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terça-feira, 28 de outubro de 2008

Uma enorme farsa orçamental

Primeiro, foi o espanto: então num ano em que os aumentos salariais para a função pública irão subir 2.9%, como sucederá em 2009, o Orçamento do Estado para o próximo ano (OE’2009) projecta uma queda das despesas com o pessoal das Administrações Públicas de 12.7% do PIB para 10.8%?... Quase 2 pontos percentuais do PIB?!... Nunca, no passado, uma tal queda foi sentida, mesmo em anos em que a empresarialização de hospitais do Serviço Nacional de Saúde fez com que a despesa com os seus funcionários deixasse de ser contabilizada em “despesa com o pessoal”!... “Que estranho”, pensei eu.

Depois, a surpresa: por que razão o OE’2009 prevê que as contribuições sociais se reduzirão, no próximo ano, para 11.3% do PIB, quando nos anos anteriores (incluindo 2008), o seu valor se situava acima de 12.5%?...

“Não”, pensei, “há aqui qualquer coisa de esquisito”. E havia mesmo. Como o Ministro das Finanças referiu na conferência de imprensa em que apresentou o OE’2009, houve uma alteração metodológica decidida pelo Governo no registo das contribuições dos funcionários públicos para a Caixa Geral de Aposentações que, em 2009, deixarão de fazer parte das rubricas “despesa com o pessoal” (do lado da despesa pública) e “contribuições sociais” (do lado da receita), passando unicamente a ser registadas na rubrica da despesa “transferências correntes”. Ao contrário da prática que sempre existiu até 2008 (inclusive), em que o registo era feito nestas 3 rubricas.

Como é bom de ver, com esta alteração, o valor global do défice público não é alterado – mas as rubricas “contribuições sociais” e “despesa com o pessoal”, e os agregados “receita corrente”, “receita total”, “despesa corrente”, “despesa corrente primária”, “despesa total” e “despesa primária” alteram-se significativamente: é preciso acrescentar a cada um destes indicadores cerca de EUR 3 149 milhões (!) ou 1.8% do PIB para que os números do OE’2009 sejam comparáveis com os dos anos anteriores.

Nada tenho contra alterações metodológicas (e esta que agora foi decidida até parece ter lógica) – mas quando elas ocorrem, o procedimento correcto (e único a ter, em minha opinião) é assegurar a comparabilidade dos dados antes e depois dessas alterações. O que, neste caso, teria que significar a alteração dos dados nos anos anteriores a 2009 – ou então a apresentação dos valores de 2009 com e sem alteração metodológica. Não querendo proceder desta forma (o que já me pareceria menos correcto, mas enfim…), então que se assinalasse devidamente, sempre que se apresentassem quadros com séries cronológicas, que os dados não eram comparáveis.

Infelizmente, no Relatório que acompanha a Proposta de Lei do OE’2009, para além de uma breve nota em que se admite [ver página 138 deste documento] que “(…) a despesa do subsector Estado tem subjacentes duas alterações de natureza contabilística, as quais têm associados montantes significativos, e que condicionam a respectiva análise face aos anos anteriores (…)”, nenhuma advertência – nem ao de leve – foi colocada em nenhum outro ponto do Relatório, muito menos nos vários quadros e gráficos que pretendem comparar a evolução de vários agregados das despesas e das receitas públicas!...

Ora, não se pode comparar o que não é comparável – mas, só para dar um exemplo, nos quadros e gráficos das páginas 118 a 121 do Relatório (que contêm informação essencial para se poderem tirar conclusões sobre a evolução das contas das Administrações Públicas e as opções de política orçamental tomadas), lá aparece sempre a informação referente ao ano de 2009 a seguir a 2008 como se nada fosse!... Para se perceber a gravidade da situação, basta referir que qualquer aluno do primeiro ano universitário que frequente a disciplina de Estatística não poderia cometer uma gaffe destas, sob pena de… não reunir condições para ser aprovado!...

Ao ter procedido desta forma, o Governo – e, sobretudo o Ministro das Finanças – arrisca-se a que sejamos obrigados a concluir que esta alteração tentou esconder

  • que – depois de ajustados os números de 2009 para uma base comparável – a despesa pública atingirá, em 2009, o valor mais elevado de sempre face ao PIB (47.8%), crescendo 7% face a 2008 (e num ano em que a inflação prevista será de 2.5%...);
  • que a despesa corrente primária crescerá 5% (provando o total fracasso do PRACE); e
  • que esta legislatura terá sido completamente perdida em termos de consolidação orçamental pelo lado da despesa (aquela que era essencial que tivesse sido prosseguida), com o défice a ser reduzido unicamente por via do aumento da receita (cujos agregados, tal como os da despesa pública, se situam bem acima dos valores de 2004 – o último ano da anterior legislatura – como mostra o quadro abaixo).

E, como tal, o Governo arrisca-se a que se possa pensar que tudo isto não se tratou de um simples e inocente esquecimento. Que, ao invés, houve aqui uma desonestidade intelectual e técnica – ou, como diz o povo, uma marosca…

… Uma conduta que, afinal, se nos recordarmos da encenação criada à volta das contas públicas de 2005 – culminada com a apresentação do primeiro orçamento desta legislatura (o Orçamento Rectificativo de 2005), que continha erros clamorosos –, até acaba por revelar coerência: o Governo acaba o seu mandato tal e qual o começou em termos orçamentais. Com uma verdadeira farsa.


Nota: Este texto foi publicado no Jornal de Negócios em Outubro 21, 2008.

1 comentário:

TAF disse...

Meu caro, como tive ocasião de dizer no encontro do PSD na passada Segunda-feira na Fundação Cupertino de Miranda, o objectivo principal de um orçamento decente tem de ser o de reduzir drasticamente o peso da Administração Pública. Ora isso não se consegue só por acção dela própria nem do sistema partidário na situação em que ele actualmente está.

É preciso mobilizar a sociedade civil para alterar o estado das coisas, obrigando os partidos a agirem nesse sentido, mesmo contra os "aparelhos". Isso exigirá um trabalho de base muito grande, que para ser eficaz tem de ser local, autarquia a autarquia. É preciso envolver mais gente (ar fresco...) nas actividades partidárias, mostrar que a sua acção pode ter efeitos sensíveis na sua autarquia (primeiro) e no país como um todo (depois). Quando as pessoas perceberem que podem ter voz, que têm em conjunto capacidade de provocar uma "revolução", conseguiremos finalmente induzir algum desenvolvimento. Comparado com esta necessidade, tudo o resto são pequenos floreados que não mudam estruturalmente nada nem desalojam Sócrates e a sua trupe do poder.

A credibilidade que o PSD precisa não se consegue com os discursos de MFL, mas sim com a capacidade que o partido tiver de colaborar com outras forças políticas (especialmente nas autarquias) para a concretização de objectivos consensuais. Essa capacidade de cooperação levará também a que a população dê ouvidos ao PSD quando o partido disser que há outras coisas em que não há consenso e, pelo contrário, as propostas apresentadas são muito diferentes e mais sensatas. E que vale a pena, por isso, votar no PSD.

Protestar contra a comunicação social é não perceber o problema de fundo. Se não houver um comportamento diferente do PSD em relação ao PS (mais uma vez: começando nas autarquias locais), a população dará tanto valor a estes quadros com números do PSD como a quaisquer outros (mesmo que errados) que o PS apresente, pois o cidadão comum não tem conhecimentos técnicos suficientes para validar uns dados e recusar outros.