear o tempo”, olhando para os belos lugares que me viram nascer, interrogo-me sobre os que os viram antes de mim, e os que hão-de ver no futuro. Interrogo-me sobre os sentimentos despertados, as alegrias e as tristezas testemunhadas, os desejos e as esperanças depositados numa confidencialidade que só a imaginação permite quebrar. Ao mesmo tempo tento depositar as minhas vivências, como se fossem cinzas da alma, confiante de que no futuro outros possam sentir a existência como um contínuo, criando a verdadeira eternidade, matando o falso tempo que nos vai corroendo cada dia que passa...

3 comentários:

Bartolomeu disse...

Como sempre, Senhor Professor, os seus textos, para alem da excelência literária, são um convite irrecusável à reflexão.
A mortalidade e o seu contrário, são dois conceitos, que concentrados num só preenchem os inquietos pensamentos humanos. Aliás, acredito até que num cantinho recôndito de cada ser humano, exite o desejo latente da imortalidade.
Heréclito de Éfeso, talvez o mais paradoxal dos filosofos, dizia que: "Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos" contorversamente, ou não, Heréclito diza ainda: "Em um cabe tudo, em tudo, cabe um". Em filosofia, paradoxo designa o que é aparentemente contraditório, mas que apesar de tudo tem sentido.
Neste torvelinho de considerações, acabo a poisar na frase de Lúcio Numa:"O que torna os homens imortais, é a rebeldia em nome daquilo que se vê com absoluta claridade no interior da alma".
Aqui não encontro qualquer paradoxo, para mim este é um conceito claro, aplicável em toda a sua essência á realidade da existência humana.

Suzana Toscano disse...

Belissimo texto, como sempre, caro Professor.
A consciência do tempo é de facto uma coisa que, quando chega, já é quase tarde demais, é quando começamos a dizer "já não consigo" ou "já não tenho interesse" ou mesmo "já não vale a pena". Não depende da idade´cronológica, mas do modo como aproveitámos o tempo que existiu para acrescentar a curiosidade, para alargar horizontes ou para nos tornarmos fortes onde podemos vir a ser fracos, cuidando da saúde.
Além disso, há hoje uma sofreguidão errada para aproveitar o tempo, ou seja, para fazer cada vez mais em cada vez menos tempo, o que se torna num incrível paradoxo, porque a velocidade não nos deixa aproveitar devidamente o tempo, a mudança tornou-se um objectivo em si mesmo e gasta-se o tempo a apanhar o tempo, sem nunca parar nele para o usufruir. É o “falso tempo” de que tão bem fala, o tempo verdadeiro tornou-se um luxo, uma preciosidade só ao alcance dos que têm a sorte de reparar na sua valia e de poderem roubar, só para si, alguns preciosos minutos. A contemplação, de que tão bem fala, a reflexão sobre o que nos é dado e o modo como o aproveitamos tornaram-se exercícios fora de moda. Talvez daí o aumento das doenças de ansiedade e depressões, perde-se o pé do tempo e as pessoas afundam-se onde as deixem parar um pouco.
Um tio meu fez há dias 89 anos, cheio de saúde e interesse pela vida, e dizia que não era possível ter aquela idade, não sentia que fosse ele,porque parecia que ainda há poucos dias estava a brincar no quintal, de calções, e a mãe a chamá-lo para almoçar. Não tinha dado pelo tempo a passar porque tinha sido feliz...

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Parabéns pela sua reflexão que não deixa indiferente quem a lê.
É curioso como o tempo se apresenta com "tempos" diferentes quando somos crianças, jovens, adultos ou velhos. Esta percepção tão diferente sobre o tempo está muito ligada ao tempo que já passou associado a um passado já concretizado e que condiciona a noção que fazemos do tempo que ainda está para vir.
É por isso que ouvimos tantas vezes os adultos e velhos dizerem "o tempo passa a correr"...
Caro Professor também noto que há muitas pessoas que passam parte da sua existência a "matar o tempo" e outras tantas que passam a sua existência não dando pelo tempo passar e vivendo como se a vida fosse eterna... Claro que estas constatações são relativas porque afinal cada um aproveita o tempo como pode e sabe...